«Tenho que andar sempre depressa, homem!
A minha estrada é muito comprida!».
Eduardo Duarte Ferreira

 

José Martinho Gaspar*

Introdução

     No final da década de setenta do século XIX, Eduardo Duarte Ferreira iniciou em Tramagal um projecto empresarial que ganhou dimensão nacional e internacional, que fez um percurso de mais de 100 anos e que ficou conhecido como Metalúrgica Duarte Ferreira.
    O fenómeno Duarte Ferreira, pelos contornos que se lhe conhecem, torna-se particularmente curioso, tanto mais que, desde o seu início, parece fugir àquilo que a historiografia tem defendido para a indústria nascente na transição do século XIX para o século XX: as fábricas seriam criadas por famílias abastadas, de fortunas feitas, ou por estrangeiros que então se estabeleciam em Portugal1 .
    Ora, com este trabalho importa-nos saber, primeiro que tudo, como se iniciou o processo que desembocou na Metalúrgica Duarte Ferreira e, logo de seguida, como atingiu em poucos anos dimensões tão significativas. E ainda nosso objectivo perceber de que forma a Metalúrgica Duarte Ferreira se adaptou às vicissitudes do regime salazarista e como reagiu depois do 25 de Abril. Um último objectivo passa pela tentativa de percepção de um conjunto de sociabilidades que o século XX viu nascer em Tramagal, em estreita relação com a empresa que teve a borboleta como símbolo.
    Serão excessivamente ambiciosos os objectivos, tanto mais que não dispomos do núcleo documental da Metalúrgica. Ainda assim, com recurso a fontes essencialmente secundárias, nomeadamente à imprensa local, e tendo como pano de fundo a História portuguesa do século XX, estamos em condições de avançar alguns dados da História económica da região de Abrantes.

 

Da «Forja» à «Grande Fábrica»

    Eduardo Duarte Ferreira nasceu em 1856 em Tramagal, numa família humilde2. Ainda que tenha frequentado a escola entre os 5 e os 8 anos, acabou por não realizar qualquer exame, pois o seu pai, barqueiro de profissão, acumulara bastantes dificuldades económicas por ter mandado estudar Farmácia o filho mais velho.     Adolescente bastante reservado e inclusivamente incompreendido na sua terra, o jovem Eduardo saiu para o Rossio de Abrantes, aos 19 anos, para aprender a ferreiro na forja de Manuel Mineiro. Foi aí que lhe assomou a intenção de vir a criar uma fundição. Volvidos três anos, findo o contrato, surgiu-lhe a oportunidade de se deslocar a uma fundição do Porto, ao serviço do seu primo Padre Mota, com uma carta de recomendação passada por este para que pudesse trabalhar durante alguns dias na «Antiga Fundição do Ouro». Foi deste modo que contactou pela primeira vez com as actividades de fundição e moldagem de ferro.
    Regressado ao Tramagal, convenceu o pai a contrair um empréstimo para que pudesse estabelecer-se por conta própria. Em Setembro de 1879 deu início à actividade da sua oficina, onde produzia essencialmente ferramentas agrícolas rudimentares, que vendia à saída da missa em Santa Margarida.
    O estabelecimento, conhecido como «A Forja», apesar de bastante procurado, estava ainda longe de satisfazer os anseios deste jovem tramagalense. Propôs-se então criar uma fundição. Depois de aturada conversa com o pai e de nova viagem ao Porto, onde foi recebido pelo gerente da empresa em que já estivera, pôs mãos à obra. Os comentários que o ridicularizavam voltaram a fazer-se sentir; terá sido por esta altura que pronunciou uma frase que ficou célebre: "Menos que ferreiro, se tiver saúde, não deixo de ser. Se puder ser mais alguma coisa, porque não tentar consegui-lo?"


    Eduardo Duarte Ferreira 

    Em 1882 fundiu pela primeira vez 100 kg de ferro. Porém, os tempos que se seguiram foram marcados pela dificuldade, que pôde ultrapassar com o auxílio de um fundidor vindo do Porto e de alguns "vagabundos do trabalho" (colaboradores de passagem, por vezes vadios, que evidenciam algum saber de experiência feito). No mesmo ano, fabricou a primeira charrua metálica, em que introduziu inovações significativas — rasto e bico substituíveis. No ano seguinte, Eduardo Duarte Ferreira adquiriu o primeiro torno mecânico e uma máquina a vapor de 3 HP, ao mesmo tempo que dava início à produção de noras e de material oleícola e vinícola. Já em 1895, a Fundição de Tramagal adquiriu um novo torno mecânico e uma máquina a vapor de 6 HP.


