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José Dinis, em 2011

POR ALVES JANA - Professor, membro do CEHLA.

Eu também fui leitor da Biblioteca Itinerante N° 32, da Fundação Calouste Gulbenkian. Parava frente à Câmara de Abrantes, junto às portas do velho edifício que dão para o largo, onde então funcionava a Biblioteca Municipal e hoje o principal balcão de atendimento. Começávamos junto à janela do motorista, o “senhor Francisco”, que tinha o tabuleiro das requisições feitas nas visitas anteriores e a quem entregávamos os livros que tínhamos levado. Depois, entrávamos pela porta lateral da carrinha-biblioteca e éramos atendidos pelo “senhor Dinis”. Escolhíamos os livros das prateleiras, fazíamos a requisição e partíamos com um novo tesouro debaixo do braço. Disto ainda me lembro bem. E como eu, muitos outros por essas terras fora. Ainda não há muito, o escritor José Luís Peixoto recordava que foi José Dinis quem, nas Galveias, lhe deu os “primeiros bons livros a ler”.

É incalculável o serviço que a BI 32, da Fundação Gulbenkian, para dizê-lo de forma condensada, prestou a toda esta região. Para isso fomos ouvir o mesmo José Dinis, que nos permite guardar melhor memória desse tempo.

A primeira biblioteca foi-me entregue no dia de Natal de 1961, para Mirandela. Eu tinha a esperança de vir depressa para Abrantes, como me haviam de certa forma prometido, mas estive lá 17 meses. E aí conhecia leitora com quem viria a casar, num romance camiliano com imensa piada.

A BI 32 tinha sido criada em finais de junho ou princípios de julho de 1961 e eu vim tomar conta dela, em Abrantes, em 13 de maio de1963. Até 1993, portanto 30 anos.

A zona de cobertura da BI 32 era constituída pelos concelhos de Abrantes, Sardoal, Mação, Vila de Rei, Ponte de Sor e quase todo o concelho de Gavião, à exceção das povoações de Degrada, Atalaia e Comenda, e ainda a povoação de Castelo de Bode, esta já no concelho de Tomar. Mais tarde, depois de 70, passámos a fazer também o concelho de Constância.

Depois foram criadas as Bibliotecas Fixas da Gulbenkian em Alferrarede, em março de 1966, as de Abrantes e Tramagal, ambas em março de1967. A do Rossio não avançou porque a Junta de Freguesia não disponibilizou instalações adequadas. Já nos anos 80 foi criada a de Ponte de Sor. Entretanto foram criados “postos de leitura” em Montargil e Mouriscas e, já também nos anos 80, o de Rossio. Todas estas localidades foram visitadas pela Itinerante desde o início.

Em 1980, entrei para o Colégio Diretivo das Bibliotecas da Fundação Gulbenkian, do qual fiz parte durante dois anos. Sem deixar de fazer a Biblioteca de Abrantes.

Em 1993, a Fundação fechou as bibliotecas itinerantes, apenas continuaram algumas fixas e os postos de leitura.

Foi com paixão que iniciei a minha função de Encarregado de Biblioteca, em Mirandela. E assim continuei até me reformar. Sempre fui um leitor livre. O livro que eu lia abria-me novos gostos, eu com vontade de ver sempre mais do que foi escrito. Isto é paixão. E foi essa paixão que procurei transmitir ou partilhar com os leitores da biblioteca. Estávamos num período crucial da evolução das gentes, um período de mudança que começara a germinar nos fins do séc. XVIII, isto na minha opinião. E eu achei-me como um semeador da Fé no Futuro. A Biblioteca, para mim, foi uma paixão indiscutível.

Os meus conhecimentos, sempre os considerei o subir de uma escada sem fim, com uma multidão imensa bem mais à frente do que eu. E a Biblioteca, para mim, sempre foi uma lanterna de alegria. Por isso, era sempre dia de festa quando a Biblioteca chegava às aldeias e vilas que visitava, para as crianças da escola e para os mais crescidos que gostavam de ler e que eram muito mais do que constava nesses tempos. No meu trabalho, o abrir da porta da BI nas várias localidades era sempre um ato de alegria.

A BI 32 tinha uma frequência da ordem dos 25.000 leitores por ano. Mais tarde, quando terminou, tinha baixado para cerca de20.000. Em Mirandela eram da ordem dos 30.000, um valor só superado na Madeira.

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 O horário era das 8h00 às 10h00 e das 15h00 às20h30, mas estava quase sempre mais uma meia hora. Ao serão ajudava o meu pai no consultório, com consultas até às 2h00 da noite, porque não havia dentistas, e por várias vezes até às 4h00 da manhã. E às 8h00 esta na na Biblioteca. Era um suicídio.

A zona geográfica visitada por esta BI era de uma grande riqueza humana, pois abrangia uma vasta região, com influências beirãs, alentejanas e ribatejanas, com o centro em Abrantes.

Esta Biblioteca teve ainda uma particularidade gira. Foi a biblioteca de estágio para os alunos dos PALOP’s que tiraram um curso de bibliotecário-arquivista em Coimbra. Vieram aqui quatro fazer o seu estágio, três homens e uma mulher.

