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POR ANA PAREDES MENDES- socióloga do trabalho

METODOLOGIA E TRABALHO EMPÍRICO

A definição de qualquer abordagem metodológica decorre da forma como se delimita o objeto de investigação, a problemática e as questões de pesquisa, elementos que são indissociáveis do quadro teórico e conceptual construído para orientar a investigação.

Na perspetiva dos novos modelos organizativos de trabalho, o sujeito ou ator social, adquire um papel central na gestão diária que o obriga a operacionalizar um grande número de conhecimentos e de capacidades não técnicas (competências sociais e relacionais) e, além disso, reconhece-se que o mundo do trabalho não é apenas transação económica, tendo também implicações em termos de desenvolvimento de uma autoconceção por parte dos indivíduos.

Em consequência, a análise deste artigo incide numa abordagem talvez mais ‘pessoal’ acerca das relações do operariado com as organizações industriais e respetivas entidades responsáveis, visto que constitui ainda hoje um fator central nas relações socioeconómicas e profissionais que condicionam a vida social portuguesa. Pretendo assim, dar uma visão sociológica e etnográfica do tema que decorre da evolução da forma como se concebe e organizam os contextos de trabalho, sistemas de emprego, organizações industriais e todos os problemas inerentes às vivências dos operários e trabalhadores em geral. Dá-se aqui uma maior atenção ao percurso de vida dos operários da fábrica, quais as atividades / categorias profissionais existentes, qual a sua filiação em sindicatos, quais as ideologias políticas patentes, as relações com a entidade empregadora e chefias, com os próprios colegas de trabalho, doenças profissionais, situações de greves e lay-off...

Tendo em conta que através das entrevistas se pretendeu efetuar uma abordagem apenas exploratória dos processos identitários subjacentes à fase de integração na vida profissional, com reflexos no quotidiano e nas relações familiares, pareceu-me adequado e exequível realizar um conjunto de quatro entrevistas, daí que o resultado surja numa análise sobre as temáticas referidas anteriormente, na perspetiva de quatro1 antigos operários da MDE.

O SECTOR METALÚRGICO

O enorme progresso alcançado hoje em dia a nível tecnológico deve-se em grande parte à evolução no domínio dos metais, que se faz sentir desde os povos neolíticos. Atualmente a nossa sociedade encontra-se extremamente dependente dos metais. Em transportes, estruturas e ferramentas são usadas grandes quantidades de ferro fundido e aço. Em quase todas as aplicações elétricas é utilizado cobre. À nossa volta observa-se uma crescente utilização de alumínio e de outros metais leves. Na China, por volta de 2000 a.C., é descoberto um novo metal, o ferro. Este ferro era trabalhado de forma idêntica ao ouro, prata e cobre, só que tinha a particularidade de ser mais duro. O seu preço era elevado devido à sua raridade. Os povos antigos associavam o ferro a divindades, considerando-o um “enviado do céu”.

 

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Só mais tarde é que o ferro foi usado com maior abundância quando se descobriu como extrai-lo do seu minério. O ferro começou por ser aquecido em fornos primitivos abaixo do seu ponto de fusão, separando-se a “ganga” (impurezas com menor ponto de fusão), a qual se deslocava para a superfície sendo removida sob a forma de escória, restando a esponja de ferro, a qual era trabalhada na bigorna, obtendo-se as ferramentas e utensílios existentes naquela altura (2500 a 500 a.C.). Por volta de 400 a.C. os Gregos desenvolveram um tratamento térmico, que consistia em aquecer o metal a uma temperatura conveniente tornando-o menos frágil. Com a sua aplicação melhoraram a produção de pontas de lanças, chisels e espadas. Deste modo, o ferro, tornou-se cada vez mais importante na vida do Homem e na sua Cultura. Foi na índia que se deu início à produção de aço. Chamaram-lhe Aço Wootz (processo de carbonização conhecido pelos Egípcios antigos) e era obtido a partir da esponja de ferro produzida num alto-forno (séc. XIV). Como a temperatura atingida não permitia a fusão do ferro, esta esponja de ferro era trabalhada com um martelo para expelir os resíduos; em seguida era colocada entre placas de madeira, em que era isolado do ar, posto num forno e coberto de carvão vegetal, dando-se assim a absorção de carbono. Após algumas horas de aquecimento, o metal era forjado até adquirir a forma de barras. No período que se seguiu à queda do Império Romano, o mundo estagnou e deixou de ser produtivo em termos metalúrgicos; apenas se verificou uma crescente produção de ferro. Os alquimistas Árabes, na sua busca da “pedra filosofal” (que curaria todos os males e permitiria a transmutação dos metais) fizeram descobertas que viriam a servir de base à ciência química. No entanto, a partir do ano 500 observa-se então uma indústria rejuvenescida. A Metalurgia definia-se, assim, como a tecnologia de extração de metais dos minérios e a sua adaptação ao uso através da fundição e da forja. Estas técnicas eram função dos mestres artífices que eram homens de prestígio e de importância vital na estrutura social, e o seu conhecimento, que provinha de gerações anteriores, era transmitido aos seus melhores aprendizes.

