Joaquim Candeias da Silva*

 

Preâmbulo de enquadramento

 

    O Tribunal do Santo Oficio da Inquisição, como instituição e instrumento repressivo da Igreja Católica, foi introduzido em Portugal por uma bula pontifícia de 1536. Marcado por uma certa brandura de início, com o inquisidor fundanense Frei D. Diogo da Silva, a breve trecho revelou métodos violentos, com um vasto rol de penitenciados submetidos a requintadas e horrorosas torturas, de condenados à fogueira, vivos, em estátua ou mesmo desenterrados, em espectaculares «autos da fé» (vide gravuras); isto logo a partir de 1540.
    Durou a actividade desse instituto sinistro, que se estendeu a todos os territórios submetidos à Coroa portuguesa e chegou a constituir um autêntico estado dentro do Estado, quase três séculos (até 1821 ), dos quais pelo menos dois se podem considerar particularmente desumanizantes para a maioria dos indivíduos, homens ou mulheres (e até crianças) que tiveram a infelicidade de lhe cair nas garras. Deles existem no Arquivo da Torre do Tombo, ocupando qualquer coisa como I .252 metros de prateleira, cerca de 37.500 processos específicos, que geraram mais de 25.000 condenações.
    A maior parte dos estudos que têm sido produzidos sobre este assunto versam geralmente sobre a matéria processual, os actos e procedimentos do Tribunal, as pessoas e as acusações, que iam desde o crime de judaísmo (o mais frequente) à heresia, passando pela blasfémia, pela feitiçaria, pela bigamia, pela sodomia e homossexualidade ("pecado nefando")... Mas parece-me que ainda não foi dado o devido realce a todo um conjunto de outra documentação suplementar, como por exemplo a "correspondência", os «cadernos do promotor», das «visitações» e «devassas», autenticas inquirições clerico-policiais, e que são igualmente de grande importância para a nossa Memória colectiva.
   Conforme observou já Moisés Espirito Santo, através dela(s) ouve-se a caterva dos efabuladores invejosos, sentem-se os murmúrios da rua e do lavadouro, a comadrice do porta-a-porta, o olhar da alcoviteira, o replidio da diferença, a desconfiança da criadagem, cheiram-se os lixos domésticos, espreita-se pelas fechaduras, em suma, a realidade nua e crua. Mas, pior que isso, em nome de Deus e da Fe, praticaram-se crimes monstruosos, correu muito sangue inocente. «Estamos perante a inconfundível, impiedosa, organização da Inquisição, que essas populações gregarias construíram e suportaram, e para quem ate o estilo da camisa e os odores constituíam provas de heresia».
    Só que, infelizmente, alguns desses hábitos persecutórios, as calunias, os estereótipos, as acusações e os medos, que se têm pelas linhas do passado, são ainda um passado presente. E nestes anos de 2003-2004, de modo muito particular, bastantes vezes esse passado tem vindo ao de cima. Razão por que entendemos pertinente trazer a esta publicação periódica um estudo como este, de analise histórica e cientifica, mas também de/para reflexão.

