Manuel Luís Arrais conheceu cedo o amargo travo da miséria e da injustiça na sua terra natal, mas não a renega, antes lhe vota o que possui de mais precioso: os seus livros. É um dos mais importantes mecenas da Biblioteca Municipal de Sardoal, devido à quantidade e a qualidade dos recursos doados. Os contornos da sua história foram sumariamente abordados no boletim municipal “O Sardoal” n.º 94, aqui incidiremos na sua luta pela justiça e o amor aos livros, porque são indissociáveis.
 
De origens humildes, Manuel nasceu na vila do Sardoal, na Rua da Amoreira, a 14/02/1928. Viveu uma infância curta, dura e despojada, numa situação que descreve como “miséria franciscana”. Começou a trabalhar com 12 anos, a apanhar azeitona, a fazer telhas com o oleiro Morgado e a “abrir terra”. Nesse tempo, os homens reuniam-se à volta do Pelourinho da vila à espera de serem escolhidos pelos capatazes. Depressa percebeu os esquemas dos encarregados agrícolas para roubar parte do tempo de descanso ao pessoal e não se calou. Reivindicou os direitos dos trabalhadores e em retaliação foi acusado de ser comunista. A PIDE chegou a vir ao Sardoal tirar informações dele, falar com o pai e a irmã, queriam saber se era boa pessoa, se entregava o que ganhava ao pai, se iria à tropa... Ostracizado, ninguém lhe dava trabalho, à exceção do Sr. Rafael Passarinho, na sua opinião o único democrata a viver no Sardoal na altura. Desses tempos, recorda, com mágoa, os olhares acusadores de algumas assíduas frequentadoras da Igreja que se cruzavam com ele na rua e se benziam, reprovadoras.
 
Apesar de o trabalho o roubar à escola, o seu exame da 4.ª classe, em 1942, mereceu o prémio de “aluno mais inteligente e mais pobre”, instituído pelo sardoalense João António Coimbra (1857-1935), homem que reconhecia a importância da instrução, uma vez que só aprendera a ler na adolescência. 
 
Trabalhou na Metalúrgica Duarte Ferreira e foi no comboio Alferrarede-Tramagal que descobriu o jornal Avante. Já nessa altura gostava de ler e pegava em tudo o que pudesse ler. Desconhecia o perigo de ser visto a lê-lo, não fosse um colega o ter avisado. Durante o serviço militar tirou o curso de enfermagem , mas não pode exercer, porque foi pai . Ficou como maqueiro, mas a vida militar dececionava-o e decidiu ir para a Carris, onde já trabalhava o irmão mais velho. Tudo parecia bem encaminhado até que em 1950 um colega faleceu de doença. Percebendo a situação precária da viúva e dos órfãos, fez uma recolha de fundos entre os colegas, à revelia da empresa, junto do local onde recebiam os pagamentos. Entre todos angariaram 23 contos, mas a atitude foi considerada subversiva e foi preso pela PIDE. Ficou sob a mira da polícia política e voltou a ser preso algum tempo depois. 
 
Sabia-se vigiado, mas não mudou a sua rotina até que um vizinho, polícia e amigo, o avisou no mercado “Não estará na altura de saíres de cá?” Partiu a 27/01/1965, com a ajuda de um antigo colega da Carris que já trabalhava em França. Durante a viagem (Lisboa – Melgaço – Hendaye – Paris), chocou-o as condições em que viu adultos e crianças em fuga. Chegou a Paris às 19h de dia 2/02/1965. A primeira noite dormiu na rua e descreve a experiência como muito má. Meses depois regressou a Portugal para levar consigo para França o irmão, a cunhada e os sobrinhos. Recorda com emoção que levou os sobrinhos às cavalitas boa parte do percurso e que tentou ajudar quantas pessoas pode na fronteira de Hendaye. O que viu nas gares de Austerlitz e do Norte, fê-lo lá voltar várias vezes, com a mulher e o filho, para apoiar os que ali se amontoavam sem destino. Fazia-o preferencialmente aos sábados, em virtude de haver menos vigilância das autoridades. Muitos eram da Madeira, e conseguiu reencaminhar alguns para locais onde conseguiriam trabalho. Esteve 7 anos sem passaporte e quando o arranjou, de forma ilegal, o documento já trazia algumas viagens carimbadas, para não levantar suspeitas. 
 
