José Alves Jana- Professor, organizador do dossier.
O texto que se segue é da autoria de Joaquim de Sousa Gil (1948 - 1989), mais conhecido por Joaquim Parreira. Natural do Pego, onde residia e foi ensaiador do Rancho Folclórico da Casa do Povo, deixou-nos esta descrição da vida dos carvoeiros, feita em 1985, num tempo em que no Pego se desenvolvia uma atividade de recolha e registo de usos e costumes com vista à preservação da memória popular.
Publicamos o texto tal como foi deixado (em três folhas A4, dactilografadas). E respeitamos a versão original por várias razões. Porque é um documento de escrita; como memorial ao Joaquim Parreira; e como exemplo de que qualquer pessoa que saiba ler e escrever pode contribuir para que não se perca aquilo que alguns poucos não terão tempo de recolher.
Para melhor compreensão por parte dos leitores que possam estar muito longe do universo descrito, seguem-se algumas “notas e comentários” que na especialidade levam a colaboração de Isilda Jana, que também assina um texto complementar sobre o lugar da mulher nas carvoarias.
As fotografias são de Gomes dos Santos, professor que fez no seu estágio docente, em 1984, um trabalho sobre as carvoarias.
No final, deixamos um “vocabulário” de apoio à leitura dos dois textos.
O Carvoeiro
Joaquim de Sousa Gil
A profissão mais desenvolvida na nossa terra foi sem dúvida a de carvoeiro, deu-se com mais incidência no princípio do século XX, embora ainda hoje1 muita gente trabalhe nas carvoarias.
Trabalhos muito rudes, principiavam no princípio do ano, e, duravam na maioria das vezes até dezembro.
Aonde houvesse especialmente sobreiros e azinheiras, e também outras árvores, lá se encontravam grupos de Pegachos, “AS MALTAS”.
No fim do século passado e até no actual2 era vê-los dias a pé, por esse Alentejo fora, já que era no Alentejo que havia mais trabalho. Chegados ao local, escolhia-se o sítio próprio, construíam-se as barracas, formando a malhada.
Este local era a sua terra, o seu lar durante todo o ano. Por isso as suas barracas eram bem feitas, de fortes paus, bem tapados com ramos e depois com junco ou bracejo, defendendo-se assim da chuva, do frio, do calor e também da bicharada. Lá dentro construíam a cama, sendo o colchão de carqueja e junco ou bracejo, aí descansavam nas poucas horas de lazer e guardavam os seus haveres.
Era grande a área de trabalho, por isso muitas vezes tinham de sair de noite percorrendo horas de alcofa às costas com os mantimentos para esse dia, levando também pesadas ferramentas. Chegados ao local, o que mandava, “o manajeiro”, indicava o sítio aonde naquele dia seria a cozinha; local aonde se cozinhava e comia o almoço às 10 Horas e o jantar às 14 Horas.
Deixada a panela de barro com umas batatas para as migas, ou feijão frade, lá se metia um bocado de pão com CONDUTO na boca, e principiava-se o chamado os MOÇOS iam à água. Eram horas de barril às costas, outro cozinhava e preparava um grande braseiro, para os homens assarem um pedaço de bacalhau ou toucinho, e fazerem os seus saborosos pares de migas. Os mais afoitos mandavam-nas bem altas por cima até de um pequeno sobreiro indo apanhá-las do outro lado, às vezes resultava terem de as comer do chão, já que na sertã não ficou nada3. Ao jantar comiam quase sempre feijão com massa ou arroz, embora houvesse outras ementas4 .
Colocar o tapume
Ali perto a azáfama era grande, homens limpavam árvores cortando grandes pernadas, outros cortavam no chão essas pernadas em pedaços, essa lenha era transportada às costas para montes, lá se tirava a cortiça, desta vez cortiça à falca. Com uma só mão os carvoeiros lançavam a machada de alto a baixo, cortando grandes pedaços de cortiça e casca juntos, com a outra seguravam o pau na vertical, depois faziam grandes montes, chamados fomos. Eram tapados com mato e grandes camadas de terra, a seguir coziam o carvão5.