Quando a Inquisição de Lisboa atacou forte em Abrantes

No estudo que dediquei a «Abrantes Filipina» (1580-1640), dissertação de doutoramento em âmbito da «Religião, Assistência e Cultura» (Cap. V, pp. 470-474) e de «A vida em sociedade — volumes, editado parcialmente pelas Edições Colibri (2000), tive já oportunidade de me referir com algum desenvolvimento a este tema da Inquisição no contexto especifico da área abrantina, no Elementos sociais exteriores ao sistema» (Cap. III, pp. 354-367). No entanto, por o enfoque principal da matéria, na altura, ultrapassar o âmbito cronológico definido, bastante ficou por dizer relativamente aos tempos posteriores, razao por que logo al expressei a intenção de voltar a ocupar-me dela em próxima oportunidade (p. 474, nota 70).
    Até 1652, não parece ter havido grande interferência nem muitas medidas de coação por parte dos respectivos tribunais sobre gentes destas partes; em particular a comunidade judaica da vila, que desde tempos imemoriais era aqui bastante numerosa e economicamente poderosa (mau grado as muitas fugas havidas no seculo anterior), pode dizer-se que vivia mais ou menos protegida por segredos e disfarces numa semiclandestina religiosidade'. A partir daquele ano, porem, algo parece ter mudado, porque as perseguições redobraram de ferocidade, com todo um rosário de denuncias forcadas abrangendo famílias inteiras, gente de todas as idades e de todas as classes sociais mas principalmente naquele sector mais suspeito dos cristaos-novos mercadores, com prisões, torturas, condenações, sequestros de bens, que tudo junto viria a redundar numa década terrível (1652-1662).
    Em Abrantes, os primeiros sacrificados de que temos noticia nesse período, todos identificados perante o Santo Oficio como cristaos-novos (= XN), foram: Diogo Gomes, de 59 anos, natural de Fronteira e morador em Abrantes, marchante; Esperança Pereira, de 20, também natural de Fronteira e residente em Abrantes, filha de Diogo Lopes de Ledo, medico XN, e de Joana Pereira, XN, casada com o individuo seguinte, presa a 3.11.1652 (proc.° 5410/ Lisboa); e Baltazar Coelho, 20 anos, filho de Henrique Rodrigues Coelho e Inês Rodrigues, mercador, casado com a ré anterior, (proc.° 6945 / Évora). Todos seriam acusados do crime de judaísmo, os primeiros dois condenados a ir ao auto da fé de Lisboa, de 1.12.1652, realizado no Terreiro do Paco, com "abjuração de leve", penas de "carcere e habito a arbítrio dos inquisidores", o it1timo sentenciado ao auto de Évora, de outras, que os juízes eram hábeis em extorquir — não importava por que meios pois que todos eram permitidos ate aos mais desumanos — confissões das suas vitimas. E a breve trecho Abrantes passou 8.6.1653, com carcere a arbítrio, penas e penitencias espirituais. Mas, umas denuncias trouxeram a ser terreno fértil na caca a "infiéis" de toda a espécie. Presos e levados para as masmorras, por regra as de Lisboa, alguns conseguiram ser absolvidos, mas outros não conseguiram escapar a duras provacifies e aos autos da fé. Onze deles (11) expiaram al a pena máxima, de morte na fogueira.


Procissão de um Auto-da-Fé defronte do palácio da Inquisição de Lisboa (zona do atual Rossio). Pelas festas o governo da cidade promovia corridas de touros para divertimento da população; a Inquisição fazia Autos...

