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POR ROSA BARRALÉ - Natural do Vale de Açor, residente em Tramagal. Interessada pela cultura popular.

Não se imagina o que acontecerá às nossas aldeias no futuro, mas antes que se feche a última porta do Vale de Açor, pretende-se contar da sua história, tudo o que ainda reside na memória dos naturais vivos e dos vinte e dois residentes em Março de 2008.

Antecipando o momento em que o Vale de Açor se apague do mapa, aqui fica o testemunho duma pequena aldeia com uma organização rural estruturada, uma economia pouco mais que de subsistência e uma entreajuda pouco comum.

ORIGEM

Ignora-se a data em que as primeiras pessoas se instalaram no povoado, pertencente ao concelho de Abrantes e integrado atualmente na freguesia de Fontes. Até quatro de outubro de 1985 fez parte da freguesia do Souto.

Segundo a tradição oral, no sítio de Escada, ter-se-á instalado numa barraca, por volta de 1730, um indivíduo, que começou por cultivar umas hortas. Contudo “os bichos” acabaram por lhe destruir as culturas e como tal viu-se forçado a abandonar o local e procurar outro sítio, que também se desconhece.

Tem lógica esta tentativa, porque o local é muito próximo da nascente da Escada, a mais importante daquele vale e a que mantém um caudal quase inalterável o ano inteiro.

Poucos depois, admite-se, dois ou três anos mais tarde, segundo relato de João Francisco, mais conhecido por João Mouro, que o ouviu de outros mais antigos, outro indivíduo, chamado José Nunes, fixou-se um pouco mais abaixo da futura aldeia, na direção do rio Codes, afluente do Zêzere. Instalou-se nas Sarnadas, no local ainda hoje designado por Chã do Zé Nunes e onde alguns habitantes mais antigos diziam ter visto vestígios de paredes, anteriores às efetuadas pelas famílias conhecidas por fundadoras do casal.

Durante três ou quatro anos, José Nunes luta por se fixar, mas novamente “os bichos” e o facto de não ter constituído família foram a causa de outro abandono.

Não é difícil imaginar a solidão dum homem que tem de se bastar completamente a si próprio, num período em que medos e superstições seriam só por si inibidores de qualquer aventura de curta duração, quanto mais uma aventura para a vida inteira. Quanto aos “bichos”, diz-se que eram: javalis, lobos, raposas, lebres, coelhos, águias, etc.

Decorridos alguns anos, segundo a tradição, por volta de 1750, desta vez quatro famílias, constituídas por cinco casais, instalaram-se mesmo no coração do Vale de Açor. Dividiram as propriedades em quatro partes iguais, repartindo os terrenos mais férteis, os mais pobres, o sequeiro e o regadio. Dividiram igualmente a água, num calendário que ainda hoje se mantém e do qual falaremos em pormenor mais adiante.

0S FUNDADORES

Das quatro famílias que se instalaram em simultâneo, três nomes não oferecem dúvidas: os Pires, os Dias e os Morgados. A quarta família poderá ter tido por chefe um indivíduo chamado Hermenegildo, mas como foi aquele que repartiu o seu quarto com um irmão, o nome perdeu importância, porque ainda hoje as partilhas das águas de rega são feitas pelos Pires, Dias, Morgados e Meios Quartos.

Não se sabe de onde eram oriundos. Reza a tradição que aforaram o casal ao Estado, mas desconhece-se qualquer documento que o referencie.

ESTRUTURA DOS SOLOS

Todos aqueles vales são provenientes da acumulação de sedimentos e de calhaus arredondados de todos os tamanhos, rochas pequenas e desagregadas ligadas com argilas e outros cimentos naturais. Assim a erosão da camada superior da crosta terrestre é uma constante.

Aparece um grande maciço rochoso, na encosta do Lameirão, que contrasta com a outra vertente em forma de concha onde se aninha a aldeia e onde se encontram as terras mais produtivas: as chãs, as tapadas e os brejos.

Os solos nesta vertente não são firmes, falta-lhes o tal apoio rochoso. Em anos de grandes invernias, por vezes aparecem fraturas, bem visíveis à superfície, que desprendem e deslocam por alguns metros, grandes massas de terra. Chama o povo a este acidente geográfico: arranhadas.

AGRICULTURA

A agricultura era familiar e de subsistência, portanto variada e promíscua. Vendia-se apenas: vinho, azeite, castanhas, cepa de moita para os carvoeiros fazerem no local carvão vegetal, resina, madeira de pinheiro e cortiça, mas tudo em pequenas quantidades.

