azulejo mourisco

Ana Paredes Cardoso

Na cidade de Abrantes o azulejo hispano-mourisco pode ser observado em dois templos, na antiga igreja de Santa Maria do Castelo e na ermida de São Lourenço.

Os azulejos da igreja de S.ta Maria, que outrora decoraram tanto a nave como a cabeceira do templo, encontram-se hoje apenas em revestimento parietal da capela-mor e no frontal do altar-mor.

Este conjunto constitui, atualmente, o núcleo mais representativo do país de azulejos de técnica decorativa de corda-seca, importados de Espanha nos inícios de quinhentos.

Relativamente aos azulejos de S. Lourenço encontram-se a forrar o frontal do altar-mor, um frontal-de-altar situado no lado do Evangelho e parte do pavimento da capela-mor. Os azulejos desta ermida são mais vulgares, de técnica decorativa de aresta, embora a sua aplicação pavimentar (a ser original) constitua uma raridade em Portugal. Foram igualmente, importados do país vizinho entre 1525-1550.

Atendendo ao valor patrimonial dos dois conjuntos, que sobretudo para o núcleo de S.ta Maria ultrapassa, inequivocamente, os limites concelhios, considerámos pertinente divulgar o que sabemos sobre o assunto.

Os azulejos de corda-seca da antiga igreja de Santa Maria do Castelo

 

A encomenda

O núcleo hispano-mourisco de corda-seca de S.ta Maria, pelo menos na sua maioria1, é proveniente de encomenda a Sevilha, nos inícios do século XVI, sob responsabilidade de D. Jorge de Almeida, bispo de Coimbra entre 1483 e 1543, ano do seu falecimento.

D. Jorge de Almeida durante o seu governo episcopal patrocinou várias obras dando um valioso contributo à divulgação do azulejo hispano-mourisco em Portugal2.

O núcleo de S.ta Maria constitui, assim, mais um testemunho da ação mecenática do bispo abrantino, que encomendou a Sevilha numerosa quantidade azulejos para a decoração total do templo, à época panteão da sua família.

O documento comprovativo da importação é a escritura do mestre entalhador Olivier de Gand, datada de 31 de outubro de 1503 e refere-se a quantidade de azulejos encomendados a Sevilha, com destino a Buarcos3.

Este documento foi divulgado primeiramente por um estudioso espanhol, Gestoso Y Perez, e mais tarde num trabalho de síntese pelo português Virgílio Correia. Porém, em ambos os autores esta encomenda de 1503 foi associada ao núcleo de azulejaria hispano-mourisca da Sé Velha de Coimbra e assim se manteve em alguns textos4.

Contrariando esta posição, Santos Simões defendeu que a dita encomenda de 1503 corresponderia ao núcleo de S.ta Maria de Abrantes, feita sob responsabilidade do bispo D. Jorge de Almeida, por intermédio do mestre entalhador Olivier de Gand. Concluindo que o núcleo da Sé Velha de Coimbra seria proveniente de encomenda posterior, uma vez que este conjunto é na sua maioria de técnica de aresta.

A produção

As conclusões de Santos Simões, que apresentámos, respeitantes à encomenda fundamentam- se nas técnicas decorativas e ornatos característicos de cada ciclo de produção artística, razão pela qual, o autor considerou o núcleo de S.ta Maria “[...] azulejos do tipo ajustado a uma encomenda de 1503 onde, sem dúvida, abundariam os azulejos de corda-seca, típicos da oficina de Guijarro”.

A corda-seca é uma técnica decorativa na cerâmica de revestimento conseguida com a adição de pigmentos ao vidrado e com base em óxidos de diferentes metais. Este processo exigia uma compartimentação na superfície decorada para que os esmaltes, quando sujeitos à cozedura, não se misturassem. Estes separadores eram obtidos como uma mistura de óxido manganês e gordura, aplicada a pincel, que após a cozedura se transformava em linhas negras.

O grande desenvolvimento das atividades de artesãos mouros, que permaneciam no bairro sevilhano da Triana desde o século XII, originaria mais tarde, em meados do século XV, esta nova técnica decorativa.

Com efeito corda-seca repetia num ladrilho de quadrados mole os mesmos esquemas de laçarias geométricas do antigo alicatado, operando, assim, uma distinção nos campos da produção e da aplicação. Esta evolução permitiu uma produção em maior escala e favoreceu as exportações (Meco, 1989- 35).