    Eis os que figuram nas listas de penitenciados dos anos seguintes:
- Auto celebrado no Terreiro do Paco, a 11.10.1654 (cinco pessoas): Pedro Vaz o Vaquinha, 50 anos, mercador, natural e morador em Abrantes, com penas de carcere e hábito a arbítrio, por judaísmo; Henrique Rodrigues Lopes, 40 anos, XN, também mercador e daqui natural e morador, com pena idêntica; Manuel de Sequeira, 20, filho de Francisco de Sequeira, mercador natural de Abrantes e morador em Lisboa «cárcere e hábito perpétuo sem remissão»; Ana Rodrigues " a Barra", 28 anos, casada com Pedro Gomes, igualmente natural e moradora nesta vila, por afirmar que era «tão pura como a Virgem Maria Nossa Senhora», pena de um ano para fora de Abrantes e seu termo; e Isabel do Couto (nome de crismada), 26 anos, filha de Manuel Rodrigues do Couto e Maria Rodrigues, casada com Domingos Dias, peneireiro, natural de Lisboa mas moradora em Abrantes, presa a 4.6.1654 por casar segunda vez, com Francisco Ferreira, sendo vivo seu primeiro marido (bigamia), corn pena de acoites e 7 anos de degredo para o Brasil (proc.° 988 / Lisboa). 
    A estes deve juntar-se mais urn individuo, Rodrigo de Sequeira, de 18/19 anos, filho de Francisco Sequeira e Maria de Castro, natural de Abrantes e morador em Lisboa, sentenciado ao auto de 22.12.1654 realizado em Évora, por heresia e judaísmo, com confisco de todos os seus bens, abjuração, penas e penitencias espirituais (proc.° 9724 / Évora).
    - Auto de Lisboa (Terreiro do Paco), de 29.10.1656 (onze indivíduos): Manuel Vaz de Ledo, 44 anos, XN de Abrantes, solteiro, que vivia de sua fazenda, filho do tratante Joao Vaz de Ledo, condenado a carcere e habito a arbítrio; Simão Alvares, 40 anos, XN natural e morador em Abrantes, mercador, pena idêntica; Afonso Rodrigues Moreno, 66, XN mercador, natural e morador em Abrantes, idem; a sua mulher, Isabel Coronel, 50, também XN, natural de Viana da Foz do Lima e moradora em Abrantes, idem; Manuel Rodrigues Preto, 46, outro XN mercador de Abrantes, idem; Filipe Tomas de Miranda, 42, outro XN mercador daqui embora natural de Lisboa, idem; Maria Henriques (ou do 0), 22 anos, outrossim XN, mulher do anterior, filha de Francisco Vaz Henriques e Isabel Francesa, natural de Abrantes e moradora em Lisboa, presa a 23.7.1655 por judaísmo, idem (proc.° 639 / Lisboa); Antonio Dias Arias (ou Aires), 40, mais um mercador XN, natural e morador em Abrantes, com a agravante de ter culpas de sodomia, idem e 6 anos de degredo para o Brasil; Isabel Lopes, 53, igualmente XN e mercadora, natural de Fronteira e moradora em Abrantes, mulher do supracitado Pero Vaz "Vaquinha", idem; Branca Lopes, 35, XN, mulher de Antonio Tomas (XN natural do Teixoso e que também ia na lista), ela natural de Abrantes e a morarem em Lisboa, idem; e finalmente Mor Francesa, 82 anos, XN, filha de Simão Fernandes e de Eufémia de Cáceres, viúva de Joao Francês, natural da vila de Ares e moradora em Abrantes, presa a 17.10.1654 por judaísmo, a qual acabou relaxada (queimada) por judaísmo, no que foi considerada convicta, negativa e pertinaz (proc.° 641 / Lisboa).
    - Em 15.12.1658, ainda no Terreiro do Paco (dezasseis indivíduos): Guiomar Gomes, 32 anos, filha de Joao Gomes Vieira e Maria Ferreira, natural de Abrantes e moradora em Lisboa, casada com Bento Dias, presa a 22.9.1656 por judaísmo e condenada proc.° 1301 / Lisboa); Joao Rodrigues Pisco, 33 anos, natural e morador em Abrantes, meio XN que vivia de sua fazenda, o qual abjurou de veemente por judaísmo; Diogo Gomes, 65 anos, natural de Fronteira, preso 2.a vez, agora condenado a carcere e habito perpetuo sem remissão e um ano de degredo para fora de Abrantes; Henrique Rodrigues Lopes, 54 anos, já reconciliado em 1654 e preso também 2.a vez por diminuto, carcere e habito com insígnias de fogo; Diogo Alvares, 67, mercador XN, natural de Abrantes e morador em Lisboa, 1.a abjuração em forma, carcere e habito perpetuo sem remissão; Diogo Francês, 48, homem de negócios XN, também natural de Abrantes e morador em Lisboa, idem; Manuel e Isabel Francesa, natural de Abrantes e moradora em Lisboa, presa a 23.7.1655 por judaísmo, idem (proc.