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Por Francisco J. Esteves Valente - Pároco de Mouriscas, Santiago de Montalegre e Alcaravela.

O nicho do Senhor Jesus dos Aflitos é um pequeno monumento de fábrica popular pertencente à Paróquia de Mouriscas. Encontra-se situado no lugar da Venda, junto à atual estrada nacional n.º 3, no antigo caminho que conduzia ao centro da aldeia de Mouriscas, onde se encontrava a estalagem que deu o nome ao antigo lugar.

Este simples monumento tem a sua origem ligada a um voto, feito por um homem, António Ferreira Sant’ana, que aliava a tarefa de agricultor à atividade comercial, percorrendo vários lugares como almocreve.

António Ferreira Sant’ana nasceu nos finais do século XVIII, no dia 27 de julho de 1789, na paróquia de S. Miguel da Alagôa, Concelho de Portalegre. Cedo começa a acompanhar o pai na sua itinerância, transportando mercadorias no dorso das bestas de carga, principalmente de burros, já que este tinha por ofício almocrevar. Logo aprende o ofício e inicia conjuntamente com ele a mesma atividade.

As deambulações do almocreve António Sant’ana decorreriam principalmente entre Portalegre, centro urbano, perto do lugar onde vivia a família, e Abrantes, onde se encontrava o porto do Tejo, que, navegável até Lisboa, permitia uma ligação comercial facilitada à capital do Reino, levando e trazendo os bens necessários ao quotidiano.

Neste percurso, um dos lugares de interrupção e descanso era a Estalagem em Mouriscas, lugar de pernoita para pessoas e animais que se movimentavam ao longo do caminho do Tejo. Partindo do Rossio ou da vila de Abrantes, o primeiro troço do caminho passava o pontão do ribeiro da Vide e seguia encosta acima até ao alto do monte da cabeça de Alconde, passava depois a ribeira, rumava pelos Carvalheiros e dirigia-se ao centro da freguesia de Mouriscas.

Nestas viagens feitas periodicamente, não lhe foi indiferente a presença de uma rapariga, com quem foi fazendo conhecimento e que vivia numa casa à beira do caminho no monte da cabeça de Alconde, tinha esta a graça de Luiza Lopes. António Sant’ana já não era novo e, com 32 anos em 1822, decide-se pelo matrimónio. Constrói em Mouriscas, no lugar do Tojal, uma quinta a que dá o nome do seu patrono onomástico, St° António, para aí formar a sua família. O casal foi abençoado por significativa prole, sete filhos: três filhas, Maria, Luíza e Tereza e quatro rapazes, Joaquim, Severino, João e José, dos quais, um veio a morrer novo, outro foi médico e outro padre.

Apesar de se ter fixado nesta sua nova terra e de se ter tomado proprietário, continua a exercer o seu ofício de recoveiro. Estas viagens eram na maior parte das vezes solitárias e expostas a grandes perigos, já que feitas por caminhos ermos, desertos, sem grandes movimentações, sem meios de transporte a circular. Os bens que trazia eram cobiçados, pois os tempos corriam difíceis e bandos de salteadores emboscavam os caminhos roubando as cargas, maltratando e até tirando a vida a estes comerciantes.

Numa destas jornadas, ainda perto de sua casa, António Ferreira Sant’ana confronta-se com um grupo de três bandoleiros. Vendo-se em grande aflição invocou os céus, suplicando proteção ao Senhor Jesus que acode aos aflitos, tendo obtido milagrosamente resposta aos seus rogos e encontrando-se salvo do perigo, sente-se imediatamente agradecido portão grande benefício. Nesse momento formula diante do Altíssimo a decisão de manifestar o seu reconhecimento e faz o voto de, nesse mesmo lugar, erguer uma memória em sinal de gratidão. Decorreria nesse oitocentos a década de trinta quando adquire um pequeno pedaço de terreno no lugar do prodígio, e consagra-o ao Senhor dos Aflitos. Com argamassas e pedras faz erguer um altar encimado na forma de um nicho, onde manda colocar um Cristo crucificado, de madeira. Fica perpetuada a memória do milagre e ao mesmo tempo, os caminheiros aí poderão encontrar a proteção.

