Por José Martinho Gaspar*
* Professor de História e membro do CEHLA

 

    Foi há duzentos anos, há dois séculos, há meia dúzia de gerações, que os franceses comandados  por Junot chegaram à nossa região. Não devemos admirar-nos que as memórias colectivas respeitantes às invasões francesas, recebidas por via da tradição oral, se encontrem já muito apagadas.  Aqui ou ali, numa ou noutra aldeia, contam-se histórias cujos pormenores já ninguém conhece, não se sabe precisar onde aconteceu, confundem-se os nomes dos protagonistas, misturam-se, inclusivamente, estes factos com realidades   históricas de outras épocas.
    A tendência para "mourificar", isto é, para dizer que isto ou aquilo aconteceu no "tempo dos  Mouros" é uma realidade que na nossa região   continua bem viva, Se é verdade que os sítios a que  a tradição oral se refere desta forma são normalmente espaços com interesse histórico e patrimonial, também é certo que na maior parte das vezes o património ou as informações em causa estão longe de ser obra de Arabes. Também no que concerne à temática que merece maior destaque neste número da Zahara — as invasões francesas —, temos um exemplo bem sintomático desta acelerada perda de memória — os "Mourões". Apesar de todos os designarem desta forma e de alguns historiadores terem considerado a estrutura existente na margem esquerda do Tejo, no Rossio  ao Sul do Tejo, os restos de uma ponte romana, as fontes escritas, há cerca de vinte anos, vieram esclarecer que se trata de um cais de sustentação de uma ponte de barcas, construído exactamente aquando da Guerra Peninsular. Ora, se no espaço urbano, onde o recurso à escrita era mais comum, onde ficaram registados em documentos escritos vários momentos da presença francesa, algumas informações relevantes se perderam e/ou deturparam, é ainda mais provável que as informações que nos chegam apenas por via da tradição oral se encontrem significativamente alteradas face a sua versão original. Ainda assim, cremos que estas memórias constituem um património que não é de descurar, mas que se encontra em risco de se perder definitivamente, pelo que e urgente proceder a sua recolha. Por vezes, os dados que nos chegam por esta via, tratam-se de bons indicadores para orientar investigações historiográficas, mas valem também por si próprios, enquanto historias que contribuíram para a definição de identidades locais, por exemplo como lendas que as comunidades fazem questão de assumir como suas.
    As divisões do exercito francês assolaram a nossa regido, em 1807, por diferentes rotas que se definiram a partir de Norte e Nordeste. As investigações, nomeadamente as que Candeias da Silva e Marques da Silva revelam nos artigos precedentes, dão-nos conta da passagem das tropas de Junot por Proença-a-Nova, Vila de Rei, Norte do concelho de Abrantes, Alcaravela, Sardoal, e Mação. Atingida a vila de Abrantes, nos dias que se seguiram, avançaram em direção a Lisboa, atingindo igualmente. Punhete, actual Constância.
As ordens do príncipe regente foram para que não houvesse reações e, de um modo geral, a oposição não se fez sentir, ainda assim, estão provadas, por exemplo no caso de Vila de Rei, baixas que se deveram a resistência face aos abusos cometidos pelas forcas invasoras.
    No Norte do concelho de Abrantes, em Água das Casas, como acontece um pouco por todos os sítios que foram vitimas das tropas francesas, conta-se que a presença dos invasores estrangeiros se caracterizou por grande violência e pelo saque de tudo o que puderam encontrar. Diz-se que os invasores conduziam as suas montadas para as "lojas" (caves onde se armazenavam os viveres), que roubavam toda a comida que encontravam e colocavam os cavalos a comer os cereais do interior das arcas em que os mesmos estavam armazenados. Desta forma, as populações viveram um Inverno de fome, pois toda a comida que as populações tinham guardado foi roubada. Quando, por vezes, nesta regido, se encontram cacos de talhas, por alturas das lavras de terras (fora do núcleo urbano da localidade), os mais velhos dizem que são as talhas que alguns mais avisados, na altura das invasões, esconderam atempadamente, salvando desse modo o seu azeite ou os seus enchidos da gula dos franceses.