Trabalhou na Renault e na Citroen e em 1984 regressou a Portugal. Desde então residiu na Charneca da Cotovia, em Sesimbra. Gostaria “de fechar os olhos na terra em que os abriu”, mas não obteve a tempo a resposta que desejaria. Até lá, como sempre, os livros são fiéis companheiros. Ensinam, alertam, distraem, partilham o silêncio, o saber e a vida. 
 
Se o gosto pela leitura vem dos tempos de menino, apesar de não saber de quem o herdou, já que os pais eram analfabetos, foi em Paris que começou a ler com maior ímpeto, uma vez que o trabalho lhe permitia comprar livros e contava com as valiosas sugestões de leitura de uma amiga, natural do Souto, que trabalhava no Centro Cultural de Paris, também ela fugira de Portugal, mudara de nome e secretariava o Dr. Coimbra Martins, futuro co-fundador do Partido Socialista, e sobrinho de João Coimbra. Manuel aproveitava também as referências bibliográficas das obras científicas que lia para prosseguir leituras e aprofundar temas. Por outro lado, numa época de catálogos editoriais em papel, pedia-os por telefone ou carta e escolhia mais títulos. A sua biblioteca ganhava corpo, sem que Manuel saciasse a sua sede de saber e de deleite, fazendo muitas vezes sacrifícios para comprar mais livros.  
 
Nos mais de 2000 livros que Manuel Arrais doou à Biblioteca de Sardoal, nota-se a afeição à literatura portuguesa , bem como a ânsia de conhecer a origem da vida e do Cosmos, a luta por reconhecer (sem querer ou crer) a existência de Deus, a análise às ideologias políticas e respetivas consequências, com especial enfase para o Estado Novo, a ação da PIDE, a censura, a repressão, os presos políticos, a resistência e a Revolução de Abril. Também se debruçou com insistência sobre problemas sociais como a prostituição, a condição feminina e fenómenos persecutórios como o Holocausto. Dedicou boa parte das suas aquisições também às biografias, sejam de cientistas, políticos ou poetas, tanto portugueses, como estrangeiros. Afirma que não tem autores preferidos e que lê de tudo um pouco, mas identificava-se com Alves Redol quando este escreveu algo do género “Para quem nasce pobre, a inteligência é um estorvo”.
 
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A título de exemplo, refira-se que no campo científico embrenhou-se em obras de Carl Sagan, Carlos Fiolhais, Charles Darwin, Daniel Boorstin, Hubert Reeves, Richard Dawkins, Stephen Hawking, Stephen Jay Gould, Pierre Chaunu, entre outros. Na busca contrariada e opositiva a Deus, leu Albert Einstein, Claude Allègre, Ernesto Renan, George Minois, Jacques Duquesne, James Kavanaugh, Jean Delumeau, Jean Meslier, Keith Ward, Richard Dawkins, Umberco Eco…
 
Em muitas dessas leituras, Arrais não resistiu em “conversar” com os livros e/ou os seus autores, talvez mesmo consigo, por forma a salvaguardar a memória. Assim, muitos dos seus livros contêm notas no final da obra. Segundo ele, seria para que um dia, quem os herdasse, tivesse as suas anotações em conta quando lesse os livros. Algumas dessas notas atestam apenas a data e o local em que o livro foi lido e/ou relido, mas noutras, mais ou menos extensas, perpetua a impressão que a leitura lhe causou, sendo algumas delas reveladoras da história de vida, do carácter e do posicionamento político-ideológico do leitor perante a vida e os livros: 
“Desde a adolescência que tive a paixão, a curiosidade de aprender, só após os 25 anos comecei a comprar livros, não pude nunca antes. Depois dos 50 anos a maior ou uma boa parte do meu tempo é ler. E tenho lido milhares, de prosa e poesia. Em nenhum livro ou autor encontrei tantas afinidades como neste, […] quem me dera poder ter escrito tudo isto. Com amor e com ternura para Miguel Torga” em Diário (IX-XVI) de Miguel Torga.
 