Uma vez, no Balancho, estava eu, já depois do fim do serviço, na caninha a conversar com quatro raparigas, trabalhadoras rurais, é claro. Aparece um senhor bem-parecido e entrou. Expliquei-lhe que já tinha terminado o serviço e por isso estava ali à conversa. Estendi-lhe um papel de inscrição como leitor e acrescentei que ainda tinha tempo para se inscrever. Riu-se e disse que já era leitor, que era inspetor das bibliotecas. Ficámos amigos e passou a vir fazer as visitas de inspeção, não sei porquê, quase sempre ao Pego.

 Eu nasci em Abrantes, em 1933. Entrei para a escola na Rua Grande, no edifício onde depois esteve a polícia. Fiz a quarta classe e depois, como era habitual, andei um ano em explicações com a professora, em casa dela, ao fim do dia, para fazer o exame de admissão no ano seguinte. Éramos quatro nas explicações. Fomos fazer o exame de admissão a Portalegre, em 1945, onde obtive a classificação de 14 valores, o que era muito bom naquele tempo. E depois entrei para o colégio da Broa, como era conhecido, que funcionava no edifício onde posteriormente foi a Pensão Central, no largo da Câmara (sobre a atual Galeria de Arte). Antes, a Broa tinha sido onde depois esteve a Guarda Republicana, na rua de acesso ao castelo. Eu nunca perdi uma festa, nunca perdi um baile, ao contrário do meu irmão, que nunca foi a festas nem a bailes. Por isso, quando o meu pai se viu na impossibilidade de ter os dois filhos a estudar, no fim do meu quarto ano tirou-me do colégio e pôs-me a trabalhar com ele. Ele era ajudante do Dr. Mota, dentista, e eu fui trabalhar como ajudante de protésico, isto é, a fazer dentaduras. E os estudos que fiz depois foram a pulso livre ou como freelancer, como hoje se diz. A trabalhar, fui fazendo o curso dos liceus, que acabei já no Colégio La Salle. Ainda me matriculei em Geográficas, em Lisboa, aí por 66 ou 67, mas não andei lá muito tempo.

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Na casa dos meus pais sempre houve telefonias de muito bom nível e no tempo da Guerra iam para lá muitas pessoas ouvir a BBC. E eu fiquei com o gosto pela BBC. Aí por 48 ou 49, escrevi para a BBC e passei a ser “monitor regional da BBC”. Ou seja, ouvia a BBC e respondia a questionários quinzenais, que me mandavam, sobre as condições de audição e sobre programas da BBC. Por quatro vezes, já nos anos 50, as minhas críticas foram mesmo lidas aos microfones da BBC. Uma delas sobre os problemas existentes na guerra, duas sobre a Guerra da Argélia e outra sobre a crise do Canal de Suez. Isso deu-me um certo gozo, é claro.

Em 1961 entrei para a Fundação Gulbenkian. Fui colocado em Mirandela, como já disse.

Eu sempre tive uma grande paixão por livros. Uma vez comprei uma biblioteca. Fui com quatro caixas buscar os livros, a pensar que tinha de lá voltar uma segunda vez, no máximo ainda outra, para os trazer todos. Quando acabava, a pessoa só me dizia, “Mas ainda há mais isto”. Trouxe 33 caixas de livros. (Risos, a saborear ainda o festim daquela oportunidade.) Mais tarde comprei parte da biblioteca do almirante Pessanha, creio que o último ministro da Marinha do Rei D. Carlos. Em ambos os casos com obras interessantíssimas. E também comprei muita coisa aqui em Abrantes, no Soeiro, que tinha um ferro velho na Rua Nova e vendia ao quilo. Uma vez quis comprar-lhe uma coisa e ele dizia, “isto é a dez tostões o quilo, mas quando é ilustrado tem de ser a três e quinhentos”, Revistas americanas do tempo da guerra eram a 3$50. Uma primeira edição de Nicolau Tolentino, de 1806, uma obra absolutamente rara, era dez tostões. “Sabe, isto não pesa bem um quilo, mas o senhor tem de pagar o quilo.”

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Conta quem sabe que José Dinis, para lá de uma grande paixão por livros, tem uma outra paixão por carros e aviões. “Sabe tudo.” E também por navios e comboios, embora um pouco menos. “Ouvi-lo falar sobre motores e marcas de automóveis ou aviões é um espanto.” E tem sempre uma estória para contar.

POST SCRIPTUM

A primeira biblioteca itinerante de que há conhecimento em Portugal iniciou a sua atividade em 1953, em Cascais, numa iniciativa do escritor e bibliotecário Branquinho da Fonseca. Ele mesmo, face ao êxito da sua iniciativa, viria a propor à Fundação Calouste Gulbenkian a sua generalização a todo o país. Em resposta, em 1958 é criado na Fundação o Serviço de Bibliotecas Itinerantes (S.B.I.), que foi dirigido durante 16 anos pelo próprio Branquinho da Fonseca.

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IN: JANA, Alves– A Biblioteca Itinerante N.º 32 Fundação Calouste Gulbenkian - ABRANTES. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 10. Nº 19 (2012), p. 20-23