    O passar dos anos revelou um projecto empresarial em franco desenvolvimento. Já na I República, período de grandes dificuldades económicas e financeiras no país, a empresa fundada por Eduardo Duarte Ferreira atingiu um nível de negócios considerável, o que obrigou inclusivamente à mudança de instalações. A transferência para junto da linha de caminho de ferro ocorreu em 1920, numa altura em que a «Grande Fábrica Metalúrgica» — como passou a ser conhecida — empregava aproximadamente 250 operários e tinha 168 HP de potência instalados.
   Em 1923, aquela que, pelo peso marcante que assumia na realidade económica da região, era igualmente conhecida como o «Tramagal» passou, ao transformar-se em sociedade por quotas, a denominar-se oficialmente «Duarte Ferreira & Filhos»3 . No mesmo ano, a Duarte Ferreira inaugura a unidade de aço vazado por processo eléctrico, de que foi precursora em Portugal4.
    Os anos que se seguem continuam marcados por grande dinâmica e pioneirismo: em 1924, é criado um "lagar modelo", laboratório experimental de material oleícola; em 1927, a metalúrgica tramagalense estabelece uma filial em Lisboa, fundamental para a distribuição da sua produção, que detém nas colónias importantes mercados; ainda em 1927, entra em actividade na fábrica um laboratório químico metalúrgico e de ensaio de materiais. Este ano é ainda marcado por uma visita ministerial à fábrica, que integra os ministros da Justiça e dos Cultos, Manuel Rodrigues Júnior (natural de Bemposta) e do Comércio e Comunicações, Júlio César de Carvalho Teixeiró, durante a qual Eduardo Duarte Ferreira e dois dos seus mais antigos operários foram condecorados com a Ordem de Mérito Industrial.


    Segundo Brandão de Brito, com a concentração da indústria da moagem (1926) e a campanha do trigo (1929), podemos detectar uma nova fase da evolução económica e social [em Portugal] durante a qual a indústria transformadora se começa a impor (moagem, química de adubos, metalúrgica e metalomecânica ligada à produção de ferramentas e alfaias agrícolas)"6.

Estado Novo: da crise à prosperidade

    A transição da década de vinte para a de trinta foi, no século XX português e internacional, um tempo de crise e instabilidade. Anível interno, trata-se do período da Ditadura Militar, no decurso do qual se viveram momentos de incerteza, que acabaram por abrir espaço à ascensão de Oliveira Salazar — primeiro como Ministro das Finanças e depois como chefe do Governo — e ao lançamento das bases do regime autoritário e antidemocrático que foi o Estado Novo. Em termos internacionais, vive-se a ressaca da grande depressão americana de 1929 que, pela influência que os E.U.A. já detinham nesta altura, se mundializa.
    Ora, a Duarte Ferreira não passa incólume às consequências dessa conjuntura de início dos anos trinta. Na empresa tramagalense houve mesmo a necessidade de colocar à votação a opção despedimentos ou redução de salários, tendo a maioria sido favorável à diminuição salarial, decisão que se aplicou igualmente à administração. Para superar as dificuldades, a Duarte Ferreira propôs-se negociar um financiamento junto da Caixa Geral de Depósitos, o que conseguiu, ainda que lhe tenha sido imposta a aquisição da «Fábrica de Louça Esmaltada» do Porto, a «Antiga Companhia Metalúrgica do Norte»7.
A década de trinta vê, porém, renascer a antiga prosperidade da Duarte Ferreira. Em 1933 começam a ser fabricadas enfardadeiras mecânicas e no ano seguinte é produzida a primeira «debulhadora fixa tipo grande».