Lá para abril ou maio o trabalho era pouco, despediam alguns até lá para o S. João, que era quando começava a derruba dos sobreiros. Também os que ficavam geralmente vinham passar o S. João ao Pego, já que era dos dias mais festejados nessa altura, e há quase meio ano não viam a família. Outros ficavam na malhada, só vendo a sua terra no fim da época. Finda esta quadra, e, novamente todos começavam a derruba das árvores, neste caso os sobreiros menos [sadios]6 estavam marcados com uma faixa branca, eram estes a ser derrubados.
Este trabalho era feito nesta altura, porque agora mais fácil se extraía a cortiça e a casca separados, a cortiça mansa chamada mansa ou virgem, desta vez tanto a cortiça como a casca eram tiradas à enxó.
Forno a cozer
Grandes árvores arrancadas, outras vezes cortadas por quatro ou mais homens ao mesmo tempo com grandes machados; um homem de cada lado, passavam horas a puxar o serrote para serrar um só toro. Os madeiros maiores eram rebentados com pólvora, depois cunhas e marrão, os bocados maiores eram puxados para o forno de pau e corda, os mais pequenos às costas. Quem chegava primeiro ao sobreiro geralmente levava o pau maior; muitas vezes não faltavam os maus jeitos, o forno era longe e o terreno mau, o corpo não aguentava e tinham de atirar o madeiro para o chão, antes de chegar ao destino.
Tirada a cortiça e casca, enformava-se a lenha formando o forno.
Começa a tarefa mais difícil e de mais técnica, “não falei há pouco dela, porque nas derrubas era mais difícil descrever toda a preparação do carvão”.
Forno alagado
Grandes fomos eram terrados por diversos homens metade de cada lado sempre a despique, para ver quem terrava o seu lado primeiro e mandar um[a] pazada para cima dos outros. ATERRAR, serviço bem duro, havia as ÁGUADAS, descanso de 15 minutos cada. Uma “águada” antes do almoço, duas do almoço ao jantar e três do jantar à noite. Terrados alguns fomos, o cozedor homem de grande experiência, acendia-os por esses vales fora, e tratava deles para que toda a lenha se cozesse, para isso tinha de ir de dia e de noite vigiá-los com frequência7,
abrindo ou tapando buracos chamados as “GATÊRAS”, estas abriam-se ou tapavam-se conforme a necessidade de entrada de ar; era aqui a sua técnica. Quando o cozedor (alagava) o forno, era o sinal que estava cozido8. Então os carvoeiros começavam por empoá-los, seguidamente punham o carvão por terra, separando algumas pontas de lenha que não cozera convenientemente, e tapando novamente o carvão para ser tirado no dia seguinte. Das pontas de lenha que não cozeram, faziam as “CUVATAS”, eram os fomos pequeninos. Tirar o carvão era tarefa bastante árdua; homens de grades, pás, enxadas, num braseiro de tamancos nos pés, os torrões em brasa às vezes faziam-lhes a partida, e lá se dava mais um grito ou rogava-se uma praga. O carvão era posto em filas, os asseiros, para arrefecer e escolher os torrões e pedras, mais tarde era ensacado.
Dias enormes de Verão trabalhando de sol a sol. Valia-lhes a SESTA, como compensação; ao jantar além de uma hora para o mesmo, tinham mais uma hora e meia para descanso. Começam em princípio de maio indo até fins de setembro, era o MANAJEIRO que no fim da sesta gritava:
ÁGUA FRESCA, para acordar o pessoal (os que dormiam); e lá estava o barril do precioso líquido, que o moço tinha acabado de trazer às costas, da fonte que muitas vezes ficava no fundo do outro vale9.
A sesta era também aproveitada para fazer os cabos para as ferramentas, os paus para os tamancos, que os faziam com capricho, o cocho para beber água, entre outras coisas também se fazia “UMA CADELA”, para se sentarem à noite na malhada de volta do lume que serviu para cozer a ceia, aí contavam os seus contos e anedotas, uma vez que as novidades eram poucas e as cartas da família, geralmente endereçadas ao cuidado do patrão, sempre demoravam a chegar. Aqui era o Manei que as lia e escrevia, pois só ele sabia ler um pouco e escrever.
Aos domingos, e depois de se trabalhar metade do dia, o resto do tempo era para lavar e remendar a roupa, aguçar ferramentas, tapar um buraco na barraca, já que a água da chuva tinha estragado o resto do avio, comprado no domingo anterior na (venda), do Monte ou aldeia mais próxima, ou vendido pelo homem que vinha na carroça aos domingos à tarde. Também era ao domingo à tarde, vestindo a roupa lavada, que se ia beber uns copitos, às vezes horas para se chegar à primeira povoação; sempre se tinha lá gente amiga, conhecida de anos anteriores.
