arquivo historico

Eduardo Campos*

Abrantes não tem uma antiga tradição historiográfica. Existe uma imprecisa notícia acerca de uns Apontamentos sobre antiguidades locais redigidos nos finais do século XVI ou inícios do XVII por um dominicano abrantino, hoje desaparecidos1, e praticamente nada mais. Foi só em meados do século XIX, em resultado da circular de 11 de Novembro de 1847, pela qual o Governo ordenava às câmaras municipais do continente e ilhas que dessem início à redação dos anais do município (ordem renovada em 22 de Abril de 1854), que a Câmara Municipal de Abrantes, logrou concretizar a decisão governamental, valendo-se para esse efeito do interesse demonstrado por um capitão do Regimento de Infantaria n.º 11, que nesse mesmo ano fixou residência em Abrantes.

O trabalho empreendido pelo capitão Manuel António Morato, intitulado Memória histórica da notável vila de Abrantes para servir de começo aos anais do município, abrange cronologicamente o período que decorre entre a fundação de Abrantes até 1866. Posteriormente, um advogado natural de Abrantes deu continuidade aos Anais até ao ano de 1868, mas a sua manifesta falta de aptidão para tal tarefa levou a Câmara Municipal a suspender a redação do manuscrito, que permaneceu intocável no arquivo da Câmara perto de um século.

Compreende-se deste modo que não tendo existido uma continuada investigação histórica, principalmente realizada por abrantinos, os arquivos das diversas instituições locais não tivessem merecido particular atenção por parte das entidades por eles responsáveis.

É verdade que nos primeiros anos de regime republicano um vereador municipal - Manuel Lopes Valente Júnior - alertou os seus pares para a precária situação do arquivo municipal, propondo a inventariação da documentação e outras medidas tendentes a melhorar as condições do mesmo, mas ignoram-se que medidas foram realmente tomadas. Convém, no entanto, dizer que tal proposta não visava facilitar o acesso à documentação por parte do investigador, mas tão somente facilitar o exercício burocrático dos serviços de secretaria.

No entanto, em janeiro de 1922, e sob proposta do mesmo vereador, foi criado o então denominado Museu Regional D. Lopo de Almeida, e ao abrigo da legislação vigente e regulamentar, o seu diretor fez recolher nele as documentações existentes nas duas igrejas paroquiais, na Câmara Municipal e também, um pouco mais tarde, na Sf Casa da Misericórdia.

Neste trabalho, porém, deparou logo com obstáculos e resistências, nomeadamente por parte da Câmara Municipal, que por diversas vezes se recusou fazer a entrega de antigos livros de atas e de outros documentos genericamente designados por pergaminhos.

Criado o Museu e, enfim, integrada nele a documentação histórica do concelho, poder-se-ia pensar estarem reunidas as condições mínimas que incentivassem ou promovessem a investigação histórica local, mas não foi nada disso se verificou.

Antes de mais convém referir que o Museu foi criado em resultado duma velha disputa bairrista com um concelho próximo e, quando tal sucede, os resultados nunca são famosos.

Desde logo, o seu “quadro pessoal” - 1 diretor e 1 guarda - saiu da prata da casa, sem qualquer preparação arquivística ou museológica, pelo que as transferências da documentação foram feitas confusamente, de modo parcial e sem qualquer planeamento, originando a truncagem de séries, desorganizando ainda mais os já desorganizados acervos documentais. Em resumo, o que então se fez foi uma simples mudança de local de armazenamento da documentação, porque no restante tudo se manteve na mesma - se é que nalguns casos a situação não se agravou.

Não há memória, nem existem registos no Museu, que alguém, que algum investigador, tenha podido ou conseguido consultar a documentação ali guardada, desde 1922 até meados da década de 70 do século passado, ou seja, durante mais de meio século a documentação do concelho esteve trancada a sete chaves, inacessível a qualquer investigador, com as consequências que se podem imaginar.

Após o estabelecimento do regime democrático, o Museu passou a ser tutelado pelo Instituto Português do Património Cultural, mas nem por isso se alteraram as condições de preservação e de acessibilidade à documentação.

