Joaquim Candeias da Silva*
Quando em 1986 escrevi para o Dicionário Etimológico e Toponímico do Concelho de Abrantes que o significado do topónimo [Crucifixo] era de «óbvio cariz religioso», tinha em mente uma representação cruciforme vulgar, como as que encontramos às vezes em sítios de trânsito intenso (tipo "alminhas" por exemplo), firmada ou gravada em cumprimento de um voto cristão; mas estava longe de imaginar a origem ou expressão arqueológica que hoje se me afigura bastante clara e que se reveste, sem dúvida alguma, de grande significado.
Com efeito, mercê dos bons ofícios do actual presidente da Junta de Freguesia, Sr. Fernando Pires, que me havia falado em tempos da existência de uma «pedra com letras» algures no Crucifixo, foi possível localizar, há cerca de dois anos, não um mas dois troncos de coluna, que segundo testemunhos fidedignos pertenceram a um velho cruzeiro. Jaziam ambos tombados a esmo num determinado local. Contam, todavia, as pessoas mais antigas que ambas as partes haviam estado implantadas desde tempos imemoriais por ali perto, sobrepostas. E apontaram-nos o sítio exacto: era à ilharga de uma viela que hoje é conhecida por "Rua da Tapada da Moura". Ali cruzava com velhos caminhos térreos, um deles vindo da Herdade do Carvalhal, o conhecido arqueossítio de Alcolobra.
Pois bem, analisados os dois troncos, facilmente concluí que, embora complementares na função, eram de épocas e "fábricas" diferentes, e que um deles, o mais antigo, tinha inquestionável interesse arqueológico. Trata-se de um fuste tronco-cónico de granito, de grão bastante fino, porém muito alterado no seu conspecto geral, não só pela acção de agentes erosivos (naturais) como sobretudo por mão humana pouco cuidadosa. Na parte superior apresenta múltiplas escoriações e uma fractura, que praticamente impossibilitam a leitura do texto que continha; enquanto que pela base (fundo), aplanada e com uma saliência central a preceito, parece adaptar-se melhor ao encaixe sobre a outra pedra do que ao assentamento no solo.
E este velho fuste, medindo hoje 82 cm de altura por 26/30 de diâmetro, elemento de uma coluna bastante maior, era efectivamente, nem mais nem menos que... um miliário romano. Ou seja, um daqueles marcos informativos que os luso-romanos colocavam ao longo de certas estradas (por princípio as mais importantes), a assinalar aos viajantes cada milha percorrida. Eram, portanto, colocados de mil em mil passos e, como homenagem ou reconhecimento público, continham geralmente a indicação do imperador que ordenara ou sob cujo mandato fora mandada fazer ou reparar a estrada.
Que provas temos disso?
Primeiro que tudo a configuração; depois, como contraprova, o texto latino, que embora em medíocre estado de conservação devido à referida erosão natural, interpretei deste modo, na parte final da epígrafe, única legível: (...)[CONS]TA/NTII/FILIO.
Tradução: Ao [nosso senhor Flávio Valério Constantino (?),] filho de Constâncio.
A leitura dada é o mais que se consegue retirar da análise feita, com tratamento de imagem digital, e mesmo assim com algumas reservas no final da penúltima linha. Quanto aos caracteres, são os do estilo habitual nas epígrafes do género encontradas nesta região, pouco cuidados e de traçado bastante irregular, devendo isto tomar-se à conta da romanização recente dos seus executantes.
Tomando por comparação outros exemplares conhecidos, designadamente o miliário do Vale da Lama (Bemposta) [SILVA, 1989, e SILVA et Alii, 200?] e o da Lagoa Grande (Chamusca) [SAA, 1957], é de admitir que este do Crucifixo tivesse uma altura bastante superior à actual, pelo que deve ter sido amputado no topo, talvez em mais de um terço, a fim de ser adaptado a outras funções. Quais?
Tanto a toponímia do lugar, como o seu contexto arqueológico (BATISTA, 2005, e SILVA et Alii, 200?), como sobretudo a configuração da pedra nas duas extremidades (no topo tem vestígios do encaixe de uma cruz) — tudo a condizer com os testemunhos de alguns dos moradores locais auscultados —, apontam no sentido de ela ter sido reaproveitada como elemento de cruzeiro. Seria, pois, o velho crucifixo que deu origem ao Crucifixo-lugar...
