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Mário Semedo

Entre factos, episódios e figuras, Abrantes, no que à questão(!) militar diz respeito - igualmente no plural - teve / tem um peso reduzido apesar da sua situação privilegiada em linhas de geografia física, à topografia ou a recursos considerados geoestratégicos.

Todavia, é inegável que desde a fundação da nacionalidade, Abrantes recolhe referências históricas importantes quando se trata de factos, de episódios, de nomes e figuras, estas - estoicamente - chamadas ilustres e de influências várias.

Neste texto pretende-se fazer uma primeira viagem por enquadramentos, sistematizados na medida do possível e que não esgotam o que quer que seja. Entre notas soltas, (re)escrevendo sobre a importância mais ou menos recente do Regimento de Infantaria n° 2, até à recolha de outras informações, releva-se uma matéria por demais interessante, a questão militar, necessariamente polémica, ainda tabu. Daí a sua utilidade para uma das leituras locais.

1 - O Castelo

Do rio Tejo também existem as estórias de outras credibilidades (?), a do oficial romano, alta patente, que pegou (deixe que eu Pego) na roupa da lavadeira e assim não regressou a casa, casando por cá e com ele o nome da terra, ou do general Massena, invasor de Napoleão, apaixonado em Rio de Moinhos desde a margem do Tramagal por outra lavadeira a quem terá feito descendência.

Mas do rio fica, enfim, a sua importância decisiva como fator de desenvolvimento económico, mas igualmente como fronteira natural de defesa que os estrategas não descuraram numa península povoada de estratégicos castelos.

Abrantes pertence à linha dessa rede de alerta onde Almourol, Santarém, Rodão e Belver, antes de Lisboa, se impuseram, não nesta sequência, naturalmente.

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Por aqui a construção fortificada abrantina, o castelo, consolidou-se como defesa de passagem, uma ideia milenar contra o inimigo, obedecendo ao estudo do terreno e das suas incidências:

É-o, na origem, nas acessibilidades, com estradas que se encontram e cruzam; na teia enredante, fácil de sair mas difícil de lá entrar; no local de indecisão, desvantajoso de entrar para uns e para outros; um terreno apertado, quando depois da ocupação só pode ser bloqueado para aguardar o inimigo; é precipitado quando ocupa posições soalheiras, ótimas para situações de espera, e tem distância, onde com menos forças é difícil provocar um combate.

Um castelo distante do rio, sem dúvida sobranceiro, com visão, mas sem mobilidade, só que uma presença de respeito, reconhecida no terreno.

2 - Um Regimento

Depois do castelo, a memória pode avançar uns anos, largos, e relevar a importância de outro espaço fortificado, omnipresente, o Regimento de Infantaria. Incrustado na urbe tem outro tipo de história, dentro da história que se recupera.

Em Abrantes o RI2 instalou-se em 1918 até 1955 no antigo Convento de São Domingos, hoje Biblioteca Municipal António Botto, edifício mandado construir por D. Lopo de Almeida, onde várias unidades e estabelecimentos militares foram alojados desde 1789.

Até que a 25 de maio de 1955 foi inaugurado o novo quartel do regimento de Vale de Roubam onde hoje continua. Porque se trata de história, em 1640, em plena Restauração, o Regimento de Infantaria 2, quer com o nome de Ordenança de Lagos quer com o de Terços da mesma cidade já estava devidamente organizado. A estas designações que sucederam à força pública permanentemente designada por ordenanças formadas por D. Sebastião, sobrevieram os regimentos no reinado de D. João V, tendo-se em 1806 determinado que fossem numerados de 1 a 24 ficando o de Lagos com o n° 2, pertencendo à Divisão Sul e formando a Ia Brigada com o n° 14, antigo regimento de Tavira. Depois participou em várias guerras e conflitos, na Guerra da Sucessão em 1706, nas campanhas de Lippe (reorganizador do Exército português no reinado de D. José) em 1762, na de Roussilon em 1795 e na de 1801 com a Espanha tomando-se “distinto” nessa altura o Regimento de Lagos.