    Eduardo Duarte Ferreira na companhia dos seus filhos

    Com a Europa mergulhada na II Guerra Mundial e com o governo português a sofrer a pressão da corrente industrialista, a empresa de Tramagal mantém a sua rota de desenvolvimento. Um passo decisivo a favor da indústria nacional é dado em 1940 com a ascensão do engenheiro Ferreira Dias a Subsecretário de Estado do Comércio e Indústria. Segundo Fernando Rosas, o "voluntarismo autoritário" de Ferreira Dias tentava sacudir uma "nação industrialmente abúlica", à qual contrapunha os exemplos a seguir dos bem sucedidos, mas demasiado raros, «capitães da indústria»: Alfredo da Silva, Henrique Sommer, Narciso Ferreira ou Duarte Ferreira8.
    Ora a obra de Eduardo Duarte Ferreira, que nascera do nada, continuava a sua caminhada: em 1940 com o início da produção de caixas de lubrificação de bogies e caixas de lubrificação para eixos a aplicar em locomotivas; em 1942 com a transformação da fábrica do Porto em unidade de produção dos gasogénios «Ranex» para automóveis. Em 1947, no ano anterior à morte do fundador, a empresa, com cerca de 800 operários, transforma-se na sociedade anónima «Metalúrgica Duarte Ferreira, SARL». Era esta a realidade da Duarte Ferreira, quando, a nível nacional, "Os cimentos, a construção naval, alguns subsectores modernos das químicas [...] e certas empresas metalomecânicas de bens de equipamento ou de consumo eram, ainda no final dos anos 40, ilhas num oceano industrial marcado pelo peso das actividades familiares/artesanais [...]”9.
    O ano de 1952 é inaugurado, em Tramagal, um monumento de homenagem a Eduardo Duarte Ferreira, projectado pelo arquitecto Francisco Keil do Amaral e executado pelo escultor Vasco da Conceição. Em simultâneo com esta cerimónia, é simbolicamente inaugurado o abastecimento público de água à freguesia10

Anos sessenta: a mítica Berliet

 

    O ano de 1954 é marcado por um grave acidente num dos fornos da Duarte Ferreira, que levou à morte de dois trabalhadores. Vive-se, nessa década de cinquenta, um tempo de redefinição da orientação da empresa, que atingira o fim do ciclo no processo de produção de maquinaria agrícola.
    Entretanto, nos anos sessenta, as guerras coloniais trouxeram à empresa tramagalense a possibilidade de direccionar a produção para o camião militar Berliet, cuja linha de montagem foi inaugurada a 10 de Fevereiro de 1964. Na cerimónia, presidida pelo Presidente da República Américo Tomás, marcaram igualmente presença, entre outros, os ministros do Interior e da Economia e Corporações, bem como os presidentes da Assembleia Nacional e Câmara Corporativa 11 . Esta nova actividade implicou a abertura de um departamento de assistência à produção, em Cabo Ruivo. Contudo, alguns anos mais tarde, no MDF, jornal da Metalúrgica dos anos oitenta, esta faceta da Duarte Ferreira, ao contrário daquilo que passou para a opinião pública, acabou por ser perspectivada como mais prejudicial que vantajosa: havia, por um lado, a necessidade de participar em concursos sucessivos, para fornecimento de uma ou duas centenas de viaturas, com prazos aleatórios; por outro lado, o processo Berliet terá dificultado a internacionalização da empresa 12. Esta é, naturalmente, uma opinião discutível, tanto mais que o monopólio do fornecimento ao Estado deste tipo de viaturas, em tempo de guerra, só pode ser bastante vantajoso para quem o detém. Entre 1964 e 1974, a Duarte Ferreira produziu 3549 viaturas Berliet13. Parece-nos que no que concerne ao sector automóvel, nesta altura, o problema da empresa tramagalense terá passado mais por não ter encetado outros projectos, nomeadamente ao nível da produção de viaturas civis.

    A aposta, porém, continuou ainda a fazer-se de forma clara na área da fundição. Os anos de 1966 e 1967 viram nascer uma nova fundição, com uma capacidade de produção de 4000 toneladas/ano de peças de aço.
    A expansão da Duarte Ferreira estendeu-se a Angola, onde em 1968 estabeleceu uma nova filial. Esta estratégia de ramificação mostrou-se eficaz, na medida em que as vendas nesta colónia portuguesa foram, desde cedo, significativas e em 1973 a empresa tramagalense possuía uma implantação expressiva no mercado angolano 14.

Pós-25 de Abril: da esperança ao desalento

    Na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974, a 19 de Dezembro desse ano, a Duarte Ferreira foi intervencionada e entregue a uma comissão administrativa nomeada pelo governo 15 . A empresa só acabou por ser desintervencionada em 1979. Estes cinco anos de gestão administrativa conduziram a Metalúrgica Duarte Ferreira a uma situação particularmente dificil, a ponto de, no começo dos anos oitenta, o espectro da falência ter começado a pairar sobre a centenária empresa tramagalense. Ainda assim, e apesar de todas as contrariedades, em Outubro de 1980, o Ministro da Indústria e Energia, Álvaro Barreto, em visita ao Tramagal, face aos resultados obtidos no primeiro semestre desse ano, afirmou estarem "assegurados os postos de trabalho de 2300 pessoas que aqui trabalham" e prometeu apoios especiais por pane do executivo16
    Nesta fase, a administração integrava a terceira geração Duarte Ferreira, personificada no Presidente do Conselho de Administração, Carlos Duarte Ferreira, que fazia equipa com Octávio Duarte Ferreira, António Bastos Moreira da Cruz, Joaquim Dias Amaro e Ruben Proença Freitas Ribeiro.