Os azulejos de S.ta Maria, datados dos inícios de quinhentos, correspondem, portanto a um ciclo de produção artística onde as grandes mudanças registadas no quadro da produção/exportação, já estavam sedimentadas.

Tanto assim que a azulejaria realizada segundo esta nova técnica foi considerada o “protótipo do azulejo europeu”, na medida em que nesta altura podemos falar de estabilização do formato quadrangular dos azulejos, de estandardização dos padrões, bem como de uma especialização de trabalho de azulejeiro.

Efetivamente nos documentos da época, aparecem alguns nomes de mestres azulejeiros que teriam a sua oficina e vários aprendizes a trabalhar sob as suas orientações. É exemplo disto o mestre de azulejos do bairro sevilhano de Triana, Fernan Martinez Guijarro, apontado por Santos Simões, como responsável pela produção dos exemplares observados na igreja de S.ta Maria do Castelo.

A caraterização formal

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A Corda-seca é pouco funda e os esmaltes apresentam um brilho excecional e perfeitamente limitados pelos campos. A paleta cromática, composta pelo branco, preto, amarelo, azuis e verdes, é característica desta azulejaria em que a coloração era obtida pela fusão de diferentes óxidos metálicos.

Em termos de padronagem apresenta, pelo menos, 16 variedades, a grande maioria de padrão composto por um azulejo (módulo) que se repete sem processo de rotação.

E em número de dois, exemplares de padrão composto por quatro azulejos iguais entre si, que ocupam quatro posições por rotação, definindo uma diagonal de simetria sem solução de continuidade.

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Padrão de quatro azulejos em revestimento parietal

De todo o conjunto, merece destaque o padrão de quatro azulejos que forram o frontal-de-altar, por apresentarem traçados curvilíneos inesperados e pouco vulgares nestes padrões (Simões, 1945:26).

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Padrão de azulejos do frontal do altar-mor

A ornamentação dos diferentes padrões é composta, basicamente, por duas figuras geométricas: a estrela de oito pontas e a cruz. Estas duas figuras são combinadas de modo a formarem encandeamentos, por vezes, bastante complexos. Este esquema ornamental, designado de laçarias, está ligado a um estilo decorativo específico da arte islâmica que irá prevalecer, com algumas evoluções, na gramática ornamental da azulejaria setecentista portuguesa.

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Também com motivos geométricos mudéjares, assinalamos o padrão designado de pé de galo característico da produção sevilhana da segunda metade do século XV.

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Padrão de Pé-de-Galo

Com tema ornamental diferente aparecem-nos alguns padrões compostos por uma flor, muito embora estilizada, que se traduz num decalcamento dos antigos esquemas dos alicatados

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Padrão de Flor                                                                                   

Seguramente de inspiração renascentista, assinalamos os padrões compostos por ornamentação vegetalista e de técnica de aresta.

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                         Azulejo de aresta                                                   

Em relação à distribuição dos conjuntos observados no templo, está presente a originalidade que caracterizou o consumidor português, relativamente aos centros produtores. O revestimento parietal da capela-mor apresenta grandes painéis distintos entre si, formados pelo agrupamento de vários azulejos do mesmo padrão. Assim, as soluções de continuidade não estão no padrão, mas na adição linear dos painéis de diversa padronagem.

Existem, porém, duas aplicações que se distinguem no conjunto: o revestimento lateral entre pi lastras da ala esquerda do templo, que apresenta uma combinação de variada padronagem bastante livre; e o forro da cabeceira do túmulo, também variada, mas sugerindo elementos arquitetónicos.

Em suma, o revestimento azulejar da igreja de S.ta Maria é um bom testemunho da utilização original do azulejo em Portugal, ainda numa fase de importação, em que está presente o sentido da monumentalidade aliado a um jogo combinatório das diversas padronagens, por forma a uma adequação do azulejo no espaço.

Os azulejos de aresta da ermida de São Lourenço

A encomenda

Por falta de documentação não nos foi possível formar conclusões seguras acerca do encomendador dos azulejos de aresta da ermida. No entanto, queremos assinalar que, concretamente, os azulejos de programa iconográfico alusivo ao martírio de S.ta Catarina pressupõem uma encomenda específica, pois que, esta azulejaria tem uma função narrativa de carácter devocional, que reflete as preocupações da instituição ou pessoa que a encomendou.

A produção

Com base nas técnicas decorativas e ornatos característicos de cada ciclo de produção artística, procurámos datar e localizar a produção dos exemplares de aresta, de ornamentação renascentista, da ermida de S. Lourenço.