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 A água para rega, de uso comunitário, assumiu-se como um elemento fundamental de uma economia de subsistência.

Pode-se mesmo afirmar que a base da economia era o azeite e mais recentemente o pinheiro bravo. Produzia-se aquilo que cada agregado familiar necessitava para se manter o ano inteiro e depois tinha de ser bem gerido e devidamente conservado para não perder as qualidades.

As terras eram quase na totalidade cavadas. Poucos eram os que dispunham de arado e nem todos tinham burro para lavrar. Mas também o próprio relevo não facilitava a introdução de grandes alfaias agrícolas.

Assim faziam-se tornas, que mais não eram, que troca de dias de trabalho, principalmente para cavar terra amolentada e fazer as malhas.

As tornas para cavar terras amolentadas faziam-se porque, como já se viu, as águas de rega estavam divididas e, portanto, tinham de ser utilizadas obrigatoriamente naquele calendário. Assim, se era necessário regar o solo antes de se fazer a cava, o trabalho não se podia adiar, pois caso contrário a terra ficava de novo dura e sem humidade suficiente para germinar as sementes.

As malhas do trigo, centeio e cevada, eram trabalhos que careciam de vários homens e os agregados familiares nem sempre tinham os suficientes. Por isso, juntavam-se quatro, seis, oito ou mais para fazerem a malha de um, depois a do outro e assim sucessivamente, não havendo nunca dinheiro envolvido nestas permutas de tempo.

Depois das malhas, os cereais eram limpos, não nas eiras onde o vento não era certo nem soprava sempre na mesma direção, mas no Cimo da Lomba, onde a nortada não falhava. Como se tratava duma pequena depressão, a orientação do vento fazia-se sempre no mesmo sentido, o que facilitava o trabalho. Executava-se esta tarefa depois do jantar (atual almoço).

O milho, o feijão, o grão, as favas e as ervilhas, sendo mais pesados que os cereais de saluga (trigo, centeio, cevada e aveia) limpavam-se nas eiras com a ajuda de crivos.

As mulheres não usavam tanto as trocas. As vezes faziam-nas mais para não andarem sozinhas a carregar feixes de mato e sachar, do que por outra qualquer razão.

Além dos terrenos envolventes da aldeia, também partilhavam os nateiros do Codes, hoje submersos pela barragem do Castelo do Bode, na zona onde desaguavam os ribeiros do Vale da Roda, Vale Penedo e Vale Penedinho, com pessoas doutras aldeias (Maxial, Fontes, Água das Casas, Matagosa, Foz da Ribeira, Macieira, Aveleira e Cunqueiro, principalmente). Eram estes os terrenos mais produtivos, embora não fosse fácil o acesso, porque trazer os produtos pela encosta das Riscas até ao Vale de Açor era muito difícil. A Amiosa era uma zona a montante dos nateiros do Codes, também nas suas margens, mas as suas terras já não eram tão férteis. Também eram partilhadas por indivíduos das aldeias mais próximas, já enumeradas para os nateiros.

Segundo a tradição, teriam sabido escolher os locais indicados para a plantação das espécies que introduziram, principalmente: castanheiros, oliveiras e sobreiros. Os castanheiros, dos quais alguns ainda chegaram ao século XX, depois da tinta, doença que atingiu os soutos no século XIX, ter dizimado, quase por completo, esta árvore pelo país inteiro.

Até ao princípio da década de sessenta do século XX, existia uma grande desproporção nas Contribuições Prediais Rústicas (atualmente Imposto Municipal sobre Imóveis Rústicos) dos terrenos onde outrora cresceram e frutificaram castanheiros e os outros onde cresceram oliveiras e se fizeram hortas. Por isto se vê a importância que o Estado atribuiu aos castanheiros em determinada época.

Embora se vendessem algumas arrobas das castanhas produzidas, uma grande parte era consumida no local, assadas à lareira ou cozidas em púcaros de barro, ao fim da ceia, como complemento alimentar ou então cozinhadas com feijão ou arroz, como refeição principal.

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João Francisco, conhecido por João Mouro, guarda consigo algumas das mais antigas memórias do Vale de Açor.