° 639 / Lisboa); Antonio Dias Arias (ou Aires), 40, mais um mercador XN, natural e morador em Abrantes, com a agravante de ter culpas de sodomia, idem e 6 anos de degredo para o Brasil; Isabel Lopes, 53, igualmente XN e mercadora, natural de Fronteira e moradora em Abrantes, mulher do supracitado Pero Vaz "Vaquinha", idem; Branca Lopes, 35, XN, mulher de Antonio Tomas (XN natural do Teixoso e que também ia na lista), ela natural de Abrantes e a morarem em Lisboa, idem; e finalmente Mor Francesa, 82 anos, XN, filha de Simão Fernandes e de Eufémia de Cáceres, viúva de Joao Francês, natural da vila de Ares e moradora em Abrantes, presa a 17.10.1654 por judaísmo, a qual acabou relaxada (queimada) por judaísmo, no que foi considerada convicta, negativa e pertinaz (proc.° 641 / Lisboa).
    - Em 15.12.1658, ainda no Terreiro do Paco (dezasseis indivíduos): Guiomar Gomes, 32 anos, filha de Joao Gomes Vieira e Maria Ferreira, natural de Abrantes e moradora em Lisboa, casada com Bento Dias, presa a 22.9.1656 por judaísmo e condenada proc.° 1301 / Lisboa); Joao Rodrigues Pisco, 33 anos, natural e morador em Abrantes, meio XN que vivia de sua fazenda, o qual abjurou de veemente por judaísmo; Diogo Gomes, 65 anos, natural de Fronteira, preso 2.a vez, agora condenado a carcere e habito perpetuo sem remissão e um ano de degredo para fora de Abrantes; Henrique Rodrigues Lopes, 54 anos, já reconciliado em 1654 e preso também 2.a vez por diminuto, carcere e habito com insígnias de fogo; Diogo Alvares, 67, mercador XN, natural de Abrantes e morador em Lisboa, 1.a abjuração em forma, carcere e habito perpetuo sem remissão; Diogo Francês, 48, homem de negócios XN, também natural de Abrantes e morador em Lisboa, idem; Manuel pessoa a sair neste auto particular (proc.° n.° 1447/ Lisboa).
    - Homens — Estevão de Sequeira, 39 anos, XN, mercador de sedas, natural de Abrantes e morador Em 17.10.1660, Terreiro do Paco (26 pessoas, de um total de 75, das quais 9 homens e 17 mulheres): em Lisboa, acusado de judaísmo, que mesmo morto no carcere foi nomeado no auto «absoluto da instancia» (junto a ele um homem de 115 anos! — se não é lapso da fonte lavrador de Ponte de Lima e morador no Funchal, acusado de «sentir mal dos poderes do papa»); Manuel da Silveira, 47, outro XN mercador de sedas, filho de Sebastião Nunes, também natural de Abrantes e a morar na capital, com 2." abjuração de leve; Henrique Gomes Vieira, 52, XN natural de Abrantes e morador em Setúbal, idem; e Joao Frade Caldeira, 53, escrivão do judicial da vila, filho de Cristóvão Frade Caldeira e Francisca Dias (também ela encarcerada)2, casado com Mariana Pimentel, preso a 26.10.1656 por judaísmo, sentenciado com abjuração de veemente (proc.° 562 / Lisboa). Ficaram para o fim os relaxados (5). Destes, um foi em came (queimado vivo), Antonio Pires o "Meia Noite", 54 anos, acusado de ter parte de XN, mercador, natural de Portalegre e morador em Abrantes3; um outro em estatua, Domingos Fernandes, 67 anos, XN, trapeiro e lavrador, natural das Coutadas (S.ta Margarida), então do concelho de Abrantes, morador em Avis e a residir em XNs, naturais de Abrantes e moradores em Lisboa — Domingos Rodrigues Alvares, 50 anos; Rui Punhete, o qual não resistindo as torturas acabou morto nos carceres por convicto, negativo e pertinaz; e mais tees ainda em estatua, por ausentes e pelas mesmas acusações, todos mercadores, Lopes Nunes, 48; e Baltazar Coelho Alvares, 48, os três por convictos, negativos, revéis e contumazes.