Tirar o forno
Os mais novos se possível deslocavam-se ao outro monte; é que aí andava um grupo de moças que trabalhavam em MONDAS e costumavam fazer bailes. Alguns mais afoitos chegavam a namoriscar algumas, havendo os que chegavam a casar. Ainda hoje há quem se lembre de quadras feitas pelos poetas da malhada; eis uma delas:
Tenho fama de ser casado,
Pai de uma menina,
Para quebrar olhos ao mundo,
Caso contigo ó Cidalina.
Testemunhámos aqui um pouco sobre a vida dos carvoeiros, seria, pois, necessária uma grande coleção de livros para descrever tudo sobre os mesmos. Os escritores seriam aqueles que sofreram e trabalharam por este país fora e por quem temos o maior respeito.
Ainda hoje, quando conversamos com pessoas bem longe da nossa terra-Pego, orgulhamo-nos pela maneira como eles contam.
Conhece o ti Manei Pegacho? Há mais de trinta anos que não o vejo!
Gostava de o ver, era danado para trabalhar, aos domingos bebia uns copitos, mas era muito bom homem, sempre pronto para tudo.
Não falámos da mulher do carvoeiro, porque esta “A CARVOEIRA”, trabalhando sempre ao lado do homem, ganhando menos que ele por ser mulher, sofrendo ainda em alguns casos maus tratos do marido, e, por outros fatores merece um trabalho muito mais cuidado.
Sem querer, debruçámo-nos mais sobre os carvoeiros no Alentejo; aí haviam as maiores migrações, mas por exemplo em Trás-os-Montes, tanto frio, tanta neve, tantas serras, como seria?
Pego,1985
Joaquim de Sousa Gil
Notas
1 O autor refere-se, evidentemente, a 1985 e era verdade. Hoje, 2006, a quase totalidade dos carvoeiros tradicionais desapareceu, embora tenha nascido no Pego uma carvoaria industrial.
2 Século XX, recorde-se.
3 Cozinhar era, normalmente, tarefa das mulheres, que muitas vezes acompanhavam os seus homens nas carvoarias. Se as mulheres não iam, era normal contratar-se uma mulher, a cozinheira, cujo trabalho era cuidar das tarefas da cozinha. Em casos mais raros, em que não era possível ou vantajoso contratar cozinheira é que os homens faziam a própria comida.
4 Batatas de molho, grão com massa e à ceia, quase invariavelmente, batatas com massa e bacalhau ou arroz com bacalhau. A ceia. à noite, já era cozinhada e comida na malhada.
5 A cortiça era colocada em redes que depois eram carregadas em camionetas até às fábricas. Dos paus, já sem cortiça, faziam-se os fornos. A lenha era cuidadosamente colocada, uma por cima da outra, primeiro os madeiros mais grossos, depois os mais miúdos, numa técnica apurada por um saber de experiência feito. Depois a lenha era coberta por junco ou mato e em seguida com terra. Depois de terrado, deitava-se fogo na “porta do forno”. Depois de ateado, ficava a arder aí umas três semanas.
6 No texto dactilografado consta “sóbrios", mas trata-se, sem dúvida, de um erro de dactilografia. O original só podia ter “sadios", referindo-se aos sobreiros menos sadios ou mais doentes.
7 Normalmente, uma vez de manhã e outra ao fim do dia. Se as coisas se complicavam, podia ser necessária a vigilância noturna.
8 Alagar era retirar parte da terra e os torrões. Era o cozedor que sabia quando o forno estava pronto a alagar. Por vezes, nos tornos mais pequenos ele próprio fazia isso, mas a maior parte das vezes esse trabalho era feito por vários. Isso servia para ir arrefecendo o forno. Passados três ou quatro dias, era tempo de empoar.
9 Uma maneira de manter a água fresca era ter sempre o cântaro de barro embrulhado num saco molhado.
A Mulher nas Carvoarias
Isilda Jana - Professora de História e atual Vereadora da Cultura na Câmara de Abrantes
As mulheres sempre estiveram ao lado dos homens nas carvoarias. Sempre partilharam a dureza das tarefas e havia mesmo as que só eram feitas pelas mulheres.