À primeira grande cultura foi a oliveira, que se desenvolveu bem e produzia muito e de qualidade. Nos primeiros anos, segundo a tradição oral, a azeitona era transportada, para ser moída, até ao Cunqueiro (aldeia situada na margem direita do rio Codes, próximo dos nateiros já referidos anteriormente e que ficou submersa pela barragem do Castelo do Bode). O transporte nos dois sentidos era difícil e moroso. As carroças tinham de subir na direção do Maxial e no cruzamento do Marouço viravam para o casal da Conheira e daí para o Cunqueiro. O outro transporte alternativo era pela ladeira das Riscas, mas devido a sua forte inclinação, não era acessível a veículos de tração animal. Estas dificuldades devem ter motivado os habitantes do Vale de Açor a construírem, em conjunto, o seu próprio lagar, hoje em ruínas e sobre a porta do qual estava inscrita a data de 1791. Desconhece-se como foi feito o seu registo predial. Só do princípio do século XX existem documentos. Nessa altura tiveram de registá-lo em nome dum dos proprietários, acrescido de “e Sócios”, sem se fazer referência aos seus nomes. Sempre que o titular falecia, tinham de fazer novo processo, indicando novo nome, sempre com “e Sócios”. Inicialmente era um lagar de vara e só em 1937 ou 1938 passou a estar equipado com uma prensa manual, adquirida em segunda mão. O lagar era movido a agua, mas o caudal do ribeiro nem sempre era suficiente para o manter a trabalhar quando era preciso, e, por isso, foi necessário fazer uma represa com capacidade para uma moedura, barragem essa que não ficava no leito do ribeiro, mas na margem direita e era abastecida por uma levada com duzentos e noventa e nove metros, engenhosamente construída na encosta mais inacessível, a encosta do Lameirão. Captava a água antes da cascata natural do Chabouco. No intervalo de duas moeduras conseguia-se água necessária, mesmo que o ano não fosse muito chuvoso.

Além do azeite, o bagaço era aproveitado para a alimentação dos porcos. Era recolhido na cova do bagaço (pequeno poço seco revestido com uma parede de pedra) onde era muito bem calcado e temperado com algumas macheias de sal para se conservar.

A oliveira foi durante muitos anos a principal base da economia local. A melhor estrada era a que nos levava ao lagar, e, daí saíam muitos alqueires de azeite, primeiro em odres de pele de cabra e depois em bidons de folha de flandres. Havia negociantes que, em carros de bois, faziam o transporte do azeite para as cidades. Na primeira metade do século passado, levava-se ainda muito azeite para o Pontão, Ansião e Avelar, não falando no que embarcava em Alferrarede, quando os comboios já o transportavam para exportação e consumo no país inteiro.

O período da apanha da azeitona era muito alegre, cantava-se ao desafio entre grupos que andavam próximos. Os donos e familiares não eram capazes de apanhar, em tempo oportuno, toda a sua azeitona. Tinham de recorrer a varejadores e apanhadeiras que contratavam, na sua maioria, no concelho de Vila de Rei. Ao contrário da maioria dos assalariados, estes dormiam e comiam em casa dos patrões. Não podemos dizer que havia ranchos, mas havia mais alguns braços de trabalho. À noite, toda a gente gostava de ir ao lagar levar os sacos cheios de azeitona, para mais conversa e brincadeira.

Como curiosidade, é de referir que devido ao declive das encostas onde se plantaram oliveiras ser muito acentuado, construíram-se pequenas paredes, de pedra solta, no lado mais baixo do pé da árvore, com a finalidade de segurarem a terra, impedindo que fosse arrastada pelas chuvas de Inverno. Fazia-se ainda a desmoita (ato anual de cavar superficialmente um terreno de oliveiras para eliminar ervas daninhas, sem provocar grande erosão nas encostas), para manter os olivais bem cuidados.

Também toda a gente tinha as suas figueiras. Era uma fruta muito apreciada por quem andava nas hortas. Com os melhores figos, espalhados em toscos tabuleiros de tábuas de pinho, secavam-se ao sol e faziam as passas, que eram um alimento que durava muitos meses e que completava uma alimentação nem sempre correta nem completa. Os figos de mau aspeto e qualidade alimentavam os porcos.