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As relações laborais na MDF

A revolução científica do séc. XVII e a revolução industrial do sec. XVIII não se refletiram de imediato sobre a tecnologia metalúrgica. Só a partir do sec. XVIII e que a metalurgia e descrita como uma ciência do estudo dos metais: ciência que estuda a estrutura, a composição, as características e as propriedades dos metais. Passa a ter como objetivo não só fabricar produtos metalúrgicos como também as suas causas e efeitos.

CONTEXTUALIZAÇÀO DO OBJECTO DE ESTUDO

O Tramagal, pequena vila à beira do Tejo, viu nascer uma das principais empresas industriais portuguesas, no século XX. Constituída por um efetivo de 2.100 pessoas, nos anos 40/60 conhece uma atividade prospera e diversificada nas áreas da fundição, mecânica e metalomecânica, no fabrico e montagem de viaturas militares e civis (as chamadas Berliet), máquinas agrícolas, aparelhos de mudança de via e eletrodomésticos (fogões e louça esmaltada).

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Visita do Presidente da República, Ramalho Eanes

 

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Os míticos camiões Berliet

 

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Ceifeira debulhadora

 

O seu fundador, Eduardo Duarte Ferreira, homem simples da nossa terra, nascido no lar modesto de um barqueiro, apos ter criado a sua forja, costumava dizer: “menos que ferreiro, se tiver saúde, não deixo de ser; se puder ser mais alguma coisa, porque não consegui-lo?”2. Um lema que o tornou pioneiro esforçado da indústria portuguesa de fundição e metalomecânica, criando uma obra que transcende a sua vida.

O tempo e a severa intrusão de novos fatores de ordem política, económica e social na sociedade portuguesa, originaram a partilha, a divisão e a transferência da obra por ele construída. Porém, a posse sentimental é inalterável. Podem tê-la e reivindica-la todos aqueles que, do conteúdo da vida trabalhadora e ardente de Eduardo Duarte Ferreira, receberam a lição e uma parcela de estímulo e confiança.

 

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Ceifeira debulhadora                       

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Prensas para instalações vinárias e corta ferragens mecânico

 

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Apesar da história da MDF já ter sido contada diversas vezes, faço apenas aqui uma breve abordagem para que, em seguida, se possa ter noção, através de recolhas orais, de excertos de entrevistas narrativas, de qual era o ambiente de trabalho vivido na MDF.

AS HERANÇAS3

Apresento aos leitores um resumo daquilo que quatro operários4 me expuseram, em contexto informal, acerca das relações de trabalho na fábrica.

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Verificou-se, nas entrevistas realizadas, que estes antigos operários da MDF, apesar de terem começado o seu trabalho na fábrica em épocas diferentes, contam com diversos aspetos comuns, começando pela tenra idade com que iniciaram a sua prestação na MDF.

"Entrei para a MDF com 13anos ‘através de um pedido’ como servente a espetar pregos (...) e a moldar porcas e relhas em aço vazado”5

Todos solteiros aquando da iniciação do trabalho, vieram depois a casar e constituir família com exceção de Manuel6. Os horários, mesmo em épocas diferentes, mantiveram a sua coerência, isto é, os operários entravam ao serviço por volta das 7 ou 8 da manhã e trabalhavam até às 17 ou 18 horas, constituindo assim as 8 horas diárias de um dia de trabalho normal. No entanto, e só em casos excecionais, faziam horas suplementares. Também em relação ao regime laborai se verificou que era usualmente diurno, só Carlos e Alberto7 tiveram a experiência do trabalho noturno.

Os operários entrevistados normalmente não tinham outra atividade profissional para alem do trabalho na MDF, embora alguns se dedicassem à música ou ao teatro, que na época estava muito em voga em Tramagal. Constatou-se também que tanto Manuel, como José8, como Carlos ou Alberto sofreram dificuldades financeiras principalmente quando a MDF começou a ter salários em atraso.