Visita do Ministro Álvaro Barreto à Metalúrgica Duarte Ferreira

Uma análise do jornal MDF, destes primeiros anos da década de oitenta, apesar de nos proporcionar o contacto com uma ou outra referência a dificuldades pontuais, permite-nos, acima de tudo, deparar com uma dinâmica de busca de soluções particularmente interessante. Retenha-se, a título de exemplo: em Outubro de 1980, atingia-se, ao fim de poucos meses, a unidade mil na linha de montagem de viaturas Mitsubishi 17; em Março de 1981, a produção de peças auto era incrementada na fábrica do Porto, prevendo-se já nesse ano um volume de vendas consideráve1 18; voltava-se à produção de viaturas militares, em finais de 1981, com o camião «Tramagal TT 13/160 6x6 Turbo», que no ano seguinte acabaria por ser adaptado ao combate de incêndios com a designação «Tramagal-1nasi ATT 4000 6x6» 19.
    As tradicionais festividades do 1.º de Maio, no ano de 1983, com a actuação de Herman José20, que começava a destacar-se no panorama artístico nacional, contribuíam para que a Duarte Ferreira aparentasse alguma saúde ao nível das contas. Contudo, a realidade era bem diferente, em Setembro desse mesmo ano era publicado o último número do jornal MDF, que durante três anos ajudou a esconder uma situação financeira especialmente difícil e tudo fez para alimentar a réstia de esperança que ainda existia em torno da Metalúrgica.
   A partir de 1984, ano de profunda crise económico-financeira em Portugal, a situação laboral na Duarte Ferreira toma-se particularmente grave: despedimentos, salários em atraso, greves, manifestações variadas, ocupação simbólica da Câmara Municipal de Abrantes21. É o fim de um longo ciclo: em 1994 são vendidos judicialmente os bens penhorados à «Metalúrgica Duarte Ferreira, SARL» e em 1995 a empresa é extinta. 

Cultura, recreio e desporto

    A História da Sociedade Artística Tramagalense (SAT) confundiu-se, durante muitos anos com a da própria Metalúrgica Duarte Ferreira. A SAT foi criada em 1901 por Eduardo Duarte Ferreira e alguns amigos e colaboradores, que a 1 de Maio saíram à rua a tocar um hino alusivo à data, aos quais muitos outros se juntaram. Daí em diante, o 1.º de Maio passou a ser feriado na Metalúrgica e o dia de festa da empresa.
    Constituída oficialmente em 1 de Julho de 1901 com a designação «União Fabril Tramagalense», denominada a partir de 1916 «Grémio Musical Tramagalense», só em 1944 passou a chamar-se ) «Sociedade Artística Tramagalense».
    A SAT teve, nos primeiros anos, como grande ensejo a organização e apresentação de uma banda filarmónica, que fez a sua primeira aparição pública em Janeiro de 1902 a tocar os reis. No ano seguinte, a 1 de Maio, a banda estreou o seu primeiro fardamento, tendo metade da despesa sido custeada por Eduardo Duarte Ferreira.
    A SAT, referência cultural do Tramagal e de toda a região, desenvolveu, no decurso do século XX, ainda outros projectos, de entre os quais se destacam uma orquestra de instrumentos de corda, um grupo de teatro e a organização de uma biblioteca22. Toda esta dinâmica cultural da SAT só pôde acontecer em estreita ligação com a Metalúrgica Duarte Ferreira, que lhe deu um apoio fundamental até 1974.
    Ainda hoje se diz no Tramagal que "quem soubesse música ou jogar futebol tinha a vida facilitada na Metalúrgica". Ora, para além da SAT e em especial da sua filarmónica, a Metalúrgica Duarte que Ferreira apoiou de forma clara o Tramagal Sport União (TSU), clube desportivo nascido, a 1 de Maio 1922, como resultado da fusão do «Tramagal Foot Ball Club» com o «Grupo Desportivo Tramagalense». O apoio ao TSU, numa primeira fase, traduziu-se na realização de obras no campo e facilidades aos atletas — trabalhadores da Metalúrgica — para treinos e deslocações.
    O campo — Comendador Eduardo Duarte Ferreira — foi inaugurado em 1951 e o financiamento do clube por parte da Metalúrgica Duarte Ferreira atingiu tais proporções que, entre as épocas 1966/67 e 1973/74, a equipa de futebol sénior disputou o campeonato nacional da 2.a divisão23.