Praticamente não havia vinha, mas também não havia parede nem separação de propriedade que não fosse uma carreira de videiras. As videiras adaptaram-se muito bem ao microclima do Vale de Açor, principalmente a casta Fernão Pires, que produzia bem, tanto em quantidade como em teor de açúcar, originando um rosé cristalino, perfumado, com grande teor alcoólico, o que lhe conferia qualidades, que garantiam sempre a sua venda. Se o espaço físico não fosse tão reduzido, tinha possibilidades de conquistar no mercado um nome de prestígio. A vindima era feita cada família por si e quase todos tinham na loja (rés-do-chão ou cave da casa onde habitavam) o seu lagar (pequeno tanque, quadrado com pouco mais ou menos de dois metros de lado. O fundo não ficava ao nível do chão, talvez a uns setenta ou oitenta centímetros de altura, para permitir a recolha do mosto nos almudes). Aqui se pisavam as uvas, se espremia e separava o mosto (sumo da uva) da casca (peles, grainhas e engaços). O mosto era medido em almudes (medida em chapa, composta por dois troncos de cone soldados e um cilindro a servir de gargalo, com a capacidade de vinte litros) e colocado em barris de castanho, mexido duas vezes por dia nos primeiros tempos da fermentação e depois só uma vez até ficar cozido. Por fim rolhavam-se os barris e ficava em repouso até ao período do frio.

Da casca, que fermentava alguns dias, ainda se fazia aguardente, utilizando pequenos alambiques familiares, feitos em cobre.

Depois da vindima, quase sempre se enchia o lagar com pinhas para acender a lareira durante o Inverno.

O pinheiro funcionava como uma cabeleira protetora para o cimo dos montes. Ocupou inicialmente um espaço seco, pouco produtivo e sujeito a grande erosão e como também era necessário lenha e mato, assim se aproveitaram terrenos com fraca apetência para outras culturas. No século XX, ocupou já terreno de oliveiras e até de terras de melhor qualidade, tornando-se a principal fonte de riqueza. O pinheiro resistiu ao eucalipto e só depois dos grandes incêndios do último quartel do século passado é que perdeu o seu lugar, embora mesmo assim não seja dos locais do concelho onde tem maior implantação.

Nas terras de regadio semeavam-se, na Primavera: batatas, milho, feijão, tomates, pepinos, pimentos, alfaces, aboboras, cebolas, alhos, melancias, melões, etc. No Inverno: forragens, couves de corte e nabos.

A maior área do regadio era ocupada pelo milho, base da alimentação da aldeia. Era uma cultura que começava pela sementeira em abril ou maio. Depois vinha o desbaste, a sacha, a amoita, a desponta, a desfolha, a apanha, a descamisada, a debulha, a seca, a limpa e só depois era armazenado em grandes arcas de madeira. A partir daí ia ser moído e só depois se fabricava o pão. A fase mais alegre da cultura do milho era a descamisada. Reunia nas eiras, aos serões, muitas pessoas que separavam as espigas dos camisos, e acabava em bailarico improvisado pela juventude presente. As eiras, tal como o lagar, eram coletivas e ainda hoje é difícil dizer quem é o seu dono.

Nas terras de sequeiro, onde a oliveira imperava, semeavam-se: batatas, trigo, centeio, cevada, aveia, grão-de-bico, feijão preto, favas, ervilhas, alhos, couve ratinha, alfaces, etc.

As árvores de fruto não abundavam. Em meados do século XX ainda as pessoas cultivavam muito pouco as árvores de fruto. Não se deixava de plantar uma oliveira para se plantar um pessegueiro, uma macieira, uma pereira ou uma laranjeira, porque o rendimento era considerado muito menor e numa comunidade que não se podia dar ao luxo de qualquer desperdício, primeiro estavam as oliveiras que davam azeite e as azeitonas que se conservavam o ano inteiro, enquanto a outra fruta durava muito pouco tempo e ainda fazia dores de barriga e diarreias (era esta a opinião generalizada). Nessa altura havia famílias que não tinham uma única laranjeira, nem uma única pereira. Tinham apenas uma macieira, às vezes um marmeleiro e uma ameixeira na beira dum caminho ou dum ribeiro. Apenas as oliveiras e as videiras tinham lugar preferencial, porque eram as únicas que davam rendimento convertível em dinheiro, que era o que mais faltava naquela terra.

O linho era tratado integralmente na aldeia, desde a sementeira, colheita, mergulhar em água durante quinze dias, exposição ao sol para secar, obtenção da fibra, fiação, tecelagem e utilização. Os utensílios rudimentares eram quase todos feitos pelos homens e dariam hoje, se existissem, autênticas peças de museu, dignas da melhor engenharia da época, desde os maços, gramas, cedeiros, sarilhos, dobadoiras, rocas, fusos, etc.

