retabulo

Por Ana Paredes Cardoso - Historiadora da Arte membro do CEHLA

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

A ordem dos pregadores de São Domingos fixou-se em Abrantes num complexo conventual, fundado pelo primeiro conde de Abrantes - Dom Lopo de Almeida.

Por questões de insalubridade, a ordem mendicante mudou de residência mais do que uma vez.  A primeira casa fora edificada junto ao sítio da Várzea e ao ribeiro dos Frades. A última, já dentro da vila, terá sido erigida entre 1509 e 1517, e obteve o apoio do rei D Manuel I.

Em 1534, o edifício conventual acolhera quatro sepultos da família real Primeiro, os dois filhos do infante D Fernando (filho de D Manuel I) Um falecido a 1 de Agosto, outro a 3 de setembro. Depois, o próprio infante a 7 de novembro e a 9 de dezembro a infanta, D Guiomar Coutinho (filha dos condes de Marialva e Loulé).

Apos este ano fatídico, a comunidade regrante recebera a esmola de duzentos mil reais de juro perpetuo.

Mais tarde, em 1582, Filipe II trasladara o infante e os seus dois filhos para Lisboa, ficando a infanta sepultada na igreja do convento em Abrantes, conforme teria sido a sua vontade.

Em 1974, as estruturas conventuais subsistentes foram classificadas na categoria de Imóvel de Interesse Publico E, presentemente, parte do convento alberga a biblioteca municipal António Botto.

FRAGMENTOS DA AMBIÉNCIA ARTÍSTICA DA IGREJA CONVENTUAL DESAPARECIDA

Numa tentativa de bosquejo sobre a ambiência artística da igreja, a breve descrição do padre Luís Cardoso, de 1747, da- -nos conta da erudição e eloquência de alguns altares ali construídos. Entres estes a representação de uma arvore de Jesse - tema iconográfico circunscrito a um grupo de encomendantes endinheirados e esclarecidos.

O testemunho, porem, que concentra mais atenções e um documento iconográfico, correspondente a um desenho para retábulo destinado a igreja conventual.

Em 1977, Ayres de Carvalho catalogou o dito desenho como sendo da autoria de um notável entalhador régio de nome António Vaz de Crasto e aponta o ano de 1656.

A atribuição e a datação foram apoiadas na letra “C” existente no canto superior direito do documento E, também, nas afinidades estilísticas com outros dois desenhos subsistentes na Biblioteca Nacional, estes últimos datados “1656” e assinados pelo mestre “Crasto”.

Alem da autoria e cronologia, Ayres de Carvalho segue a proposta do genealogista Jorge Moser, identificando a família do encomendante através das armas do infante D. Fernando e as armas da sua esposa a infanta Guiomar Coutinho, sustentadas por dois anjos.

Não sabemos se o estudo para retábulo terá sido executado, mas de acordo com Ayres de Carvalho, teria sido projetado e destinado a capela sepulcral da infanta Dona Guiomar Coutinho, localizada na igreja conventual da Senhora da Consolação em Abrantes. Ou seja, 74 anos depois da trasladação do infante e seus filhos para Lisboa

Vítor Serrão e Francisco Lameira também se interessaram pelo desenho do retábulo, que apesar de não datado e não assinado, e bastante pertinente para a história da arte.

Os dois historiadores investigaram em conjunto a retabulística de transição que antecede e prepara o período barroco, procurando, o primeiro, na pintura, o segundo, no entalhe, os elementos inovadores que seriam desenvolvidos já no reinado de D Pedro II - no período do barroco pleno.

O entusiasmo dos historiadores da arte relativamente ao risco para retábulo reside num elemento inovador - a adoção da coluna com fuste torso.

As colunas com fuste torso eram conhecidas em Portugal desde o século XVI. No entanto, só no século seguinte, começariam a ser usadas de forma esporádica.

A adoção sistemática do figurino torso na retabulística corresponde ao ciclo artístico do Barroco pleno, balizado e fundamentado por Francisco Lameira, correspondendo aos anos del668-17132.

A relevância deste documento iconográfico dimensiona-se se tivermos em conta que o exemplar mais recuado entre nós a adotar a coluna torsa, deve-se à comunidade italiana com casa em Lisboa, de invocação à Senhora do Loreto, datado de 1668, oriundo de Génova e realizado em mármores. Já no trabalho de madeira, o retábulo mais antigo documentado data de l676.