Não havia, nem nunca houve, qualquer inventário, mesmo rudimentar.

A documentação mantinha-se anarquicamente atada em grandes maços, empilhados uns sobre os outros, sem a menor unidade ou sequência, em inadequados armários de madeira.

Não existiam as mínimas condições de trabalho e a única mesa disponível era a estrutura de um púlpito - peça museológica.

Não existia iluminação elétrica e, por incrível que isto possa parecer, a diretora do Museu não estava autorizada pela tutela a facultar a consulta de qualquer documento.

O formulário para o acesso à documentação consistia numa detalhada exposição feita ao IPPC sobre o tipo de investigação a realizar, e aguardar meses para que aquele Instituto concedesse autorização para a consulta de documentos que ele desconhecia se existiam ou não.

Entretanto, uma nova consciência ia despertando para o património em geral e para a realidade de que o Museu promovia institucionalmente o boicote sistemático a toda e qualquer tentativa de investigação, com manifesto prejuízo para a história local e nacional.

Um passo significativo para a inversão deste estado de coisas foi dado em 1980 com a criação da Associação para a Defesa e Estudo do Património da Região de Abrantes, que ousou desafiar o majestático Instituto, propondo-lhe a execução gratuita de um inventário geral da documentação do Museu. A resposta foi a que se esperava: indeferido.

Não desarmou a Associação e se o Poder Central lhe fechou as portas da cooperação, as do Poder Local foram-lhe franqueadas e assim, na sua reunião extraordinária de 20 de Fevereiro de 1983, a Câmara Municipal de Abrantes, sob proposta do vereador José Alves Jana, decide criar o Arquivo Histórico do Concelho de Abrantes com os fundos documentais do seu arquivo anteriores a 1930.

Estava dado o primeiro passo para que os suportes da nossa memória coletiva passassem a ser tratados e encarados como raízes da nossa existência. Mas faltava a documentação do Museu... e eis que um dia, em 1984, uma fortíssima trovoada se abateu sobre Abrantes, fazendo perigar seriamente a conservação dos documentos do Museu e o próprio templo de Stª Maria do castelo. Em defesa legítima dos seus interesses, a Câmara Municipal alertou o IPPC para o sucedido, obtendo em resposta aquilo que era esperado, ou seja, a ameaça da transferência de todo o acervo documental para um arquivo estatal, sem guia de retomo.

E porque de documentos e de história se tratava, regressou-se ao tempo em que se assaltavam castelos. Um grupo de homens bons, tendo à sua frente o presidente José dos Santos de Jesus, tomaram o castelo, levando dali os documentos para o recém-criado Arquivo Histórico do Município.

Permitam-me que saliente aqui a decisão e atuação deste “homem da ferrugem”, como ele então se definiu, pela atitude firme e corajosa que assumiu, com graves riscos institucionais - homenagem extensiva a José Alves Jana, ao tempo vereador da Cultura, elemento fundamental em todo este processo.

Seguiu-se um moroso e complexo trabalho de reconstituição e organização dos fundos de acordo com a sua proveniência. Fez-se uma classificação adaptável à natureza da documentação, procedendo-se à sua descrição ao nível da unidade documental. O trabalho desenvolvido possibilitou que ao fim de dois anos e meio fosse publicado o Quadro de Classificação Geral das séries documentais, que foi distribuído por inúmeras instituições culturais e científicas do País.

É por isso gratificante a quem nele trabalha e ativamente colaborou na sua criação e organização ouvir as seguintes palavras:

... os meus maiores agradecimentos à Câmara Municipal de Abrantes por me ter feito ver qualquer coisa que eu em muitos anos de trabalho em arquivos, rara ou nenhuma vez tive ocasião de ver - o estado magnífico de organização do Arquivo Histórico do Concelho desta cidade.

É realmente qualquer coisa que merecia ser divulgada a nível nacional com um desenvolvimento que me parece que a Câmara, mesmo que tenha os seus pruridos de modéstia, não deve por mais tempo manter.