O lugar adquiriu grande significado, não era indiferente a quem o conhecia ou passava pelo caminho. Tomando-se local de manifesta fé e devoção, quem passava elevava o seu olhar para o pequeno Calvário, fazia o sinal da cruz acompanhando invocações e preces, os homens descobriam-se elevando os seus chapéus ou tirando os seus barretes. Quem passava por momentos de aflição, tormentas ou graves problemas, prontamente acorria ao Senhor, confiado do Seu poder. As promessas eram cumpridas... pequenas luzinhas de azeite que teimavam vencer a escuridão das noites alumiando o Senhor crucificado, cestas de merendas de pão trigo, tão escasso e raro nesses tempos, aí eram distribuídas em gestos de reconhecimento, às crianças ou aos pobres. Os féretros transportados à Igreja Paroquial para as exéquias aí faziam paragem obrigatória para uma oração. Rapidamente este local se assume com forte poder aglutinador onde convergem expressivamente a fé e o fervor religioso de tantas pessoas.

Muitas destas manifestações já as não presenciou o fundador que viria a terminar os seus dias tendo oitenta e cinco anos. Faleceu pelas dez horas do dia dez de janeiro de mil oitocentos e setenta e cinco. Presenciaram-nas, contudo, inimigos da religião e anticlericais que, cada vez mais militantes na hostilidade dos radicalismos dos movimentos republicanos, não viam com bons olhos aquele lugar de tantas manifestações públicas. A partir da década de oitenta a monarquia agonizava aceleradamente e os livres-pensadores fermentavam cada vez mais os seus ideais ateístas e laicos, começando a emergir nestas paragens. Por esta época, na calada de uma noite, há quem se abeire do nicho e mãos arrancam ao seu lugar o crucifixo do Senhor dos Aflitos. Em frente, do outro lado do vale, no cabeço dos Pinheiros, a imagem venerada é consumida pelas chamas de fogo que as mesmas mãos acenderam.

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Na manhã seguinte, uma mulher, a Adelina Pegacha, dá conta do sucedido, acorre a contar à patroa e logo a notícia corre veloz, causando espanto e sobretudo choque, anunciando o que acontecera. Imediatamente se fizeram diligências para informar também os familiares, filhos do edificador, que viviam noutras terras. Sobretudo o filho Severino Ferreira Santana que era padre, tendo sido ordenado em Castelo Branco e que paroquiava Alvega, do outro lado do rio, onde esteve mais de quarenta anos, vindo a falecer em 1903.0 padre Severino deslocou-se a Mouriscas para presenciar o sucedido. Decide então reparar o nicho e manda colocar no lugar do primeiro crucifixo um outro, mas desta vez em painel de azulejo, mais resistente às ações malfazejas, onde ainda hoje se encontra.

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Mais recentemente, a zona envolvente e o nicho foram objeto de alguns melhoramentos e de novo alguns descendentes do fundador, a Sra. D. Helena Santana Marques e seu filho Sr. Dr. Severino Santana Marques, neto, mandaram colocar no primitivo lugar um novo crucifixo, agora com a proteção de uma grade.

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O Senhor Jesus dos Aflitos continua, deste modo, junto ao caminho, símbolo do itinerário da vida, lembrando a todos a proteção divina aí materializada, e onde, ainda no presente, acorrem tantas pessoas que cheias de confiança buscam o remédio para as suas aflições.

Fontes

Maia Alves, Augusto; Sant’ Armas com origem de Mouriscas, 1996.

Agradeço muito reconhecidamente a:

Memória de Maria do Rosário Baptista;

Memória de Maria do Rosário de Matos Dias, Maria de Lurdes Serras, Maria José Serras e de Adília de Matos;

Memória do Sr. Dr. Severino Santana Marques.

IN: VALENTE, Francisco J. Esteves – O Monumento do Senhor dos Aflitos em Mouriscas. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 4. Nº 8 (2006), p. 107-110