Vítor Serrão propõe para o desenho a conjuntura artística do proto-barroco, na qual o mestre Crasto foi um dos mais notáveis “ensambladores de sua majestade”.

A proposta do historiador é reforçada pela presença de Crasto em Abrantes, comprovada por dois exemplares de retábulos de madeira subsistentes na igreja de São Vicente. Concretamente, nos altares devotados a São Pedro e ao Menino Deus, ambos na nave do lado do evangelho. Os dois espécimes, embora apresentem policromia desajustada ao gosto da época, resultante de intervenções recentes, permanecem bem preservados, capazes de testemunhar da eloquência do mestre.

Acresce à confirmação da presença de Crasto em Abrantes um contrato notarial à guarda do arquivo distrital de Santarém, que nos informa de um outro trabalho do mestre, igualmente para São Vicente, embora este não tenha chegado aos nossos dias.

Numa posição diferente, Francisco Lameira, porém, considerou que as características formais nucleares que identificam o proto-barroco não se manifestam evidentes no desenho.

Não se observa a tendência para a temática única da composição, pelo contrário, tinha três devoções: [...] no mey N. Senhora da Consolação, e nos lados S. Domingos, e S. Francisco. Ao nível do trabalho de entalhe, verificou que este não se expande pela composição, mantendo-se restrito. E, por último, apesar da existência de um sacrário, observou que não existe o elemento inovador do trono piramidal em degraus.

Pelas razões enunciadas, o historiador sugeriu um ciclo anterior correspondente aos prenúncios de um triunfalismo católico (1590- -1619); uma vez que esta conjuntura artística se caracteriza por anunciar, de modo pontual, as principais inovações da conjuntura sequente. Por conseguinte, para Francisco Lameira o retábulo para a capela tumular da infanta Guiomar Coutinho teria sido projetado cerca de oito anos após a trasladação do infante Fernando e seus filhos, aquando do enterro Real de Belém dos filhos e sucessão do rei D. Manuel I.

Por enquanto a questão permanece em aberto. Contudo, ficam registadas em síntese as principais linhas de investigação e o valor deste documento iconográfico para a história da arte e para a história de Abrantes.

FONTES E BIBLIOGRAFIA

Biblioteca Nacional de Lisboa, Iconografia (Divisão de Reservados)

  • Desenho de Retábulo 2 7R.

Arquivo Distrital de Santarém

  • Livro 174 do Cartório Notarial de Abrantes, 40v. e41.

Cardoso, Ana Paredes, Contributos para o Estudo do Retábulo em Abrantes, Constância e Sardoal, séculosXVIaXVIII, Dissertação de Mestrado, Universidade do Algarve, 2008, pp. [texto policopiado].

Cardoso, Luís, Diccionario geographico, ou noticia histórica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dos Reynos de Portugal e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontrarão, assim antigas, como modernas, 2 tomos, Lisboa, na Regia Officina Silviana, 1747-1752.

Carvalho, Aires de, Catálogo da Colecção de Desenhos, BN, n° 582,1977, pp. 95 e 96.

Lameira, Francisco e Serrão, Vítor, “O retábulo protobarroco em Portugal (1619- -1668)”, Promontoria. Revista do Departamento de História, Arqueologia e Património da Univers. do Algarve, n.º 1, Faro, 2003, pp. 63-96. Lameira, Francisco e Serrão, Vítor, “O retábulo proto-barroco da capela do antigo Paço Real de Salvaterra de Magos (c. 1666) e os seus autores”, Actas do II Congresso Internacional do Barroco, 2003.

Lameira, Francisco, A Talha no Algarve durante o Antigo Regime, Faro, Câmara Municipal de Faro, 2000.

Serrão, Vítor, História da Arte em Portugal, O Barroco, Lisboa, ed. Presença, 2003.

Silva, Joaquim Candeias da, “Para a História de Abrantes Manuelina, Alguns Subsídios”, Zahara, ano 1, n.º 1, Maio 2003, pp. 101-114.

Silva, Joaquim Candeias da, Abrantes - a Vila e o Termo no tempo dos Filipes (1580-1640), Lisboa, ed. Colibri, 2000.

Sousa, Bernardo Vasconcelos e, (dir.), Ordens Religiosas em Portugal, Das Origens a Trento - Guia Histórico, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, pp. 388 e 389.

IN: CARDOSO, Ana Paredes – Desenho de Retábulo para o Convento de São Domingos de Abrantes. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 10. Nº 19 (2012), p. 24-26