A organização deste arquivo, o estado de conservação das peças, a maneira como elas estão apresentadas, são qualquer coisa que merece por todas as câmaras do país, por todos os municípios do país, ser conhecidas. Deve ser um exemplo para o estado, por vezes triste, por vezes abaixo de toda a crítica, em que muitos arquivos camarários se encontram. - Oliveira Marques em Abrantes, em 8 de dezembro de 1988.

O trabalho de organização, modernização e de inovação continuou:

Em 1992 foi publicada uma 2ª edição do Quadro de Classificação e ainda neste ano foi publicado o Inventário da Documentação do Século XVIII apresentado no Congresso Internacional de História do Século XVIII, realizado em Lisboa.

Em 1993 organizou o I Encontro Nacional de Arquivos Históricos e Locais.

Estes e outros factos deram ao Arquivo Histórico uma grande credibilidade, manifestada através da doação ou depósito de arquivos particulares ou públicos, tais como:

Arquivo das juntas de freguesia do Pego e de S. Miguel do Rio Torto; Arquivo das Jornadas Culturais Arquivo do Cineclube de Abrantes; Arquivo do Hóquei de Abrantes; Arquivo do Montepio Abrantino Arquivo da Stª Casa da Misericórdia; Arquivo da família Damas Salgueiro.

No que respeita a instrumentos de descrição o Arquivo editou um CD-R com o sumário de cerca de 4.000 documentos contidos nos livros de registo da Câmara, que constitui o fundo documental mais antigo do Município.

Neste momento dispõe de vários catálogos e índices informatizados, tais como:

Igrejas de S. João, S. Vicente, S. Pedro, Stª Maria do Castelo e Irmandade do Senhor dos Passos (de 1248 ao século XX);

Livros de atas da CMA (54 livros digitalizados, de 1616 a 1719);

Livros de arrematações da Câmara (1607 a 1941 - em construção);

Róis de confessados e comungados da igreja de S. João (século XIX - em construção);

Livros de escrituras da Câmara (1835 a 1981);

Livros de testamentos da Administração do Concelho (1702 a 1934);

Espólio da família Damas Salgueiro;

Livros de enterramentos no cemitério municipal (1857 a 1968);

Núcleos cartográfico e fotográfico (o último totalmente digitalizado exceto os grandes formatos); índice dos livros 1 e 2 de registo de irmãos da Stª Casa da Misericórdia (séculos XVI e XVIII); Inventário da documentação do século XVIII...

Sendo a missão do arquivo:

Promover a execução da política arquivística do Município;

Salvaguardar e valorizar o património arquivístico local enquanto fundamento da memória coletiva e individual e fator de identidade concelhia e ainda como fonte de investigação científica;

Promover a qualidade do serviço prestado enquanto recurso fundamental da atividade administrativa e, nesse sentido, promover a eficiência e eficácia dos serviços do Município, nomeadamente no que concerne às suas relações com os cidadãos;

Salvaguardar e garantir os direitos dos cidadãos e instituições, consubstanciados nos arquivos à sua guarda.

Nesta orientação prosseguiremos com a certeza de prestarmos modestamente um relevante serviço aos cidadãos, ao concelho e ao país.

Notas

* Eduardo Campos, falecido no dia 21 de novembro de 2003, desempenhou as funções de Coordenador de Gestão Documental dos Arquivos da Câmara Municipal de Abrantes e foi também um dos fundadores do CEHLA, em que esta revista se insere. No presente texto, apresentado publicamente nas / Jornadas de História Local, em Abrantes, o seu autor destacava o papel de algumas personalidades no processo de criação do Arquivo Histórico do Município. Essas pessoas são, porém, unânimes em considerar que o principal dinamizador desse processo foi o próprio Eduardo Campos e fazem questão que lhe seja feita essa justiça.

IN: CAMPOS, Eduardo – O Arquivo Histórico do Concelho de Abrantes. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 2. Nº 3 (2004), p. 105-108