Nem todas as mulheres sabiam tecer, mas como era um trabalho com várias fases, mais ou menos todas faziam algo, como por exemplo: fiar, dobar, ensarilhar, fazer barreia às meadas, etc.

Depois de fiado obtinham-se dois tipos de fio: o linho e a estopa. O linho, proveniente das fibras mais finas e delicadas dava origem ao tecido com o mesmo nome, do qual se faziam: lençóis, toalhas de mesa, toalhas de lavatório, toalhas de cesto, guardanapos, camisas de mulher, etc. A estopa, de fio mais grosso, era um tecido saudável, pesado, utilizado nas fraldas das camisas dos homens, nos panais para apanhar azeitona e utilizar nos trabalhos das eiras, em sacaria, nas enxergas (colchão que se enchia de palha de centeio e sobre o qual se colocava o colchão de camisos), etc.  

Tanto o fio da estopa como o do linho utilizavam-se também para fazer no tear as mantas de trapos e de lã, incorporando as tiras e a lã já fiada. As tiras eram o aproveitamento de roupas velhas que já não se podiam vestir e que nesta fase ainda tinham três utilidades: esfregões para limpar o chão quando se lavava com sabão e carqueja e para vestir palha de centeio, fazendo espantalhos que assustavam os passarinhos nas hortas e as tiras. Cortavam-se, em fitas com cerca de um centímetro de largura, quaisquer trapos e cosiam-se umas às outras até fazer novelos com muitos metros de comprimento.

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Esta imagem do Vale de Açor permite visualizar os olivais que ainda circundam a localidade. Com o passar dos anos, pinhais e eucaliptais foram-se aproximando da povoação.

PECUÁRIA

Numa aldeia pequena com poucas pessoas tudo era pequeno, até os próprios animais que se criavam. No século XIX e início do século XX ainda há notícia da existência de juntas de bois, mas nos meados do século passado já não havia nenhuma, apenas machos, éguas e burros. Eram utilizados para puxar pequenas carroças, transportar lenha, mato, azeitona, produtos da horta e não se podiam queixar do tratamento, porque não trabalhavam intensamente, eram tratados a horas certas e não passavam fome. Era esta a classe dos animais que ajudava os donos nos trabalhos que exigiam mais esforço físico.

Depois vinham os animais que contribuíam para a economia do lar: porcos, ovelhas, cabras, galinhas e coelhos.

Todas as famílias criavam pelo menos um porco, mas quem dispunha de mais regadio, mais braços para trabalhar e consequentemente de mais bocas para alimentar, criava dois, três, quatro e até mais. Normalmente compravam-se pequenos, na Feira da Fossa, no dia vinte e oito de outubro, no Sardoal, em qualquer segunda-feira no mercado de Ferreira do Zêzere, ou então a negociantes que passavam. Os pequenos bácoros iam crescendo na companhia dos que se tinham comprado no ano anterior e que eram mortos por altura do Natal, período do ano mais frio, ideal para se curtirem bem as carnes e os enchidos.

As ovelhas e as cabras coabitavam muitas vezes o mesmo curral e o mesmo rebanho, embora o comportamento destas duas espécies fosse distinto, mas completava-se, porque as cabras acediam a locais onde as ovelhas não se atreviam a chegar. Havia rebanhos e muitas vezes o pastor guardava animais de vários donos, porque como já se disse tudo era pequeno, até os rebanhos. Além dos borregos e cabritos, que se vendiam ou se comiam pela Páscoa, pela festa do Maxial e pelos Santos, fazia-se um excelente queijo, de pequeno tamanho, coalhado com cardo cortado e seco no Verão e que se guardava em bolsas de retalhos até ao Inverno e Primavera do ano seguinte, quando era utilizado. Muitas vezes o queijo era o único conduto que se comia depois do prato da sopa. Guardava-se em azeite para o ano inteiro, em asados de barro vermelho vidrado, mas também se comia fresco e seco. A partir do momento em que borregos e cabritos já comiam, separavam-se das mães durante a noite. Pela manhã, ordenhavam-se estas e só a partir daí é que os filhotes podiam mamar de novo. Quem não dispunha de espaço para separar fisicamente a mãe do filho, colocava nesta, uma espécie de soutien, feito duma saca velha, que impedia o borreguito ou o cabrito de poder mamar.

Havia ainda quem, em vez de vestir a mãe, pusesse um barbilho (espécie de freio feito de madeira) na boca de borregos e cabritos, o que os impedia de sugarem o leite materno.