Um 1.º de Maio muito especial

    Os elementos disponíveis relativos às raízes da SAT sugerem-nos que a «Festa do Trabalhador» na Metalúrgica Duarte Ferreira se terá feito desde o começo do século XX. Tudo leva a crer que a transformação desta data em dia feriado e festivo da Metalúrgica esteve desprovida de qualquer conotação política, tanto mais que é conhecida a forma empenhada como os patrões participavam na organização e na efectivação das festividades. Há que notar, porém, que já desde 1890 o 1.º de Maio se festejava em Portugal, nas áreas mais industrializadas, integrado no movimento operário e sindicalista.
    Os festejos do 1.º de Maio, que os mais idosos dizem que "sempre se fizeram na Metalúrgica do Tramagal", consistiriam, nos primeiros anos, num convívio entre famílias de operários metalúrgicos. Em termos práticos, traduziam-se numa ida ao campo, em que se partilhavam lanches e se confraternizava. Com a criação da banda filarmónica da SAT, os seus espectáculos passaram a ser um elemento fundamental nestas festividades, a que se juntaram os jogos de futebol depois da fundação do TSU.
    Com a revolução de Abril de 1974, e até 1980, — período em que a Metalúrgica esteve intervencionada —a data deixou de ser comemorada. A excepção desta interrupção, só há memória de não se terem realizado os festejos em duas outras situações: em 1954, depois da explosão num dos fornos que provocou a morte de dois trabalhadores e pelo luto do falecimento de um administrador. Foi em 1980, no reatar das celebrações do 1.º de Maio que se inaugurou «A Forja», monumento memorial, que integra a primeira forja de Eduardo Duarte Ferreira e faz a reconstituição da sua oficina.


Inauguração do monumento «A Forja»

    Durante o Estado Novo, por se tratar de uma festa comemorativa do 1.º de Maio, a qual levava inclusivamente ao encerramento desta importante unidade industrial, havia a necessidade de solicitar autorização para o efeito ao Ministério do Interior. Em duas ocasiões a resposta terá ido no sentido da proibição, porém a administração terá ignorado por completo a decisão ministerial, sem que daí tenha resultado qualquer penalização, quer para patrões quer para operários24
    Aquilo que nos parece, porém, é que no decurso do regime salazarista, as comemorações do 1.º de Maio na Metalúrgica tiveram uma função que serviu bem a política corporativista do regime, adequadas para dar a imagem de um franco entendimento entre patrões e trabalhadores. Quanto à data escolhida, essa faria alguma confusão a um regime que via no comunismo e no sindicalismo a materialização de todo o mal.

 

Bibliografia

Obras de consulta
BRANDÃO DE BRITO, José Maria, Industrialização Portuguesa no Pós-Guerra (1948-1965) — O Condicionamento Industrial, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1985.
CAMPOS, Eduardo, Cronologia de Abrantes no Século XX, Abrantes, Câmara Municipal de Abrantes, 2000.
Eduardo Duarte Ferreira — esforçado pioneiro da indústriaportuguesa defundição e metalomecânica —A Lição da Sua Vida, Tramagal, 1946.
Engenho e Obra — memória de uma exposição (Coord. José Maria Brandão de Brito e outros), Lisboa, Dom Quixote, 2003.
MOTA, Maria Filomena, «Capitalistas e industriais (1870-1914)», in Análise Social, Vol. XXIII (99), 1987.
ROSAS, Fernando, Salazarismo efomento económico, Lisboa, Editorial Notícias, 2000.

Publicações periódicas
Correio de Abrantes
Jornal de Abrantes
MDF

Notas

* Mestre em História Contemporânea, membro do CEHLA.