“Obrigado amigo, também eu nunca fui menino” em Esteiros de Joaquim Soeiro Pereira Gomes.
“Se não houvesse, querido companheiro, razões infindas, como há, para lutar por um mundo melhor, bastava ler e especialmente meditar no que nos deixaste escrito neste livro […]” em O Cavalo Espantado de Alves Redol.
 
Leu muito, em português e em francês, chegando a ter o mesmo livro nas duas línguas, como é o caso de Os Miseráveis de Vitor Hugo ou Crematórios de Auschwitz, de Jean-Claude Pressac, ou em edições diferentes, até porque se preocupava em comprar edições de qualidade, veja-se o que diz em Florbela Espanca: fotobiografia de Rui Guedes: “Não me foi possível comprar a 1.ª edição, comprei a 2.ª Excelente […] que admiração, que respeito mantenho e manterei sempre por a mais extraordinária Poetisa da minha Pátria.”
 
Os seus comentários, mesmo os menos favoráveis, são sempre respeitosos, veja-se por exemplo “Ainda não foi nesta obra que gostei das suas obras! Minha senhora”, relativamente à Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge ou “Primeiro livro que leio deste amigo e escritor. Pena, muita pena, que tenha alguns parágrafos que julgo bem dispensáveis quanto a cenas bem chocantes […]” que anotou em Elegia para um caixão vazio de Baptista-Bastos. Vota com um prosaico “Não gostei” Conhecimento do inferno de António Lobo Antunes ou Prosas da época de Coimbra de Antero de Quental, confessando ainda “Interessante mas não tanto quanto o título deixa prever” para Dar à luz: ensaio sobre as práticas e crenças da gravidez, parto e pós-parto em Portugal de Teresa Joaquim ou “Muito discutível” ao Os cristãos e a esquerda de Bartolomeu Valente. “Não consegui ler esta obra até ao fim, mas tem interesse” relativamente a Cem anos de solidão de Gabriel Garcia Marques.
 
Nos casos em que as leituras o sensibilizaram encontramos comentários como “Gostei. Gostei muito” a Arquivos do norte de Marguerite Yourcenar; “Maravilhoso” dedicado ao Adeus às armas de Gabriel Garcia Marques; “2.ª vez que leio o António Aleixo e de cada vez gosto mais” em Este livro que vos deixo de António Aleixo ou “Excelente. Voltarei a relê-lo em próxima oportunidade” sobre O sistema totalitário de Hannah Arendt; “Excelente, direi mais, fabuloso estudo científico. Voltarei a ler especialmente refletir nele. Não creio profundamente na existência de Deus” (Agosto de 1998) - “Voltei a ler e a gostar ainda mais” (Janeiro de 1999) em Deus face à ciência de Claude Allègre ou “Belo, muito belo, Maria! Obrigado, minha senhora” em Esta palavra mulher: canções e textos de Maria Guinot. Ou “Gostei imenso, vou voltar a ler” sobre O Cérebro de broca: a aventura da ciência de Carl Sagan e “Sinceramente, gostei” em A felicidade em Albert Camus de Duarte Mathias.
 
Existem comentários que denotam entusiasmo e impelem o leitor a exigir ao escritor ou a si mesmo uma decisão. “Fico à espera da continuação desta obra que não termina aqui, minha senhora”, refere em relação a Armandina e Luciano, o traficante de canários, de Olga Gonçalves ou “É quase urgente voltar a ler outra vez” para A desilusão de Deus de Richard Dawkins. 
 
Algumas leituras tê-lo-ão afligido. “Chocou-me profundamente este livro” escreveu sobre A sombra dos dias de Guilherme Melo; “Livro de uma verdade pungente, obrigado amigo” em Famintos de Luís Romano; “Tenho-tive muita relutância em adquirir este livro e só uma razão muito forte me levou a comprá-lo e ainda mais forte, se possível, a lê-lo. Foram várias e enormes razões que me levaram a lê-lo porque é muito difícil e até doloroso lê-lo. Mas é, como não podia deixar de ser, um testemunho exemplar desta sociedade onde tudo (ou quase) tem um preço na ótica dos donos desta sociedade podre, [onde] tudo se vende. Que triste e dramática realidade esta da sociedade em que vivemos” em O meu trabalho como prostituta de Dolores French e Linda Lee. “Cem anos depois a Igreja Católica trata as mulheres com maior desprezo ou pior, levará ainda um século a equipará-las aos homens?” em Religião, República, educação: antologia, de Tomás da Fonseca.
 