As ovelhas e os carneiros eram tosquiados em abril, quando as noites já não eram demasiado frias. Atavam-se as patas dianteiras uma à outra, depois as traseiras e finalmente as quatro, de modo a que o animal não sofresse, mas ficasse imobilizado e se pudesse cortar a lã, com tesouras, sem ferir o ovino e sem ele magoar os tosquiadores, que era mais uma das atividades dos donos e das donas.

Depois de tosquiada, a lã era lavada com água bem quente, sem detergente, para perder o surro (a gordura, a lanolina) e toda a sujidade acumulada.

A seguir era carapeada, que consistia em abri- -la à mão para ficar mais fofa e ainda se poderem retirar sementes e restos de mato que estivessem agarrados. Com a lã de cada animal já carapeada fazia-se um volume cilíndrico, dentro duma peneira, a que se chamava velro. Do velro carregava-se a roca que as mulheres, aos serões, ou as mais velhas durante o dia, fiavam para depois tecerem a lãzinha, utilizada principalmente nas saias da cabeça, que eram franzidas na cintura, com muita roda e compridas, para poderem agasalhar do frio e proteger da chuva os ombros e todo o tórax. Depois de feitas eram tingidas em casa, em cores escuras, com tinta para lã que compravam no Sardoal ou em Abrantes. A arte de colocar a saia pela cabeça é que a transformava num agasalho confortável e cómodo. Pegava-se na saia pela cintura e punha-se o franzido do cós na cabeça, tendo o cuidado de deixar a outra parte do cós no pescoço, mas pelo lado de dentro. Depois compunha-se como uma capa que se estendia pelas costas abaixo e protegia a mulher completamente, não lhe tolhendo os movimentos. Este vestuário, por ser feito de lã virgem, não se molhava com facilidade.

De lã e linho faziam-se, no tear, lindas mantas de agulha e tapetes. Também se faziam xailes triangulares, em tricot, com agulhas feitas de varetas de sombrinhas velhas, que já não tinham qualquer outro aproveitamento.

As galinhas e os coelhos constituíam a fauna miúda, mas tinham grande peso na economia da família.

Punham-se a chocar, durante três semanas, onze ou treze ovos (sempre número ímpar) debaixo de uma galinha, que era alimentada apenas uma vez por dia, e colocada de preferência, num local escuro e sossegado. Quando os pintainhos cresciam, as frangas tinham vida longa assegurada se fossem boas poedeiras, enquanto dos galos, só o maior e mais bonito tinha um ano e pouco de vida garantida, porque no ano seguinte era repasto dos donos no dia de Carnaval e substituído por novo sucessor escolhido de igual modo. Dos outros, alguns não chegavam mesmo a passar de frangos. Eram comidos em casa, vendidos nos mercados de Ferreira do Zêzere, para que com o seu dinheiro a dona comprasse, no mesmo sítio, sardinhas e outras coisas que fizessem falta, oferecidos a pessoas que estivessem doentes, ou de presente a alguém a quem devessem favores. Os ovos eram vendidos a negociantes que passavam semanalmente e às vezes duas vezes por semana.

Com os coelhos a história era muito semelhante, mas aqui nem todas as fêmeas tinham sorte, porque as criadeiras não eram tantas como as galinhas e por isso muitas eram também comidas jovens. Tal como os frangos, acabavam vendidos no mercado de Ferreira e à mesa dos donos, porque não eram oferecidos aos doentes nem eram tão utilizados como presentes.

AS AZENHAS

Antes de encher a albufeira do Castelo do Bode, o ribeiro do Vale de Açor, tinha várias azenhas, tanto a montante como a jusante do lagar. As que estavam para lá deste, ficaram debaixo de água.

Todas as famílias tinham parte num desses engenhos, onde transformavam em farinha o milho, o trigo, o centeio e às vezes até as favas. A cevada e a aveia, que também se semeavam, eram utilizadas nas rações dos animais, ou quando o mau tempo não permitia que buscassem comida fora. Por heranças sucessivas cada azenha era utilizada em dias certos pelos coproprietários, quando o caudal do ribeiro permitia que funcionassem. Por isso durante o Verão tinha que se recorrer aos moleiros doutros locais, que passavam com as suas bestas para recolherem o grão e dias mais tarde regressarem com a farinha, depois de terem tirado a respetiva maquia (uma quantidade de farinha, acordada previamente, que servia para pagamento da moagem e do transporte). Daí que havia quem preferisse ir à Foz do Codes moer o cereal, onde a água nunca faltava e ficava barato. A farinha é um produto que não tem um prazo de utilização muito alargado, perde qualidades em contacto com o ar e daí as pessoas não poderem moer os cereais no Inverno para utilizarem durante o Verão. O termo local para designar esta alteração de qualidade e paladar era de que a farinha ardia.