“(..) trabalhei em horário normal e por turnos, bem como horas suplementares que davam mais algum dinheirito ao fim do mês(..) ”9

De entre as diversas categorias profissionais existentes na empresa, entre as quais algumas já foram referidas anteriormente no quadro n.º 1 (???), todos os entrevistados tiveram rotatividade de tarefas, passando assim por diversas categorias e especializações, desde paquete, aprendiz, servente, oficial, serralheiro, soldador até chefe, refletindo-se aqui o regime de promoções existentes na fábrica. Consoante a formação que os operários tinham ou a antiguidade na empresa, eram ‘aumentados’ de escalão.

“Chateei-me com aquilo (...) apanhava ‘porrada’ dos de cima, dos de baixo, dos do meio...estava cheio!”’10

No entanto, este sistema de promoção é um tanto contestado pelos antigos metalúrgicos visto que muitos manifestam o conhecimento de certas ‘simpatias’ por determinados operários, que assim teriam mais facilidades em alcançar outras posições.

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Família Duarte Ferreira

Todos os inquiridos eram filiados no Sindicato dos Metalúrgicos do Distrito de Santarém, como forma de proteção dos seus interesses enquanto trabalhadores, isto é, temos os sindicatos como organizações voluntárias de trabalhadores constituídas com base na profissão ou categoria, defendiam os interesses morais e materiais do grupo.

É pertinente referir que a CGTP tem como referência fundadora principal o antifascismo, principalmente relacionado com a fase final do regime político de Salazar e Marcelo Caetano, o que pode significar uma relação de interdependência entre estes trabalhadores, à época em que trabalharam na MDF e as ideologias que todos11 defendiam. Tudo isto condicionou as suas atitudes perante os problemas enfrentados pela empresa, na diminuição dos salários ou total ausência destes, de modo a que se realizaram inúmeras greves, reivindicando os seus direitos, e também a lay-off, onde os trabalhadores atingidos recebiam apenas 2/3 do ordenado.

“Os Duarte Ferreira para mim foram bons de mais, foram-se embora e meteram aqui as tropas da ocupação, confiaram nas pessoas. Aquilo era uma empresa rentável que, segundo se dizia, que nem era preciso se ir ao banco, tinha sempre dinheiro na carteira. (...) e assim a MDF depois faliu e houve para aí muito ‘gato escondido com o rabo de fora12 (...). Como é normal em fábricas com muitos trabalhadores e sem um sistema de higiene e segurança viável, acidentes de trabalho ocorreram, alguns sem muita importância, com apenas alguns ‘arranhões’ ou ‘queimadelas’, outros bem mais graves em que vidas humanas se perderam. Apesar de nenhum dos inquiridos o ter referido, é sabido que as condições físicas e ambientais, como os ruídos, iluminação, poeiras e gases, condicionam a própria prestação do operário no local de trabalho.

“Eu estava ao lado porque o meu posto de trabalho era mesmo em Gente ao forno, mas estava deslocado uns 20 metros voltado para a linha. Havia umas queimadelas... entrava-nos um bocado de aço por cima eia sair ao bico dos pés. Nesse dia os que estavam longe e vieram socorrer e que morreram. Eu não sofri nada, mas o que estava ao meu lado, que era o meu ajudante é que ficou sem um braço”. 13

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É neste sentido que é importante refletir acerca das condições de trabalho que atualmente ainda se verificam por falta de utilização de meios de proteção e de segurança dos próprios trabalhadores. Verificou-se que, apesar de numa altura mais distante não existirem esses meios, mais tarde quando os houve, muitos também não os queriam utilizar, conforme diz Manuel: “Também alguns trabalhadores não se preocupavam com isso, nem sequer utilizavam os meios que lhes eram postos ã disposição. A educação que tivemos todos sobre o trabalho desde que entramos naquela empresa não estava vocacionada para aí. Só anos depois é que... e após a entrada da comissão aquando da intervenção... e as questões que eram levantadas pelo contrato coletivo de trabalho, quer pelas exigências da rapaziada porque nem todos... havia pessoas que se preocupavam com a questão da segurança mas também havia outras que eram assim: “os óculos era porque embaciavam...” “as luvas era porque estavam largas... ” “as botas era porque eram muito pesadas... ’’14.

No que diz respeito à atitude dos empregadores, verificou-se que os operários não tinham relações diretas com a entidade patronal, mas apenas com representantes ou chefias, pelo que José e Carlos atingiram esse ‘patamar’ de chefia, isto é, de um certo controlo do trabalho dos restantes companheiros. Muitas vezes, essas relações transmitiam um certo ‘desgaste’, como nos refere José: “eu quando distribuía o trabalho chegava lá e dizia ‘ ó António ou ó Manel, isto é para entregarmos amanhã às tantas horas’ e ele respondia: ‘olhe você diga lá a quem o mandou que se tiver pressa o venha fazer ou então faça-o você’.”