Gravura representando um Auto da Fé no Terreiro do Paço, que embora carecendo de fundamento histórico, pode servir de símbolo de uma época e de uma sociedade.

    As mulheres condenadas no auto deste ano, todas por culpas de judaísmo, foram: Catarina Rodrigues, 32 anos, XN, mulher de Estevão de Sequeira de Abrantes; Joana Gomes, 47, XN, mulher de Manuel Pinto Alvares, homem do mar, e irmã de Guiomar Gomes (penitenciada em 1658), natural de Abrantes e a viver em Setúbal (proc.° 556/Lisboa); Isabel Soares, 39, XN, filha de Sebastião Nunes e Maria Soares, casada com Marcos Dias Brandão, natural de Abrantes e moradora em Lisboa, presa a 7.9.1656 (proc.° 553 / Lisboa); Leonor Caldeira, 32, com partes de XN, filha do fidalgo abrantino Cristóvão Frade Caldeira; Monica de Sousa, 42, com parte XN, mulher de Antonio Dias Aires, mercador, natural de Punhete e moradora em Abrantes; Filipa Henriques, 33, meio XN, solteira, filha de Manuel Dias Aires, mercador, de Abrantes; Francisca de Azevedo, 37 anos, meia XN, solteira, filha de Francisco de Brito do Rio e de Isabel Alvares (esta XN de 60 anos, relaxada em came neste auto), natural de Elvas e moradora em Abrantes, condenada a carcere e habito; Inocência de Brito, 17, irmã da anterior, idem; Branca da Costa, 20, XN solteira, filha de Joao da Costa Brandão, tratante, natural e moradora em Abrantes, com pena idêntica; Maria Henriques, 22, irmã da anterior, idem; Maria Henriques Loba, mulher de Joao da Costa Brandão e mãe das duas anteriores, 49, também XN de Abrantes, idem e 5 anos para o Brasil; Juliana Brandoa, 48, XN, mulher de Antonio da Costa Brandão, tratante, de Abrantes, idem; Natália Nunes, 63, XN, mulher de Rui Pegado de Abreu, que vivia de sua fazenda, natural de Abrantes e moradora em Lisboa, idem; e Joana Dias, 64, com parte de XN, filha de Jerónimo Goncalves e Leonor Dias, viúva de Joao Gomes Vieira, mercador, de Abrantes, presa a 24.10.1656, condenada a carcere e habito perpetuo com insígnias de fogo e 5 anos para o Brasil (proc.° 554 / Lisboa). Finalmente, a fechar o rol, três XN do mesmo cia, naturais e moradoras em Abrantes e todas relaxadas em came, a saber: Branca da Costa, 92 anos (!), viúva de Pedro da Costa Brandão, tratante (contratador que foi da Madeira), porque «convicta, negativa e pertinaz»; Maria da Costa, 39, solteira, filha de Henrique Rodrigues mercador, pelas mesmas causas; e Maria Henriques da Costa, 49, solteira, filha da sobredita Branca da Costa e de Pedro da Costa, por «convicta, ficta, falsa, simulada, confitente, diminuta e impenitente».
    Por esta altura, decerto devido a tantos horrores, os ódios chegaram a tal ponto que, segundo a mesma fonte, na noite deste mesmo Auto «atiraram com um bacamarte ao desembargador Manuel Gameiro de Barros e o feriram no rosto com varias feridas»...
    - Em 17.9.1662, Terreiro do Paco (quatro pessoas): Jerónimo da Costa Brandão, 27 anos, XN, natural e morador em Abrantes, com 2.a abjuração em forma, «carcere e habito perpetuo», e Pedro da Costa Brandão, 28, XN, clérigo in minoribus e beneficiado da igreja de S. Joao Baptista de Abrantes, ambos filhos de Joao da Costa Brandão, tratante, e de Maria Henriques Loba, preso a 26.11.1657 por judaísmo, condenado a carcere e habito perpetuo sem remissão, com insígnias de fogo e 5 anos de gales (proc.° 144 / Lisboa). Seguem-se finalmente os relaxados: Joao da Costa Brandão, XN já reconciliado no auto de 1658, pai dos dois anteriores, natural e morador em Abrantes, foi agora relaxado em came (queimado vivo na fogueira), por «convicto, ficto, falso, simulado, confitente, diminuto e impenitente; Grácia Dias, 62 anos, com parte de XN, que nunca casou, filha de Jerónimo Goncalves, que foi mercador, natural e moradora em Abrantes, defunta no carcere e relaxada em estatua (a revelia, por certo devido as torturas recebidas), exactamente pelas mesmas condenações.
    - Em 19.10.1662, na sala do Santo Oficio de Lisboa, foi condenado Joao Vicente de Morais, 55 anos, natural de Punhete e marinheiro da carreira do Brasil, filho de Manuel Vicente Morais e Maria Vicente, preso a 29.11.1661 por culpas de bigamia (casado 2.a vez com Domingas Barbosa sendo viva a 1.a mulher Isabel Vicente da Mata), recebendo por castigo 5 anos de degredo para Mazagão (proc.° 2674 / Lisboa). Entretanto, a 22.9.1662, foi ainda preso em Abrantes o P.e Vicente Lopes da Costa, natural da vila, sacerdote do habito de S. Pedro e beneficiado da igreja de S. Vicente, 52 anos, meio XN, filho de Francisco Lopes Moreno e Francisca da Costa, também acusado de judaísmo; iria ao auto de 1666, condenado a privação do exercício de ordens por dois anos, carcere e habito a arbítrio dos inquisidores e penas espirituais (proc.° 2834 / Lisboa)...
    E, por agora, por aqui me quedo quanto a listagens do Santo Oficio, que o texto já vai longo e as prisões / condenações não acabaram nesse ultimo ano, embora tivessem diminuído muito; depois dele, outros penitenciados abrantinos houve, que seria fastidioso enumerar e que ultrapassam o âmbito deste artigo. Dada importância do tema, que nas suas múltiplas vertentes de analise será inesgotável, talvez a ele volte em próxima oportunidade...
    Mas, recuemos um pouco no tempo, mais exactamente a 1656. Nesse ano, a 8 de Novembro, falecia o rei Restaurador, D. Joao IV, de gota e pedra na vesicula. Não lhe atribui a Hist6ria fama de mau governante. Apesar das fortes pressões da Inquisição para que reprimisse os judaizantes com mais dureza e lhes confiscasse os bens, soube o monarca manter algum equilíbrio, sustentado sobretudo na argumentação do P.e Antonio Vieira. Porem, apos o falecimento, viriam as Inquisições a ganhar novo folego, ao ponto de obrigarem a viúva regente a varias cedências e conseguirem ate a excomunhão póstuma do rei. Foi então que a repressão do Santo Oficio aumentou para níveis nunca vistos, conforme alias tivemos oportunidade de constatar atras, e sucedeu uma nova vaga de fugas para o estrangeiro. O próprio P.e Vieira, com toda a projecção nacional já atingida, foi metido a ferros e saiu penitenciado em Coimbra, ganhando assim motivos para que algum tempo depois o papa, a rogos seus, suspendesse as Inquisições de Portugal (1674). Neste quadro se compreendera melhor o que vimos interiormente, bem como o que vai seguir-se.