A REGA EA DIVISÃO DAS ÁGUAS

Deveria correr selvagem a nascente da Escada, que brotava poucos metros acima do local onde se diz que era a cabana do primeiro homem que se fixou temporariamente no Vale de Açor. A essa nascente, de caudal regular todo o ano, se deve a fixação das populações, porque garantia a rega sem sobressaltos. Apesar de tudo, a água não era tanta que não tivesse de ser muito bem gerida. Foi dividida em quatro partes iguais pelos Pires, Dias, Morgados e Meios Quartos. Cada propriedade tinha água de dezasseis em dezasseis dias, exceto os Morgados que tinham de doze em doze. Já se perdeu no tempo a razão que levou a esta exceção, mas ficou no ar que se tratou de uma habilidade qualquer, pouco correta, mas o que foi ao certo, já ninguém sabe explicar. Mas fosse como fosse as águas continuam a ser distribuídas de dezasseis em dezasseis dias para uns e de doze em doze dias para os Morgados. Cada parcela de terra tem um certo tempo para ser regada e, quando se vende essa propriedade, as horas de água que lhe correspondem estão incluídas no valor da transação. Em partilhas e sempre que uma propriedade é dividida irmãmente, a água é dividida também no mesmo número de partes, estipulando-se a ordem porque cada um dos novos donos passará a utilizá-la no futuro.

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O caudal permitia apenas que uma pessoa regasse de cada vez. Como tal era necessário resolver o problema da rega noturna, pois no Verão ninguém se podia dai- ao luxo de desperdiçar água. Regar de noite não era tarefa fácil, principalmente quando não havia luar. Para ultrapassar esta situação, construíram um tanque com mais ou menos doze por oito metros, cuja capacidade era suficiente para armazenar a água de toda a noite.

No início do período das regas, quem as iniciava, começava ao nascer do sol, mas o sistema era tão perfeito que, ao fim dos dezasseis dias, já não começava ao nascer do sol, mas às onze horas, depois às dezassete e assim sucessivamente até correr o horário completo e voltar de novo ao sol nado. Mais tarde, ajustou-se a hora solar à hora oficial, mas tudo o resto se manteve. Houve sempre um relógio de referência por onde todos se orientavam em matéria de regas. Alguns mais idosos ainda falam dum relógio de sol, que depois foi substituído por um relógio mecânico. Nos meados do século XX, era o da Ti Maria Moura (Ti era o tratamento às pessoas mais velhas, equivalente a Senhora ou Dona) e por ele se acertavam os das pessoas que tinham água a correr para o tanque, durante a noite. Era necessário fazer marcações numa vara com vários orifícios, espetada no fundo do tanque, para se saber quando a rega mudava de dono. Portanto, conforme o tempo de água de que cada um dispunha, no dia seguinte, utilizava-a pela ordem inversa da entrada no depósito.

Ao meio-dia, o tanque tinha de estar completamente vazio, porque, devido ao calor intenso, poderia o dono da água querer regar mais tarde, quando estivesse mais fresco, tendo a obrigatoriedade de tê-lo vazio ao pôr-do-sol, para o utilizador seguinte.

Para aumentar o caudal de rega, nos períodos mais críticos, captavam-se pequenas nascentes na ribeira das Corgas, Malhada de Baixo, ou Malhada do Vasco e Caldeirões, que seguiam por levada até encontrar, no vale da Cabeça Gorda a que vinha da nascente da Escada. Esta levada era limpa anualmente por todos os utilizadores, num dia previamente acordado. Em 1983, foi substituída por mil e quatrocentos metros de tubo de rega, enterrados, mas no resto o esquema funciona ainda.

Nas Corgas, a água não se deslocava por gravidade. A nascente era num poço, sendo forçoso usar balde e picota para a lançar na levada. Chamava-se a esta tarefa, o tombo. Hoje já não se faz, é necessária uma grande caminhada e não é rentável.

As levadas, em curvas de nível, serviam também de caminho pedonal.