Forno já tirado
Todas as tarefas que, de algum modo se podem associar ao trabalho doméstico, eram feitas pelas mulheres: ir buscar água, fazer a comida, lavar e tratar da roupa, cuidar dos filhos, ir buscar o avio (compras para a semana) a uma loja da localidade mais próxima. Tudo isso era, normalmente, trabalho da mulher.
Mas a par disto havia o trabalho propriamente dito.
Vejamos o que poderia ser um dia nas carvoarias.
De manhã, muito antes do nascer do sol, o manajeiro dava o sinal de acordar. A malta acordava e depois de se vestir e enrolar o fato da cama, partia para o local de trabalho. Às vezes bem longe.
Escolha do carvão pelas mulheres
Os filhos ou iam com os pais, ou quando já eram mais crescidos ficavam a dormir e depois iam terão forno.
As mulheres levavam à cabeça o cesto, aviado na véspera, com tudo aquilo que era necessário para fazer a comida do dia.
Chegados ao local de trabalho era hora de tomar o “desinjum”, o dejejum, um bocado de pão com conduto (queijo, toucinho, morcela...), um gole de vinho, ou um pouco de leite em pó com cacau. Esta era a primeira refeição do dia.
Entretanto a mulher deixava de molho a posta de bacalhau que iria fritar para se comer com as migas ao almoço.
Depois pegava-se ao trabalho. Homens e mulheres ficavam lado a lado a enfornar.
E quando a enforna estava quase pronta, era necessário ir buscar “tapum”, ou tapume, (junco, bracejo, fetos ou mato) com que se cobria a lenha antes de terrar o forno. Ceifar e trazer à cabeça para o forno grandes feixes com que se cobria a lenha era trabalho das mulheres.
Mas antes de ir ao tapume, as mulheres punham ao lume a panela de barro com as batatas para as migas. Eram cozidas com a pele.
Algum tempo depois voltavam as mulheres com grandes feixes à cabeça. Atiravam-nos ao chão e lá começavam a tapar o forno. Mas já eram 11 horas e estava na hora de preparar o almoço. As mulheres descascavam as batatas cozidas e fritavam o toucinho em torresmos e no unto faziam as migas. Quando tudo estava pronto, chamavam os homens e as crianças e todos comiam à sombra dos sobreiros.
Depois do almoço, as mulheres lavavam a loiça, deixavam já a panela ao lume com o feijão ou grão para o jantar. Logo de seguida pegava-se ao trabalho.
Entretanto, tinha-se acabado a água e lá partiam uma ou duas mulheres de cântaro ou barril à cabeça. A fonte era muitas vezes lá bem longe. Uma bica que corria bem fresquinha apesar da secura e do calor tórrido do Verão. Ir e vir podia levar bem meia hora de caminho, mas valia a pena porque, quando chegavam, todos pediam água fresca. O cântaro era depois colocado à sombra e sobre o mesmo um saco molhado mantinha a água sempre fresca.
Entretanto a malta, o conjunto das pessoas, cobriu já o forno com o tapume e começou a terrar.
Homens e mulheres cavavam e colocavam terra, tapando a lenha até à fiada, mais ou menos a meio do forno. Depois punha-se a fiada, uma faixa de mato a toda a volta do forno que ajudava a segurar a terra. Daí para cima era mais trabalho de homem. Era preciso força para levar as pás bem cheias de terra até lá cima. Era um trabalho muito duro.
As mulheres iam cavando à volta do forno, para arranjar terra que os homens com as pás atiravam para cima do forno.
Entretanto as mulheres já juntaram a mistura (arroz, massa, couve...) no feijão ou no grão que estava ao lume desde o almoço. Tudo cozido. Por volta das três da tarde era o jantar. De seguida a sesta.
Eram duas horas, entre as três e as cinco da tarde. A maior força do calor era passada à sombra de um sobreiro ou azinheira. Uns dormiam, outros só descansavam. Por vezes as mulheres aproveitavam para dar uns pontos na roupa ou para fazer algum bordado.
Era o tempo de recuperar forças que terminava com o grito:
- Água frescal, vindo do manajeiro.
E logo se retomava o trabalho.