Os azulejos da ermida, por apresentarem elementos da gramática renascentista, só poderão ter sido produzidos após a presença de Francesco Niculoso em Sevilha, nos dois primeiros decénios do século XVI.

Este ceramista erudito realizou obras notáveis de azulejaria figurativa segundo a técnica da majólica que seria adotada, definitivamente, na Península Ibérica apenas na segunda metade do século. No entanto, mesmo que os artífices tivessem permanecido arreigados à técnica arcaica, não terão sido totalmente indiferentes à inovação e requinte ítalo-flamengo. E, durante o segundo quartel de quinhentos, produzirão em grande escala, azulejos de técnica de aresta, modernizando os motivos com a adoção dos temas renascentistas.

Nesta nova técnica decorativa o procedimento para o isolamento dos esmaltes era conseguido através de moldes de madeira que se imprimiam no barro ainda mole, deixando assim espaços limitados por aresta.

Este procedimento, comparativamente com a técnica de corda-seca, era menos moroso, pois após feito o molde procedia-se à produção em grande escala. Consequentemente, a técnica de corda-seca foi destronada, do mesmo modo, que os ornatos de temática mudéjares (Simões, 1997: 56 e 57).

A este ciclo de extraordinário aumento produtivo, cerca de 1525 a 1550, corresponderão, muito provavelmente, os exemplares de aresta de S. Lourenço.

Quanto à proveniência dos azulejos, sabemos que em inícios do século XV, Sevilha foi o centro inovador da técnica decorativa de aresta. No entanto, não foi o único a produzir esta azulejaria, outros centros, como Valência e Toledo, mais tarde, procuraram concorrer. Ainda assim, durante a primeira metade de quinhentos, Sevilha deteve a supremacia sendo, praticamente, q único abastecedor do mercado português, razão pela qual considerámos os azulejos de aresta de São Lourenço, muito provavelmente, de produção sevilhana.

A caracterização formal

Os azulejos apresentam a mesma paleta cromática, que referimos para os exemplares de corda- seca de S.ta. Maria: branco, preto, amarelos, azuis e verdes, pois a nova técnica mantinha o mesmo processo de fusão de óxidos metálicos para a obtenção dos esmaltes.

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Padrão de quatro azulejos do frontal do altar-mor

No conjunto observado, encontrámos, pelo menos, nove variedades de padronagem: cinco de padrão formado por quatro azulejos iguais, aplicados de modo rotativo (2x2/1).

Os restantes são formados por um único azulejo.

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Padrão de um azulejo

As referidas padronagens são compostas por temas fitomórficos de tratamento já não geométrico, mas naturalista e são bastante vulgares.

Há, porém, uma exceção - os azulejos do pavimento com o rodízio de navalhas - que representam o martírio de S.ta Catarina. Estes azulejos destacam-se no conjunto de temática vegetalista e assinalam uma intenção decorativa distinta. Não são destinados a uma decoração abstrata, visam transmitir uma mensagem. Com efeito, através do símbolo hagiográfico, facilmente identificado pelo crente, evoca-se o orago do templo ou proteção da padroeira do encomendador, e oferecem-se exemplos de religião, lembrando o martírio da Santa.

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Rodízio de Navalhas

Relativamente à distribuição dos conjuntos, importa referenciar a decoração criativa do frontal-de-altar, conseguida pela aplicação de dois padrões de 2x2/1 combinados com azulejos de um só módulo.

Por último, assinalamos o aspeto que considerámos mais importante: a aplicação azulejar no pavimento da capela-mor da ermida, que sendo relativamente frequente em Espanha, não teve grande aceitação em Portugal. Constitui, deste modo, um documento precioso (embora muito danificado), que nos confirma o uso do azulejo hispano-mourisco em pavimentos, tal como nos são apresentadas em tábuas de pintura da chamada “escola portuguesa do século XVI”.

Santos Simões, na Azulejaria em Portugal dos Séculos XV e XVI, dedicou um capítulo à representação na pintura portuguesa primitiva de pavimentos decorados com azulejos, onde se reconhecem inúmeros exemplares sevilhanos, com decoração mourisca ou renascentista. Porém, concluiu que o testemunho da pintura não correspondia à realidade. Pois a verdade é que, na sua opinião, à parte o pavimento que decora a capela tumular de Garcia Resende na cerca do Convento do Espinheiro em Évora, não se conhecem pavimentos decorados com azulejos múdejares.

Os azulejos do pavimento da ermida de S. Lourenço (a serem de origem) constituem, deste modo, mais um testemunho de aplicação pavimentar, ainda que pouco comum, da azulejaria de proveniência sevilhana.