    Abílio Dias Alves, septuagenário de Agua das Casas, contou-nos que sempre ouviu dizer que alguns franceses passaram uma noite na aldeia, na que era a casa da "Ti Noiva", que ainda se encontra de pe. Mas a historia de maior valentia dos seus antepassados que chegou até a actualidade e aquela que relata que, preparando-se os franceses para passar a ribeira do Codes, que nesta zona separa o concelho de Abrantes do de Vila de Rei (hoje submersa pela albufeira de Castelo de Bode), começaram a ser desafiados e insultados, do lado Sul pelos habitantes locais. A estratégia, que surtiu efeito, era a de levar à travessia da ribeira, em tempo de cheia, em local perigoso, o que terá provocado varias baixas entre os invasores.
    Manuel Batista Traquina, no livro que recentemente publicou, intitulado "O Souto, uma Cultura, Um Povo", da conta de revelações que lhe foram feitas sobre as invasões. Contaram-lhe que os franceses, que terão entrado na freguesia do Souto pela Matagosa, causaram muitos prejuízos, levando a debandada das populações para a sede do concelho e mesmo para sul do Tejo, nomeadamente para a zona de Alvega. Quando as coisas acalmaram e as populações regressaram as suas casas, já a erva havia crescido tanto nas "estrumeiras" (mato colocado nas ruas e que era pisado pela população) que as ruas pareciam searas.
Ficamos, desta forma, com uma imagem do medo que invadiu as populações, que terão demorado algum tempo ate terem a certeza que regressariam as suas casas sem perigo.
    A freguesia de Alcaravela, no concelho de Sardoal, assumiu-se como uma rota importante na deslocação das tropas francesas em direção a Abrantes. Todas as localidades terão sido atacadas, a excepção de Vale das Onegas. Este lugar escapou a acção do invasor por se encontrar encoberto por grandes arvores, que impediram que os franceses tenham dado pela existência da localidade.
    Também ficaram registados episódios de grande valentia, em que grupos de franceses foram vitimas da acção de alguns heróis. Entre São Domingos e Carvalhal, Norte do concelho de Abrantes, há um local que ainda hoje é conhecido como Lameira dos Franceses. De acordo com o que nos contou João Dias Pereira o motivo para este nome reside no facto de alter havido um ataque aos franceses, do qual resultaram varias baixas nas tropas de Junot.
    A Oliveira do Francês é igualmente um topónimo ligado as invasões francesas, o qual também se deve a acção de urn conjunto de homens valentes que na freguesia de Mouriscas mataram militares franceses. Não existe grande certeza quanto ao número de baixas que, nesta situação, as tropas invasoras sofreram, havendo quem diga que ali morreu um francês, enquanto outros afirmam que os mortos terão sido sete.
    Na zona de Abrantes, antes de avançarem para Lisboa, as tropas francesas continuaram a fazer das suas e, dessa forma, a deixar lembranças que chegaram a atualidade. Em Rio de Moinhos, a Professora Helena Salvador, especialmente interessada pela Historia da localidade, deu-nos conta de algumas memorias que recolheu. Na Quinta da Capela há uma casinha com brasão de tipo francês. Conta-se que os franceses a habitaram e que o brasão terá sido construído na época, afirmando-nos a nossa fonte que o mesmo garantidamente do século XVIII.
    Ainda em Rio de Moinhos, nas ruas que dão acesso ao Outeiro, o padre Beja e alguns habitantes ficaram na memória das gentes locais também como heróis, pois terão montado emboscada e dizimado alguns franceses. Mas nesta localidade as recordações das invasões não ficaram apenas na memória das populações locais, persistindo igualmente em documentos escritos, como é o caso de um livro da Irmandade do Santíssimo Sacramento, que abre a informar que não fez actualização do Livro de Registo dos Irmãos Mortos devido às Invasões Francesas.
    Depois de passarem pela região de Abrantes, os franceses avançaram em direcção à capital e por onde foram passando deixaram registados na memória das gentes factos que, na maior parte das vezes, foram muito desagradáveis. As violências somam-se as pilhagens, que não se limitaram aos bens de primeira necessidade e visaram também as riquezas que algumas famílias ou algumas localidades possuíam. Logo em Constância ficou celebre a perda do "Tesouro de Constância" para os franceses.


Casa, em ruínas, em Água das Casas, onde terão pernoitado alguns soldados franceses.

Referências Bibliográficas
COELHO, Antonio Matias, .200 anos das Invasões
Francesas na Foz do Zêzere», in Constância - Boletim Informativo, n." 107, Setembro/Outubro de 2007.
JANA, Isilda, Histórias à Lareira , Palha de Abrantes, Abrantes, 1997.
TRAQUINA, Manuel Batista, O Souto, Uma Cultura, Um Povo, Palha de Abrantes, Abrantes, 2007. 

Artigo publicado na revista Zahara nº10 - novembro 2007