Absolvição dada ao cadáver de D. João IV (rei de 1640 a 1656), pelos pecados que teria cometido contra a Inquisição

A devassa na ouvidoria de Abrantes em 1657

    Conforme tive oportunidade de escrever (ob. cit. supra, p. 474), existe no Arquivo da Tone do Tombo um «Livro da Devassa da Ouvidoria de Abrantes», datado de 1657, um longo mas interessante processo com mais de uma centena de paginas manuscritas, promovido e organizado naquele ano pelo visitador diocesano Domingos Sanchez del Castilho, c6nego prebendado da se da Guarda. Esta fonte de primacial importância para o presente estudo e de que há uns dez anos havia tornado algumas notas, foi entretanto retirada da leitura, por alegado mau estado de conservação. Precisando de voltar a ela, fiz um pedido especial de consulta com todas as garantias de proteção, tendo em vista uma rápida revisão e completamento de dados. Já por outras vezes tal faculdade me fora concedida; mas desta, estranhamente, a resposta foi negativa.
    Perante o impedimento, hesitei. Desistir? Esperar por nova oportunidade? Avançar com os dados disponíveis, mesmo incompletos?... Ora, gorada a hipótese de acesso directo ao documento, mas continuando a pensar que o assunto tem interesse para a historia regional e local, não vi outra saída que não fosse o recurso as notas manuscritas tomadas e guardadas, aquando da descoberta da fonte e quando ainda não se colocavam tantos obstáculos a requisição de originais. E assim, embora muito sucintas e eventualmente carecidas de revisão, é dessas notas pessoais que vou servir-me, com a ressalva de um dia voltar ao assunto se ou quando o documento for disponibilizado e caso as circunstancias o justifiquem.
    Pois bem, o que aconteceu naquele ano, afinal? Vamos por partes. Ao tempo estavam as dioceses subdivididas em circunscricOes religiosas chamadas «ouvidorias», as quais eram presididas por urn vigario-geral corn funcOes de ouvidor eclesiastico (ou do auditorio). No caso da Ouvidoria de Abrantes, agrupava oito vitas (Sobreira Formosa, Vila de Rei, Amendoa, Cardigos, Macao, Punhete/ Constancia, Sardoal, mais a sede, Abrantes), corn urn total de 27 igrejas paroquiais, que se constituiam em outras tantas freguesias. Para assegurar o seu bom funcionamento e estabelecer a ligação corn a sede diocesana vinha de tempos a tempos urn "visitador", corn funcOes judiciais e inspectivas4.
    Aquele ano de 1657 foi, portanto, de "visitacao" a toda a ouvidoria5. Iniciou o diligente juiz egitaniense a sua ronda inquisitoria pela Sobreira Formosa (hoje concelho de Proenca-a-Nova), al achando diversos motivos de intervencao, sendo as vitimas geralmente incriminadas por mancebia (fl. 1-11). Dali seguiu para Cardigos (antiga vila de Bichieira), onde nada encontrou que justificasse castigo, e depois para a vila da Amendoa, esta ja corn alguns problemas menores (fl. 14-16). A etapa seguinte foi a pacata aldeia do Peso (Vila de Rei), onde nada recolheu, mas já na sede de concelho sim, embora tambern por questOes de somenos (fl. 21-23).
    O concelho de Abrantes foi entrado pelo Souto (fl. 24): aí obteve a informacao de que no Casal das Fontes urn viuvo, Jorge Dias, e uma solteira, Ana, andavam amancebados havia dois anos. Ficaram na lista negra. E tambem emMartinchel(fl. 26) outro vinvo, Joao Rodrigues, andava corn uma Margarida, solteira, filha de Manuel Fernandes, ferreiro do lugar; pelo que condenou os infractores, ele em 900 reis e a sua companheira em 400.
    Dali seguiu ate Punhete, hoje vila de Constancia (fl. 30-43). 0 «escandalo» mais notorio era o do padre Pedro Rodrigues de Macedo que vivia amancebado corn Maria Dias, mulher solteira, e ao caso deu o inquiridor grande atencao. Reentrando no termo de Abrantes daquele tempo — que era bastante maior que o actual —, alcanca Santa Margarida da Coutada, onde nada transpirou de anormal, ruma a Montalvo, igualmente sem referencias de comportamentos desviantes, e de imediato a Rio de Moinhos, tambern sem motivos de censura.
    A vila de Abrantes, pelas informacOes colhidas e decerto por suspeitas que adviriam de anteriores investidas do Santo Oficio, era, sem ditvida, o alvo principal da accao persecutoria. E aqui se instalou o conego condignamente e por largo tempo, disposto a cumprir corn empenho e zelo apostólico a sua funcao. Nao tardaram a aparecer denunciantes e denunciados. Eis a listagem das vitimas e respectivas culpas, pela mesma ordem que foram sendo lancadas no rol:
* Maria, solteira, natural da Serta, por devassa (fl. 47).
* Outra Maria, companheira da predita, outrossim devassa.
* Pedro Gomes, casado, amancebado corn Isabel, solteira (fl. 48).
* O padre Pero Gomes de Avelar, amancebado de urn ano corn Beatriz "Consolada", solteira.
Além de ambos, foi tambem implicada Ana Rodrigues, a "Consolada", por consentir no pecado da filha (fl. 50). Sobre este caso recaiu sentenca a 24.10.1658...
* O padre Joao Aires, amancebado corn Isabel da Mata, sua parenta, ambos ausentes. Implicada no caso foi tambern a mae desta, Isabel Rodrigues, por igualmente consentir na situacao pecaminosa (fl. 52).
* Manuel Ferreira "Milicia", solteiro, amancebado havia mais de dois anos corn Joana Marques, viúva.
* Outro padre, AntOnio Lopes Roxo, mai-la sua criada Margarida Ribeira, solteira, amancebados de mais de dois anos.
* Manuel Rodrigues Sardinha, casado, amancebado corn Catarina Pinta, solteira; e alem de ambos, Catarina Ferreira, viuva, por «alcoviteira, feitueira, lancadora de barrigas e consentidora no pecado dos preditos».(fl. 67).
* Manuel Lopes, o "Lentilinha", mariante do Tejo, vitlivo, amancebado havia urn ano com Francisca de Campos, solteira; e Vicencia de Campos, irma da precedente, por consentir no pecado (fl. 74).
* Mais um sacerdote, Joao Vaz Escarlatim, amancebado de mais de urn ano corn Catarina Marques, solteira, filha de Antonio Marques, porteiro da vila.
* Ana, a "Gordinha", solteira, por «devassa de seu corpo», tal como Catarina "Gordinha", também solteira. Foram ambas admoestadas e condenadas em 600 reis (fl. 78 v.). Igualmente admoestada foi a progenitora das ditas, Ana Rodrigues, por consentir no pecado de suas filhas.
* António Telles, dancante, casado, por dar jogo de "tabolagem" em sua casa, escândalo que levava os homens pobres a perder dinheiro e seu remedeio. Foi condenado em 400 reis (fl. 82).
* O capitdo Diogo Bernardes, solteiro, amancebado de um ano corn Ana Aires, solteira (fl. 83).
* Tambem Joana Aires, solteira, por «devassa de seu corpo, corn portas patentes a homens de ma suspeita»...
* Maria Lopes, a "Castelhana, solteira, por «devassa de seu corpo e alcoviteira e recolher homens em sua casa». Foi condenada em dois cruzados (fl. 84).
* E finalmente Isabel, solteira, filha de Lourenco Mexia o Velho, pescador, por andar amancebada corn Pero Gomes Soares, casado.