Considerações Finais

Quanto a nós, o aspeto mais significativo dos conjuntos hispano-mouriscos abrantinos diz respeito ao modo de aplicação.

O revestimento parietal de S.ta Maria e o revestimento pavimentar de S. Lourenço constituem duas aplicações pouco vulgares da primeira metade de quinhentos, se atendermos a que, neste período, o azulejo por ser importado constituiu um investimento decorativo dispendioso e, por isso, a decoração era restrita.

Com efeito, em quinhentos, o investimento decorativo que se estendeu a quase todo o país foi o dos frontais-de-altar, sendo menos frequente o revestimento de paredes, escadas e pavimentos de valor significativo (Meco, 1989:189).

Por outro lado, importa salientar que, tratando-se de uma arte de importação, desde cedo o consumidor português se distanciou do país vizinho seu fornecedor. Enquanto que em Espanha a decoração é geralmente obtida por um único padrão envolvido por cercadura até meio da parede; em Portugal os decoradores combinam diferentes padrões e cercaduras, tal como o conjunto de S.ta Maria nos dá testemunho.

Fica deste modo registado o poderio e empenho dos mecenas, bem como o impacto decorativo na ambiência dos templos, na vila abrantina no século XVI.

Bibliografia Específica

CAMPOS, Teresa, Normas de Inventário, Cerâmica de Revestimento, Artes Plásticas e Artes Decorativas, Lisboa, ed. Instituto Português de Museus, 1999.

CASA MUSEU DE FREDERICO, Exposição de Azulejos Dr. Frederico de Freitas, ed. Secretaria Regional de Turismo e Cultura, Funchal, 1984.

MECO, José, Azulejaria Portuguesa, Colecção Património Português.

----------------------, Azulejo em Portugal, Lisboa, Publicações Alfa, 1989.

PAREDES-CARDOSO, Ana, A Azulejaria na Arquitectura Religiosa de Abrantes Sécs. XVI a XVIII, Tese de Licenciatura apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de História, Arqueologia e Património de Faro, 2003.

PEREIRA, Paulo, (dir.), História de Arte Portuguesa, vols. II e III, Círculo dos Leitores, 1995. SEQUEIRA, Gustavo de Matos, Inventário Artístico de Portugal Distrito de Santarém, Lisboa, ed. Academia Nacional das Belas Artes, 1949.

SIMÕES, J. M. dos Santos, “Azulejos Arcaicos em Portugal”, Comunicação apresentada ao Congresso de Asociación Espanola para el Progresso de las Ciências, Córdova, 1944, pp. 21-26.

-------------------------, Azulejaria em Portugal Séculos XV e XVI, Lisboa, ed. Fundação Calouste

Gulbenkian, 1969, pp. 67 e 68.

Notas

Fotografias por Raquel Venâncio.

* Historiadora da Arte.

1 O conjunto que podemos observar hoje foi sujeito a intervenção em 1955 por parte da D.G.E.M.N., que. entre outros trabalhos, procedeu a assentamento de azulejos nas zonas que estavam em falta.

2 Devido à ação do bispo, a partir da primeira década do século XVI, tornou-se comum a aplicação de azulejos nos templos, sobretudo em frontais-de-altar, não só no território da sua diocese como nas regiões ligadas a Coimbra pelas vias de comunicação. Cfr. J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal nos Séculos XV e XVI, p. 66.

3 Em 1903 Gestoso Y Perez publica a História de los Barros Vidrados Sevilhanos, onde vêm citados vários documentos referentes a encomendas de cerâmica sevilhana para Portugal. Estes documentos foram, mais tarde, comentados por Virgílio Correia — Azulejos Datados, 1922.

4 A analogia feita entre os exemplares de S.ta Maria de Abrantes e os da Sé Velha de Coimbra, como sendo provenientes da mesma encomenda de 1503 regista-se no Guia de Portugal, 2° vol., p. 385; e no Inventário Artístico de Portugal, Distrito de Santarém, Tomo III, p. 2. No nosso trabalho seguimos as explicações e conclusões de Santos Simões na sua comunicação apresentada ao XVI11 Congresso de Asociación Espahola para ei Progresso de Ias Ciências, Córdova, 1944, com o título “Azulejos Arcaicos em Portugal", (ref. a pp. 21-26).

IN: CARDOSO, Ana Paredes – O Azulejo Hispano-mourisco em Abrantes. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 4. Nº 7 (2006), p. 91-100