O tanque de que já se fez referência era polivalente. Diz-se que foi construído poucos anos depois do lagar, portanto, finais do século XVIII início do século XIX. Já lhe introduziram modificações que lhe alteraram a arquitetura e a beleza inicial de elevado nível técnico e estético para o local. Como é evidente, o tanque foi construído abaixo do nível da levada que corria sobre a parede da parte superior. Aí a água podia ser desviada tanto para rega como para ficar retida no tanque. Corria para este, num rego escavado na própria pedra, que terminava numa bica. Nessa bica enchiam-se os cântaros até que, em 1950, foi inaugurada uma fonte dedicada a Santo António, conforme pequeno azulejo incrustado na parede. Ao lado havia a pia onde os animais iam beber. À volta do tanque existiam batedouros de pedra, fixos na sua estrutura onde se lavava a roupa durante o Inverno e de manhãzinha no Verão, antes do nível da água baixar demasiado. Mas para se lavar a roupa, quando o nível do tanque estava baixo, havia à sua saída outro tanque mais pequeno, para duas ou três pessoas poderem lavar, só que neste caso era necessário saltar lá para dentro.

Atualmente o tanque perdeu a importância que teve na comunidade. As pessoas são poucas, já não se vai à fonte porque há água canalizada, a roupa lava-se em casa nas máquinas de lavar, e, as poucas pessoas que ainda cultivam alguma coisa construíram tanques nas suas propriedades, onde armazenam as horas de água a que têm direito e utilizam quando querem.

SESTA

A sesta começava no dia vinte e cinco de março, e, prolongava-se até oito de setembro. Eram duas horas de descanso, desde o meio-dia solar até às duas da tarde, incluindo o tempo da refeição.

Antigamente, o dia vinte e cinco de março era dia santo e havia a tradição de se rezarem as cem Avé-Marias a Nossa Senhora, persignando-se toda a gente a cada uma delas. No final de cada dezena, rezavam a seguinte oração:

Arreda-te para lá Satanás

Tu não sabes e eu é que sei

Que no dia de Nossa Senhora de março

Cem Avé-Marias rezei

E em todas elas me persignei

Os homens, se passassem a sesta em casa, às vezes faziam qualquer pequeno biscate, como por exemplo picar mato, maçar o linho, mas muitos aproveitavam para dormir um bocado. As raparigas ajudavam as mães ou faziam o enxoval. Se andavam a trabalhar longe de casa, levavam o jantar e depois faziam bordados e rendas, enquanto se divertiam com brincadeiras e ditos. Os homens dormiam ou conversavam.

No tempo da sesta, tomava-se o desjejum antes de se ir para o trabalho, o almoço pelas nove horas, o jantar ao meio-dia, a merenda às cinco da tarde e a ceia à noite. Nos meses em que não havia sesta, não havia merenda, e, no tempo da azeitona almoçava-se antes de sair de casa, portanto não se tomava o pequeno-almoço.

0 PALHEIRO DOS POBRES

Não se sabe já como era no início do casal, mas até aos anos setenta do século XX havia ainda um palheiro, cujo proprietário permitia a utilização pelos pedintes que andavam de terra em terra esmolando. Tinha espaço para fazerem as refeições e nele dormiam tranquilamente. Tinha sido uma casa de habitação dos Dias, da segunda ou terceira geração, pois tinha sobre a porta a data del826.

Corriam o casal todo, pedindo e rezando, a cada porta, pelas almas da família e pela sorte e saúde dos familiares vivos. As rezas eram tanto ou mais fervorosas consoante o valor da esmola.

Os pedintes, constituídos por doentes, deficientes motores, cegos, simplórios, pessoas na maioria incapazes de ganhar o seu sustento, levavam as notícias aterradoras e as felizes e, até recados de umas aldeias para as outras. Tanto os cegos como os deficientes motores andavam na companhia de outros que os ajudavam, mas havia invisuais que contratavam crianças, a quem pagavam ordenado, para os acompanhar. Alguns passavam com regularidade e mais frequência, enquanto outros passavam só de tempos a tempos. Não há notícia de problemas originados por eles, e, como no casal não havia taberna e a maioria gostava do seu copito, não ficavam por ali durante muito tempo.

Eram mais do sexo masculino que do sexo feminino, mas também apareciam mulheres de vez em quando.

IN: BARRALÉ, Rosa – Vale de Açor I: tradições para recordar. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 6. Nº 11 (2008), p. 42-49