Cena de tortura aplicada na «Sala do tormento»

E a inquirição não se limitou à vila, antes se estendeu pelas restantes freguesias do concelho e para alem dele, embora com resultados dispares, como se discrimina:
- Pego: Nada.
- Alvega: Foram ali denunciados Manuel Nunes Pexoim, que andava amancebado com Domingas Soeira, solteira; e Manuel Fernandes, da Ribeira do Fernando, por benzer gado sem licença (fl. 58)
- S. Facundo: Nada de anormal.
- Bemposta: Domingos Alves, viúvo do Casal das Aranhas, e Catarina Ferreira, viúva, que viviam amancebados havia mais de três anos (fl. 64 v.).
- S. Miguel do Rio Torto: Nada.
- Mouriscas: Nada.
- Sardoal: Foram ali detectados e registados vários casos de mancebias.
- Alcaravela: Nada.
- Aboboreira (freguesia então integrada concelho de Abrantes): Nada.
- Penhascoso (Idem): Denunciado Manuel Jorge, por "não fazer vida com sua mulher"...
- Mação: Também esta vila foi visitada...
Dos contemplados foram vistas as culpas e pronunciadas pelos reverendos Deputados em Mesa, que se fez na Guarda a 16 de Julho de 1657. Todavia, corn alguma estranheza, verifica-se que nenhum dos referidos aparece nas listas dos penitenciados pelo Tribunal do Santo Oficio dos anos seguintes, enquanto por outro lado se constata que o namero dos abrantinos denunciados nesses anos de 1658, 1659 e sobretudo de 1660, se multiplicou extraordinariamente, sobretudo no dito grupo dos cristãos-novos.
    O que tera acontecido entao? Provavelmente os "apanhados" e registados na devassa de 1657 pelo conego Domingos Sanchez, seriam apenas os de culpas menores, talvez por serem "peixe miúdo" e não os verdadeiros alvos das arremetidas, os judaizantes, que esses seriam canalizados directamente para o Santo Oficio. Podera ter havido, assim, outras diligencias complementares, que desconhecemos, eventualmente decorrentes das anteriores. Mas no ficam duvidas de que, por volta de 1660, havia em Abrantes e seu termo — como afinal por todo o reino — urn apertado controlo social, determinado pelo medo quase-terror do omnipresente Santo Oficio da Inquisição.
    E mesmo tendo em conta a mentalidade do tempo, esta é materia que (Id sempre que pensar, seja qual for o tempo: Que santo oficio!...