1 Cfr. Maria Filomena Mónica, «Capitalistas e industriais (1870-1914)», in Análise Social, Vol. XXIII (99), 1987, p. 852.
2 A maior parte dos dados biográficos relativos a Eduardo Duarte Ferreira, bem como à sua actividade empresarial dos primeiros anos, são provenientes de uma publicação elaborada por uma comissão que o homenageou em 1946, aquando do seu nonagésimo aniversário (viria a morrer em 1948). Os elementos que nos são disponibilizados, naturalmente elogiosos, cremos que no essencial são verosímeis. Assim, nesta primeira parte escusamo-nos a referenciar sistematicamente a fonte utilizada, excepto quando ela for diferente da referida obra de homenagem. Retenha-se, pois, Eduardo Duarte Ferreira — esforçado pioneiro da indústria portuguesa de fimdição e metalo-mecânica — A Lição da Sua Vida, Tramagal, 1946.
3 Note-se que os filhos de Eduardo Duarte Ferreira começaram a colaborar na empresa por esta altura, depois de dois se terem formado em engenharia e um em comércio e de terem realizado estágios no estrangeiro,
4 Cfr. Engenho e Obra — memória de uma exposição (Coord. José Maria Brandão de Brito e outros), Lisboa, Dom Quixote, 2003,p. 60.
5 Cfr. Eduardo Campos, Cronologia de Abrantes no Século XX, Abrantes, Câmara Municipal de Abrantes, 2000, p. 80.
6 José Maria Brandão de Brito, Industrialização Portuguesa no Pós-Guerra (1948-1965) — O Condicionamento Industrial, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1985, p.23.
7 Cfr. MDF, n.0 1, Maio/1980, p.6.
8 Cfr. Fernando Rosas, Salazarismo e fomento económico, Lisboa, Editorial Notícias, 2000, p. 35.
9 Idem, ibidem, p. 74.
10 Cfr. Eduardo Campos, ob. cit., p. 135.
11 Cfr. Correio de Abrantes, n." 1707, 16 de Fevereiro de 1964, p. l.
12 Cfr. MDF, n.0 1, Maio/1980, p. 6.
13 Cfr. Idem, n.0 20, Dezembro/ 1981, p. 3.
14 Cfr. Idem, n.0 1, Maio/ 1980, p. 6.
15 Vide site www.engenharia.com.pt. No final deste trabalho encontra-se um artigo de A. Carvalho, que viveu na empresa o período conturbado do pós-25 de Abril, no qual se faz uma leitura desse tempo.
16 MDF, n.0 6, Outubro/ 1980, pp. I e 2.
17 Desde a desintervenção, no governo de Maria de Lourdes Pintassilgo, a Duarte Ferreira estava dividida em três empresas: TRAMAGAUTO (montagem e fabrico de veículos automóveis), FUTRA (materiais de fundição) e FMAT (fabrico e montagem de máquinas agrícolas).
18 Cfr. MDF, n.0 11, Março/1981, p.l.
19 Cfr. Idem, n.0 29, Setembro/ 1982, pp. 2 e 3.
20 Cfr. Idem, n. 0 38, Junho/1983, p. 1.
21 Cfr. Eduardo Campos, oh. cit., p. 209. Esta ocupação simbólica ocorreu a 27 de Janeiro de 1984.
22 Cfr. MDF, n.0 27, Julho/1982, p. 3.
23 Cfr. Idem, n.0 11, Março/1981, p. 2.
24 Cfr. Idem, n, 0 1, Maio/1980, p. 8. Ainda que 0 1.0 de Maio da Metalúrgica não tivesse conotação política, a resistência ao Estado Novo marcou forte presença no Tramagal: o Partido Comunista Português tinha uma estrutura clandestina organizada desde a década de quarenta e, ao que nos é dado saber, O jornal Avante circulava entre muitos operários.

 

 

REACÇÃO DE UM QUADRO DA MDF AO PRIMEIRO CADERNO REIVINDICATIVO DOS TRABALHADORES EM JULHO DE 1974

 

A. Carvalho

 

    Em Julho de 1974, eu já estava desiludido com a Revolução dos Cravos. Aliás, já no Primeiro de Maio, uma semana após 0 25 de Abril, eu escrevia para o Correio de Abrantes este texto premonitório:

 