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(In)segurança no local de trabalho

 

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Apesar disto, os inquiridos manifestaram contentamento acerca das relações entre colegas, do próprio clima social e espírito de empresa. Conforme observei nos jornais publicados pela MDF, faziam-se festas na época do Natal e nas Comemorações do 1º de Maio, onde entidades patronais, chefias, operários e famílias se reuniam.

Todos consideram ter passado na MDF momentos marcantes e intensos, onde aprenderam a lidar com os outros e a ter uma noção do ambiente industrial vivido numa fábrica onde as relações laborais muitas vezes transcendiam toda a conjuntura socioeconómica vivida.

“(...) a MDF era uma família em que se brigava era para trabalhar e para se valorizar (...) “15

REFLEXÕES FINAIS

A tentativa de síntese dos resultados deste artigo tem em conta condicionalismos que se traduzem na incerteza e imprevisibilidade do conhecimento científico construído. Cada convicção e interpretação são uma hipótese entre as demais escolhidas. Isto porque a realidade social surge mais facilmente explicável e interpretável do que a própria realidade e vivências estudadas em si, isto é, uma pesquisa acerca de um conjunto, ainda que limitado, de pessoas, neste caso, operários, traduziu-se bastante amplo e complexo, em que as vivências familiares, sociais e profissionais principais que caracterizaram este conjunto de operários são um importante testemunho significativo na história local e da indústria.

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As famílias dos operários durante as festas na MDF

 

BIBLIOGRAFIA

AMBRÓSIO, Teresa, “Limites Metodológicos na Investigação dos processos Auto-organizativos dos Sistemas Sociais e Humanos”, in Actes du Colloque Internacional de EAipelf, Lisboa, 1988

FREIRE, João, “Sociologia do Trabalho - uma introdução”, Porto, Edições Afrontamento, 2001,2a edição, revista

Periódicos - Jornais da MDF

PAREDES MENDES, Ana Margarida, “A Metalúrgica Duarte Ferreira - O Caso dos Operários”, Trabalho de investigação apresentado no âmbito da cadeira de Sociologia Industrial, da Licenciatura em Sociologia do Trabalho ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, 2003.

NOTA:

Todas as fotos foram retiradas dos Jornais da MDF.

1 No que se refere ao número de indivíduos a seleccionar para entrevista, foi necessário ter em conta que "quando utilizamos métodos não estandardizados é inútil inquirir um grande número de pessoas A lentidão da análise torna difícil a exploração sistemática de um número importante de entrevistas” (Ghiglione e Matalon, 1993, p. 60).

2 Frase gravada na estatua de homenagem ao fundador de uma das maiores Metalúrgicas do país, Eduardo Duarte Ferreira.

3 Veja-se PAREDES MENDES. Ana Margarida, “A Metalúrgica Duarte Ferreira - 0 Caso dos Operários”, Trabalho de investigação apresentado no âmbito da cadeira de Sociologia Industrial, da Licenciatura em Sociologia do Trabalho ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, 2003.

 4 Os nomes dos operários neste artigo são fictícios para protegerem a sua identidade. Cada um terá um nome diferente para que o leitor possa distinguir os entrevistados. Importa referir que as entrevistas foram gravadas e transcritas com a autorização dos entrevistados no período de 4 de janeiro de 2004 e 7 de fevereiro de 2004.

  • 5 Relato de Carlos, nome fictício do 2° entrevistado - Veja-se Ana Paredes Mendes, op. Cit., p 39.
  • 6 Manuel, nome fictício do 1º entrevistado.
  • 7 Alberto, nome fictício do 4° entrevistado
  • 8 José, nome fictício do 4º entrevistado
  • 9 Relato de Alberto - Veja-se Ana Paredes Mendes, op. Cit., p 43.

10 Relato de José, quando ascendeu à posição de Chefe - Veja-se Ana Paredes Mendes, op. Cit., p 41.

11 Leia-se ‘a maioria’.

12 Relato de Carlos - Veja-se Ana Paredes Mendes, op. Cit., p. 39.

13 Relato de Carlos, acerca dos acidentes de trabalho ocorridos na fábrica - Veja-se Ana Paredes Mendes, op. Cit., p 39.

14 Veja-se Ana Paredes Mendes, op. Cit., p. 48.

15 Veja-se Ana Paredes Mendes, op. Cit., p.39.

IN: MENDES, Ana Paredes – Os ecos do trabalho: relato dos operários da MDF. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 5. Nº 10 (2007), p. 66-74