A identificação desta epígrafe é, pois, do maior interesse. Se outras motivações não houvesse, ela vinha desde logo comprovar a passagem por aqui de uma via de certa importância. Mas há mais, porque este não é um sítio qualquer: tem um grande rio por perto, o Tejo (ou dois, se contarmos também com a confluência do Zêzere, não longe); tem as estações romanas de Alcolobra (Carvalhal e Coutada) e respectiva ribeira; e um pouco mais além, do outro lado do Tejo, tem a vila de Constância também com arqueosítios de certo relevo nas proximidades (lembremos dois, as "cidades" da Escora e da Pedreira); tem a fortaleza de Abrantes; e, volvendo a oeste, tem ainda o castelo de Almourol e os portos estratégicos e complementares de Arripiado/Tancos.
Quando em 1974 0 Prof. Jorge de Alarcão publicou Portugal Romano, causou certa perplexidade entre os abrantinos interessados por estas coisas ao questionar pela primeira vez uma ideia feita e repisada de séculos, a da identidade Tubucci-Abrantes: «Aquela povoação — escrevia referindo-se a Tubucci — deve procurar-se antes na margem esquerda do Tejo, talvez não longe do Tramagal, onde há achados romanos» (Op. cit„ Verbo, Lisboa, pp. 76-77). De facto, o desenvolvimento da investigação tendeu a dar-lhe razão; mas faltavam comprovativos de cultura material, de maior peso.
Ora, sem que fique desde logo provado que a famigerada Tubucci fosse por aqui [Ver meu outro artigo nesta revista], fica pelo menos a certeza de um itinerário por esta banda. Quem viesse das arribas bordejantes do Tejo, a partir de Scallabis (ou de Sellium), na margem esquerda, ultrapassada a ribeira de Alcolobra e vencida a íngreme barreira que se lhe segue, encontrava-se aqui num aprazível terraço propício a uns momentos de retempero. E talvez por isso alguém mais devoto, já com o cristianismo e a nacionalidade portuguesa definitivamente implantados, tenha aproveitado a coluna para fazer dela cruzeiro ou crucifixo, dando assim, com fortíssimas probabilidades, origem ao nome do lugar.
Na verdade, este tipo de sacralização de materiais pagãos não era raro, e tanto mais em zonas onde a boa pedra faltava. E assim, depois do Crucifixo, reconfortado espiritualmente, podia o viajante seguir caminho de cumeada a sul do Tejo, pela Chã/Fonte do Castanho, Atalaia, Vale Salgueiro e S. Miguel do Rio Torto, em direcção a Abrantes ou Alvega (Aritium Vetus?); ou, querendo atalhar percurso — indo para os lados da antiga capital da Lusitânia (Mérida) — inverter para Ponte de Sor, pelas Bicas ou Bemposta, indo assim entroncar na outra via velha de Olisipo, mais curta, Scallabis-Abelterium.
A terminar, assinala-se que a histórica epígrafe se encontra actualmente, creio, sob custódia da Junta de Freguesia, prevendo-se que venha mais tarde a ser recuperada e encaminhada para o Museu municipal1
Bibliografia:
- BATISTA, Álvaro (2005), Carta Arqueológica do Concelho de Constância, Constância, pp. 181-196.
- SAA, Mário (1957), As Grandes vias da Lusitânia, vol.l, Lisboa, pp. 241-246.
- SILVA, Joaquim Candeias (1989), «Ficheiro Epigráfico» 33, supl. Conimbriga, Coimbra, inscrição n.0 152,
- SILVA, Joaquim Candeias, BATISTA, Álvaro, e GASPAR, Filomena (2003), «Ficheiro Epigráfico» 72-73, Coimbra, inscrição n.0 3 19.
- SILVA, Joaquim Candeias, BATISTA, Álvaro e GASPAR, Filomena (200?), Carta Arqueológica do Concelho de Abrantes, em vias de publicação pela Câmara Municipal de Abrantes.
Notas
* Membro da Academia Portuguesa de História e do CEHLA.
1 Agradeço ao actual Presidente a comunicação do achado, bem como as diligências para a sua preservação; e a Alvaro Batista a colaboração prestada para o estudo da peça.
O presente texto é resumo e adaptação de um artigo mais técnico que aguarda publicação no «Ficheiro Epigráfico», suplemento da revista do Instituto de Arqueologia da Universidade de Coimbra, Conimbriga.
Artigo publicado na revista Zahara nº8 - novembro 2006