"E DEPOIS DO ADEUS?
    De repente, sai-nos a Sorte Grande, quase sem jogarmos, e não acreditamos. Vivemos e julgamos continuado o sonho de toda a vida. À escuridão prolongada sucede-se uma aurora demasiado brilhante. Só com esforço vislumbramos os contornos do que nos cerca. E continuamos a ter medo. Medo das retaliações pessoais, humanas, lógicas e estúpidas. Medo de que os extremos se toquem num circulo de destruição que não podemos consentir Medo de que volte a noite e o sonho sonhado torne a pesadelo vivido.
    Rebentam os diques das manifestações espontâneas, públicas e vibrantes, das conversas que já podem ser francas, dos jantares de confraternização mais ou menos democráticos, das informações sem censura, dos discursos inflamados, das manifestações de adesão mais ou menos floridas. Nas ondas criadas misturam-se o civismo e a hipocrisia, o recalcamento e a ingenuidade, vandalismo e alegria, glória e fraternidade...
    É o adeus ao regime salazarento ! E DEPOIS DO ADEUS?
    Quem vai ser sinceramente humilde para se convencer de que a melhoria da comunidade tem que passar pelo seu próprio aperfeiçoamento?
    Quem terá coragem de afirmar que a Revolução ainda está por fazer? E que vai exigir sacrificios e tempo e uma comunhão de esforços e de objectivos a que não estamos habituados?
    Quem saberá ensinar a um povo politicamente analfabeto o dever de trabalhar com honestidade e o direito de ganhar para viver condignamente?
    Quem estará disposto a sacrificar-se pela res publica?"
    Quando, na euforia da contestação aos patrões e ao pessoal dirigente da MDF, eu resolvi intervir na discussão do Caderno Reivindicativo a apresentar ao Governo, sabia que corria riscos de incompreensão e até de reacção violenta às minhas palavras. Mas as Assembleias Gerais do Sporting, onde durante os anos 60 lutei contra a forma autocrática como o Clube era conduzido pelos seus dirigentes, tinham-me dado uma certa resistência de ânimo contra audiências hostis. E foi com relativa calma que li o seguinte texto:
    "Meus amigos, talvez o que eu vá dizer não agrade a alguns dos que aqui estão. Talvez que as palavras sejam duras. Mas é tempo de chamar as coisas pelos seus nomes, doa a quem doer. Se peço que me escutem é porque sinto ter o direito de falar. E falo por mim, trabalhador da MDF há 9 anos e tramagalense há 16. Não trago procuração de ninguém, mas também não quero admitir que falem em meu nome sem eu para isso dar autorização. Neste aspecto o presente Caderno de Reivindicações é abusivo quando se diz dos trabalhadores da MDF.
    Eu não contribui para a sua elaboração e creio que poucos ou nenhuns dos trabalhadores que estão em lugares de chefia o fizeram.
    E não digam que não colaborei porque não quis. Não colaborei porque não me deixaram. Não colaborei porque este Caderno não foi elaborado democraticamente, porque este Caderno nasceu condicionado por quatro equívocos:
    1º  equívoco - São os trabalhadores mais mal pagos quem tem o direito de mandar na MDF;
    2º  equivoco - O pessoal de quadros da MDF não pertence à classe dos seus trabalhadores;
    3º equívoco - Os ordenados do pessoal de quadros são a razão principal dos baixos ordenados dos operários;
    4º equívoco - A melhor solução para a crise da MDF será a economia a fazer à custa dos serviços ditos, erradamente, não produtivos, ou se possível, à custa da expulsão de todos os que pertencem ao pessoal de quadros.
    Isto não me impede de condenar igualmente a apatia e a falta de coragem do pessoal de quadros que ao ver-se ignorado na elaboração do caderno de reivindicações não tomou qualquer posição, como classe que é, sem dúvida, privilegiada e responsável.
Passei uma vista de olhos ao articulado do Caderno. Francamente, achei-o demasiado ingénuo, mal redigido, misturando questões importantes com outras de lana caprina, contendo pontos tão infantis que farão sorrir certamente quem o ler sem paixão.
    Com que ideia ficará o Ministério do Trabalho dos trabalhadores da MDF? Que dirão do Tramagal as pessoas que o lerem?
    Isto tem mais importância do que pode à primeira vista parecer.
    O Estado é o nosso principal cliente e tudo devemos fazer para que ele tenha confiança em nós, na nossa capacidade, na nossa força como Empresa.
1º equívoco - Generalizou-se ultimamente a ideia de que são os trabalhadores mais mal pagos quem tem o direito de governar, tanto a MDF como o Pais.
    Não posso nem quero falar muito.
    Neste ponto só lhes lembro o seguinte: O Movimento das Forças Armadas não fez a Revolução de Abril para implantar um regime de anarquia, nem sequer um regime de democracia popular. Por enquanto e certamente por muitos anos, viveremos num regime capitalista.
    Eu trabalho numa Empresa de uma sociedade capitalista. Troco o meu trabalho por dinheiro. Esse dinheiro é-me pago pelos capitalistas da MDF. A eles e só a eles me sinto profissionalmente obrigado.
    Que não tenham ilusões os que julgam que o terem sido explorados e sacrificados impunemente durante 50 anos lhes dá agora o direito de mandar.