Fontes principais
- TT, Processos individuais diversos, identificados ao longo deste artigo.
- TT, Conselho Geral do Santo Oficio, «Memoria dos Autos da Fe que tem havido públicos e particulares na Inquisição de Lisboa» (listas desde 1540).
- TT, Confrarias, Irmandades e Mordomias, M. 1, n.° 1, «Livro da Devassa da Ouvidoria de Abrantes» (1657).
- TT, Camara Eclesiástica de Castelo Branco: maços diversos contendo memorias de outras visitações e devassas a mesma ouvidoria, por onde perpassam sobretudo denuncias de problemas conjugais, relações de amantes, senhores com criadas, frequentes casados com solteiras e onde não faltam também os habituais casos de padres amancebados.

Bibliografia sumaria (alem da citada neste artigo)
- BETHENCOURT, Francisco, Historia das Inquisicoes, Lisboa, 1994.
- GARCIA, Maria Antonieta, Denzincias em nome da Fe - «Caderno de culpas do bispado da Guarda e seu distrito e das Visitações», Univ. Nova de Lisboa, 1996.
- MENDOKA, Jose Lourenco de e MOREIRA, Antonio Joaquim, Historia dos principais actos e procedimentos da Inquisição em Portugal, INCM, Lisboa, 1980.
- SARAIVA, Jose Hermano (dir. de),Historia de Portugal, vols. 4 e 5, Pub. Alfa, Lisboa, 1983.
- SILVA, Joaquim Candeias, «Medicina e Inquisicao na Beira Interior», Medicina na Beira Interior - Cadernos de Cultura,n.° XV, Castelo Branco, 2001, pp. 47-60.

Notas 

* Professor, mestre e doutor em Letras (Historia) pela Universidade de Lisboa.
1 Para alai do que ficou dito em Abrantes - A vila e seu termo no tempo dos Filipes..., pp. 470-473, já a precisar de revisão, aproveitamos agora a oportunidade para registar urn dado importante, ocorrido cerca de 1590. Por esse ano foi preso em Abrantes o jovem fidalgo Alvaro Gil Freire, filho do juiz dos Orflos, por ter dito que certos cristaos-novos «fizeram bem em fugir para Castela». Um tal crime era imperdofivel... E o ousado ou imprudente filantropo acabou por ser preso e condenado a degredo para o Brasil por cinco anos (TT, Inquis. Lisboa, proc.° 16.898).
2 Francisca Dias, natural e moradora em Abrantes, sendo ja viiwa de Cristervio Caldeira e contando 75 anos, foi presa a 20.11.1656 por judaismo e acabou por falecer no carcere (proc.° 2600 / Lisboa).
3 Segundo o relato de uma outra Relação, este sujeito de Abrantes seria cristAo-velho e capital inimigo dos judeus, a quem perseguia. Entlo des, para se vingarem, pactuaram entre si que se viessem a ser presos dariam todos no "Meia Noite", dizendo que tinham judiado corn ele. E sucedendo tudo como se havia ajustado, foi este preso, e negando foi relaxado por convicto, pertinaz e negativo, morrendo de garrote (antes de ser lanced° a fogueira). Quando o conduziam ao patíbulo ia gritando, dizendo que-matavam um cristao-velho de todos os quatro costados, inocente. E os judeus, como confessos, sairam sambenitados corn varies penitencias.
4 De visitecoes anteriores detemos memories da de 1611, por exemplo, que incriminara os P.es Manuel de Abreu, cura da parequia de S.to Antonio de Alvega (porque "tolerante" em demasia), e Pero da Mata, do Sardoal ("atoado e de pouco assento").
5 Neste artigo os vocabulos "Visitação" e "Devassa" são utilizados praticamente como sinonimos. Corn efeito, embora semanticamente diferentes, na realidade nao se distinguiam facilmente. Uma devassa consistia sobretudo numa «pesquisa de proves e inquiricAo de testemunhas para averiguacao de um facto criminoso», ou somente nos «autos ou processos onde constam essas pesquisas». A visitacAo cobria urn campo mais vasto e por isso tendeu a ser mais utilizada e valorizada (de acordo corn as Constituicoes Sinodais), por ter uma carga menos negative, mas os objectivos tenderam a confundir-se....

 

Artigo publicado na revista Zahara nº3 - maio 2004