Manuel Arrais é mais reservado nos comentários às obras científicas do que às literárias, talvez por não se sentir preparado para rebater ou aplaudir os conteúdos, como o próprio confessa no fim na obra Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, de Boaventura de Sousa Santos, de escreve: “[…] a primeira e principal conclusão é que é matéria que está acima da minha capacidade de compreensão”, a verdade é que não se inibe de se exprimir sempre que a impressão do livro é marcante. “Se a vida me permitir voltarei a ler-te dentro de algum tempo, pois primeiro quero e devo refletir no que agora acabo de ler” nota ao livro Tudo o que é sólido se dissolve no ar de Marshall Berman ou “Muitos números, não compreendi” em O caminho que nenhum homem trilhou de Carl Sagan e Richard Turco.
 
Noutros fala diretamente com os autores ou deixa escapar desabafos do quanto a leitura o confrontou consigo mesmo. Há livros em que temos anotações de vários anos, demonstrando que os leu duas e três vezes. Referimos aqui apenas algumas das mais significativas:
 
Doutor Fausto, Thomas Mann: “Humanismo sem limites, voltarei a lê-lo se a vida e a saúde o permitirem”;
A sombra dos dias: “Chocou-me profundamente este livro”;
Levantado do chão, José Saramago “A ficção aqui é a realidade desta e de outras épocas, mesmo a presente”;
A balada da praia dos cães, José Cardoso Pires: “Tem um interesse muito particular para mim esta obra, pois na época acompanhei pela imprensa este tão falado e escrito crime”;
Inquisição de Évora (vol. 1), António Borges Coelho: “Não sei se alguma vez ou época a Igreja se consegue pôr ao lado da verdade, portanto dos horrores que cometeu durante o período da inquisição, será muito difícil” 
A tragédia da Rua das Flores, Eça de Queiroz: “belo romance, pena acabar tão bruscamente”;
Famintos, Luís Romano: “Livro de uma verdade pungente. Obrigado, amigo”;
A suave vingança de um combatente da liberdade, Albie Sachs: “A minha admiração respeitosa, amigo”;
Gaibéus, Alves Redol: “Que pena! Que desgosto ter-nos deixado quando tanto poderias ter dado à literatura e portanto à humanidade. Até sempre amigo querido”;
Cavalo espantado, Alves Redol: “Se não houvesse, querido companheiro, razões infindas como há para lutar por um mundo melhor, bastava ler e especialmente meditar no que nos deixaste escrito neste livro. Obrigado querido amigo”
Uma fenda na muralha, Alves Redol: “Que tragédia já é, mesmo antes de nascer, a vida dos pescadores nesta sociedade de exploradores da miséria alheia”;
 
Por vezes, Arrais entusiasmava-se e sublinhava parágrafos inteiros, é o caso da obra S. Nicolau: Tarrafal angolano de Emílio Filipe, onde assinalou “Que o povo de Angola saiba e jamais esqueça que o imperialismo não tem pátria, nem cor; que qualquer povo só poderá ser livre quando for dono do seu próprio destino e, para isso, verdadeiro dono das suas riquezas; que essa liberdade apenas existirá quando em Angola deixar de ser possível a exploração do homem pelo homem.” 
 
Em jeito de conclusão, podemos afirmar que os livros que Manuel Luís Arrais doou à Biblioteca Municipal de Sardoal espelham o leitor e o homem que foi, não só pela seleção de títulos, como pelas notas que inscreveu nos livros. Tínhamos esperança que este artigo, elaborado no âmbito dos 25 anos da Biblioteca Municipal de Sardoal (1997-2022), pudesse ser lido pelo Sr. Arrais, infelizmente não foi possível, uma vez que faleceu no passado dia 5 de novembro de 2022. Fazemos assim deste artigo uma forma de perpetuar a sua memória e reiterar a nossa gratidão pela amizade que vos votou e pelas doações que nos concedeu. 
 
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