    Mesmo que se mantenha a actual liberdade de expressão, que muitos tomaram como liberdade de serem malcriados, só quando tiverem sindicatos fortes e ricos poderão ser capazes de fazer vingar as suas reivindicações, que têm que ser sempre condicionadas aos interesses da Nação.
    Pensem no que aconteceria se as reivindicações dos trabalhadores da MDF obrigassem esta a fechar as portas. Quem é que pagaria os nossos ordenados? Ninguém! Quem ficaria mais prejudicado?
    O trabalhador com menos qualificações. Neste aspecto é bom não se esquecerem de que a guerra pode acabar e de que os emigrantes podem voltar e que estes dois acontecimentos (que até são desejáveis) podem trazer uma onda de desemprego muito grande.
    2º   equívoco - O pessoal de quadros não pertence à classe trabalhadora
    Esta ideia errada só é ainda hoje possível pela ignorância em que viveu o nosso povo durante o regime do Estado Novo.
    Eu não sou comunista, principalmente porque desejo acima de tudo a liberdade de expressão, impossível num regime totalitário. (Mas sei que há entre o pessoal de quadros da MDF comunistas, e muito mais conscientes do que alguns dos que querem só para si o nome de trabalhadores).
    Ora não posso acreditar que mesmo os comunistas, defensores por excelência dos trabalhadores, confundam trabalhador com operário! Há trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais. E mesmo na Rússia um cientista, um astronauta, um dançarino, um músico, não deixam de ser trabalhadores e muito mais bem pagos do que um operário não especializado de qualquer das suas fábricas.
    3º equivoco - Os ordenados do pessoal de quadros.
    A divulgação dos ordenados ilíquidos do pessoal de quadros, mantidos anacronicamente secretos pela Administração da MDF, envenenou ainda mais as relações entre os chefes e os subordinados. Escusadamente. E que todos ou quase todos, quadros ou não-quadros, sentimos que as diferenças de ordenado são na realidade exageradas. Houve quem, e não fui eu, tivesse pedido à administração para considerar a hipótese de o pessoal de quadros não ser este ano aumentado. Aqui estamos de acordo. Simplesmente, só a ignorância ou a má vontade poderá dizer que é devido aos ordenados altos do pessoal de quadros que os ordenados do restante pessoal são tão baixos. Primem os ordenados dos quadros da MDF não são exorbitantes em relação aos de outras Empresas; ao contrário do que se diz em Tramagal. E mesmo pagando bem, a MDF tem dificuldade em segurar em Tramagal o seu pessoal de quadros. Isto é, a MDF não paga menos ao pessoal de quadros porque não pode correr o risco de estar sempre com falta de pessoal directivo. Não paga mais ao seu pessoal operário porque as outras empresas não aguentam, nem o governo (quer antes, quer depois do 25 de Abril) o deixaria. Segundo, e aqui o Caderno apresenta um dos seus pontos mais fracos, se considerarmos o ordenado de base como 9 contos, 5/3 de 9 contos dá 15. Como por princípio os ordenados dos chefes devem ser superiores aos dos subordinados, escalonemos os ordenados do pessoal de quadros da seguinte maneira:
    Director de Divisão - 15 contos; Director de Serviços - 14 contos; Chefe de Serviço - 13 contos; Chefe de Sector - 12 contos.
    Se, por hipótese, reduzíssemos os ordenados actuais aos que são pedidos no Caderno e dividíssemos o excedente por todos os trabalhadores da MDF, aconteciam 2 coisas:
    1) Todos os quadros que não fossem ceguinhos iam-se embora da MDF;
    2) Os trabalhadores da MDF seriam aumentados de 254$00; isto é, os de ordenados mais baixo teriam um aumento de uns 6% e os de ordenados mais altos teriam aumentos de 3%.
    4º equívoco - A melhor solução da crise da MDF seria "gritar bem alto, rua com o pessoal superior"
    As palavras não são minhas, mas têm sido divulgadas e aceites por muito boa gente...
    A este não faço comentários, porque poderiam ser tendenciosos.
    Não quero porém terminar sem fazer um apelo a todos os que têm uma réstia de bom senso, principalmente aos mais conhecedores, aos que sentem que todos temos obrigação de lutar por uma melhor distribuição da riqueza, não só na MDF mas em toda a parte e sabe não ser possível um milagre.
    A MDF está doente. Muito doente. Mas quando alguém está doente não se pergunta primeiro: Por culpa de quem? Faz-se o diagnóstico e depois tenta-se vencer a doença.
    Nós somos a MDF, estamos doentes e temos que ser nossos próprios médicos.
    Temos uma guerra a ganhar. A primeira batalha será a da própria sobrevivência, depois os combates cada vez mais duros com as empresas concorrentes, portuguesas e estrangeiras, principalmente se entrarmos no Mercado Comum.
    Meus amigos, quadros ou não quadros, temos que nos convencer de que só poderemos salvar a MDF e salvarmo-nos a nós próprios e às nossas próprias famílias quando pudermos "conscientemente" cantar 0 conhecido estribilho: MDF UNIDA JAMAIS SERÁ VENCIDA"
    Claro que depois da leitura deste texto reaccionário, fui muito "aplaudido". Creio que terá sido a primeira vez que me chamaram fascista. Não fiquei melindrado, tinha sido mais perigoso ter sido "comunista" e sócio do Sporting...

 

  Artigo publicado na revista Zahara nº3 - maio 2004