Seguiu-se a Guerra Peninsular, a Independência do Brasil e finalmente, em 1855, por decreto de 3 de fevereiro o Regimento de Granadeiros da Rainha passou a designar-se Regimento de Infantaria 2 e o até então n° 2 passa a ser o n° 18. A Rainha D. Maria II em 1846 contou com o apoio da unidade militar e o RI2 passa a estar instalado em Lisboa no antigo mosteiro dos religiosos hospitaleiros de S. João de Deus, atualmente conhecido por quartel das Janelas Verdes. África em 1895 com a prisão do vátua Gungunhana, Ia Guerra Mundial com o Corpo Expedicionário Português e participação na Batalha de La Lys, novamente em África durante a 2a Guerra Mundial e a Guerra Colonial. Um tempo de séculos de intervenção em conflitos de uma unidade de “granadeiros” feitos “infantes”, hoje em Abrantes. Desde Santo António de Lisboa a Mouzinho de Albuquerque, oficiais, sargentos e praças, lembrados e venerados, entre tantos outros que nas fileiras apenas passaram por ser números e assim ficaram.

Destes registos de combates regista-se agora uma outra memória, precisamente de um ilustre anónimo que da “fresca cidade” (citada por Camões) escreveu sobre o Exército Português. Só por isso vale a pena falar de um rescaldo histórico.

3 - Abrantes e o Exército

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Corria o ano de 1801 e Portugal capitulava perante a Espanha a 6 de junho depois de quase um mês de novo conflito, na que foi conhecida pela “Guerra das Laranjas”. A10 de Junho, quatro dias depois, era conhecido um documento com o título “ Extratos de Algumas Observações Relativas ao Exercito Portuguez”, uma obra datada de Abrantes. O autor dessa memória posteriormente traduzida do inglês, anónimo, sabe-se que era um indivíduo que estava ao serviço de Portugal desde cerca de 1797 e que, segundo ele mesmo refere, que observava o Exército, havia 4 anos. Volvidos 40 anos sobre as “reformas” de Lippe aparece um trabalho algo extenso sobre o futuro das forças armadas portuguesas logo após (mais) uma derrota humilhante. Tratou-se de responder a um ato de guerra espanhol, aliado da França e que tinham exigido a Portugal “tão só” o abandono da aliança inglesa, a abertura dos portos nacionais a navios franceses e espanhóis, encerrando-os aos ingleses, a entrega à Espanha de uma ou mais províncias como caução para a restituição de Trindade, de Mahon e de Malta ocupadas pelos ingleses, a redefinição com a Espanha das fronteiras continentais e o pagamento em dinheiro a França de uma grande indemnização. O tributo monetário de guerra acabou por atingir 20 milhões de tomezas (antiga moeda de prata).

No rescaldo da guerra urgia repensar as forças quando os governantes portugueses conheciam a situação do exército nacional onde existiam carências de toda a ordem e que se debatia numa indefinição quanto à doutrina tática.

Nas reflexões do autor anónimo, Abrantes não deixou de estar presente, apesar da região não ter sido palco das refregas ora acabadas. Todavia, quando o exército espanhol rompeu a frente alentejana a 20 de maio de 1801 na direção de Olivença, Juromenha, Eivas e Campo Maior, adivinhava-se que no desfecho o grosso do exército português fosse recuando para estabelecer o seu quartel-general em Abrantes, aguardando a evolução das tropas franco-espanholas. Abrantes já tinha sido anteriormente escolhida pelo conde Lippe nas campanhas de 1762 e a generalidade dos comandos militares desta Guerra era dessa geração. O pensamento estratégico em 1796 pela cabeça do Príncipe Waldeck, responsável militar, resumia-se a: “ajuntar desde logo o Exército em quartéis de acantonamento cómodos desde Portalegre, Castelo de Vide e Crato, sobre Vila Viçosa e Estremoz deixando ainda a guarnição de Olivença composta como atualmente se acha. Teria o armazém principal para os dois exércitos em Abrantes, como também o depósito de munições”. Um protagonismo de retaguarda.

Mas no referido “Extrato de Algumas Observações” desenhou-se um perfil mais consentâneo à sua posição. Assim e sendo necessário organizar esse terreno nas margens do rio Tejo, Abrantes (tal como Vila Velha de Rodão) deveriam ser dotadas com pontes capazes de aguentar a artilharia porque a infantaria poderia utilizar ponte de barças em frente a Belver. Ao mesmo tempo era fundamental ter cuidado com os sítios onde o Tejo era vadeável desde os meses de julho a setembro. Era aquela a região escolhida para concentrar o exército por possuir condições ótimas de orografia eficazes à condução de uma ação retardadora e permitir que se desenvolvesse a barrar os eixos de aproximação a Lisboa, quer a Norte quer a Sul do Tejo.

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Mais ainda e tendo em conta o fator fundamental das informações, defendia-se a zona de Abrantes como região estratégica para essa concentração, valorizando o Tejo como obstáculo onde por esse motivo seriam objeto de controlo todas as embarcações nas suas margens. Quando todos os exércitos necessitam de informações, especialmente quando estão a desenrolar-se operações, a escolha da região de Abrantes e da sua posição foi finalmente avançada para além do seu contributo de espaço logístico e de segunda linha.

Sem se referirem outras componentes que à reestruturação das forças portuguesas disseram (e dizem) respeito, ficam as observações sobre as capacidades de Abrantes e o aproveitamento das suas múltiplas características. Elementos que vieram a colher não obstante o seu papel nas artes da guerra estivesse sempre longe dos teatros principais. A preparação humana e a disponibilidade de espaço logístico mantiveram-se na primeira linha. Porém, as propostas de um anónimo atento não foram de todo em todo postas de parte, porventura porque o seu anonimato escondia mais do que um simples militar observador.

4 - Personalidades regimentais

Entre o Tejo e o seu castelo, passando pelo Quartel de Abrantes, recuperando novamente o rio, volta-se ao espaço regimental onde os comandos não se refugiaram em textos anónimos. Só que, uns e outros revelaram personalidades com ideias fortes e dois exemplos marcaram decididamente a história do Regimento de Infantaria 2, “et pour cause” a histórias da vida militar de/em Abrantes.

Desde a Guerra Peninsular, marcou o primeiro comandante do RI2, Coronel Jorge de Avillez Juzarte de Sousa Tavares (5-2-1812 a 13-10 -1814) que nasceu em Portalegre em 1785, frequentou algumas cadeiras do antigo Colégio dos Nobres para se destinar à carreira das letras, mas em 1804 dedicou-se às armas e, logo nesse ano foi nomeado coronel das milícias do Crato. Foi promovido, de facto (!) a coronel, sendo-lhe entregue o comando do Regimento de Infantaria n° 2, em fevereiro de 1812, quando ainda não tinha 27 anos de idade. Em 1812 tomou parte com o seu Regimento no cerco de Badajoz e em 13 de abril do mesmo ano participou no cerco de Albuera. De Albuera marchou a sua Divisão sobre Toledo pela margem esquerda do Tejo. Ali ficou enquanto se coordenaram as operações das Divisões de Wellington. Retirou-se com o seu Regimento, na célebre saída de Salamanca.

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Antes, tinha sido superintendente das Coudelarias de Portalegre e nessa função se encontrava em 17 de outubro de 1807 quando o Marquês de Alorna o encarregou de recrutar um corpo de tropas para fazer a guarnição de Évora e preparar-se para a invasão francesa. Esteve na primeira-linha na batalha do Buçaco, nos combates da Redinha, Condeixa, Foz de Arouce, Fontes de Oñoro e muitas outras. Mas, este primeiro comandante do RI 2, nesse tempo, não foi muito feliz. Fica a memória de que “desde rapaz imberbe, envergou uniformes brilhantes das mais altas patentes que normalmente só se conquistam no declinar da vida”. Curiosamente e no que respeita à Infantaria, com este coronel no seio das contendas, o invasor francês Soult haveria de dizer, confessando: “que o valor e firmeza das tropas portuguesas são dignos de louvor”.

Anos mais tarde, Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo viria a ser um comandante do RI2 com outra memória. Depois do Colégio Militar e da Escola do Exército, passando por S. Julião da Barra, por Chefe de Estado Maior da Inspeção de Infantaria e pelo Ministério da Guerra, chega a comandante do Regimento de Infantaria n°2 de Abrantes e, como tal, foi nomeado para chefiar as forças expedicionárias a Lourenço Marques (Moçambique) onde desembarcou a 13 de Abril de 1895 a fim de submeter o célebre e poderoso régulo Gungunhana.

Algo que só Mouzinho de Albuquerque conseguiria, num ato militar onde, sem patentes de general, militares do RI2, intervieram e foram “heróis”. Um deles, descubra-se o nome, o 2o sargento n°220 /2696/27II, José Bernardo Dias, entre outros, fizeram esta história: a 28 de dezembro de 1895, em Moçambique, em Chaimite, lugar santo dos vátuas, um destacamento na sua maioria do RI2 aprisionou o poderoso régulo Gungunhana vencendo 300 homens indígenas armados, mau grado a desproporção militar.

Com José Bernardo Dias mais 34 homens do Regimento de Abrantes tomaram parte na operação militar para além de Mouzinho, três oficiais e 15 praças de outras unidades. Por isso receberam a “Torre e Espada “e a Medalha de Ouro de Serviços Distintos.

IN: SEMEDO, Mário – Abrantes Militar. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 2. Nº 3 (2004), p. 57-62