Os homens terminam de terrar o forno e deitam-lhe fogo. As mulheres começam a escolher e preparar a lenha para enfornar o próximo. É um trabalho que as mulheres não gostam muito de fazer pois muitas vezes, debaixo da lenha, escondem-se as cobras.
E começa tudo de novo. Até que ao sol-posto homens e mulheres largam o trabalho.
Elas voltam com os cestos à cabeça. Logo que chegam à malhada acende-se o lume e prepara- se a ceia. Arroz ou massa com bacalhau... por vezes misturam batatas, mas é quase sempre o mesmo. Por vezes um coelho, uma perdiz, que a caça naquele tempo era farta.
Carvão ensacado, pronto a sair
Depois de cear, os homens sentados à volta do lume contavam histórias, deitavam contas à vida... As mulheres continuavam a labuta, aviavam o cesto para o dia seguinte, tratavam dos filhos, por vezes lavavam alguma roupa.
E era assim, dia após dia. Até ao domingo.
Ao domingo trabalhavam até ao meio-dia. Depois iam para a malhada.
De tarde os homens descansavam ou iam até à localidade mais próxima beber um copo. Por vezes iam nas bicicletas e traziam o avio. As mulheres continuavam a labuta.
Lavavam-se e lavavam os filhos. E depois, grande parte da tarde era passada a lavar a roupa da semana no ribeiro ou barragem mais próxima. Esta tarefa sabia a descanso apesar de o não ser. O sair da rotina, o contacto com a água, o estarem umas com as outras, sem os homens por perto... lavava-se a roupa e lavavam-se as mágoas.
Ao fim do dia juntavam-se todos. Ceavam. Os homens contavam as notícias, as crianças comiam regaladas os amendoins ou os rebuçados de meio tostão trazidos pelos pais e ouvia-se o rádio... Por fim, todos iam para a cama com a certeza de que no dia seguinte o trabalho duro os esperava.
Nas carvoarias a mulher trabalhava duro, tal como o homem.
Em todas as fases do trabalho, desde o corte e tirar da cortiça, até ao fazer do carvão todas as tarefas podiam ser partilhadas.
A mulher era o grande apoio do homem, ajudava-o no trabalho e prestava-lhe os cuidados domésticos, cozinhava, tratava da roupa... Quando a mulher não acompanhava o homem, este ficava um pouco perdido, dizia-se que "fulano de tal pregou o botão com um arame”. Se andava um homem sozinho eram, normalmente, as mulheres dos outros que lhe tratavam da panela.
Quando havia situações em que eram só maltas de homens, levavam uma cozinheira que tratava das panelas de todos e alguns pagavam-lhe para lhes lavar a roupa.
Em resumo, o trabalho da carvoaria era muito um trabalho de par, em que havia uma grande interdependência entre o trabalho do homem e da mulher. Exemplificando: o homem cortava a lenha, a mulher acarretava-a para o local onde se tirava a cortiça; o homem fazia as lêves, a mulher carregava-as até forno; a mulher cavava a terra e o homem terrava; o homem fazia os asseiros e a mulher escolhia o carvão... e eram necessários os dois para ensacar o carvão depois de feito.
VOCABULÁRIO CARVOEIRO
Aguada - ração de água ou tempo de paragem para beber água e descansar
Aguçar - afiar
Alagar - retirar os torrões e parte da terra de cima do forno depois de cozido para ele arrefecer
Alcofa - cesto, geralmente feito de esparto
Almoço - refeição tomada a meio da manhã, às 10 horas
Asseiro - disposição do carvão em filas para ser escolhido, ou seja, separado de pedras, cortiça, etc.
Avio - (de aviar) comestíveis, compras para abastecimento, “ir aviar-se”
Barraca - habitação improvisada com paus e folhagem
Bracejo - ou palhugueira, planta parecida com o junco
Cadela - banco feito de ramo de sobreiro numa única peça (assento e pernas)
Ceia - refeição tomada à noite
Cocho (e não coxo) - vasilha em cortiça para
beber água
Conduto - pedaço de carne (ou peixe frito, ou queijo ou chouriço) que acompanha o pão ou o “comer cozinhado” (migas, massa, batatas...)
Cortiça à falca - cortiça dos ramos do sobreiro (diferente da cortiça do tronco)
Cortiça mansa - o mesmo que cortiça virgem
Cortiça virgem - a primeira cortiça tirada de um sobreiro
Covata - pequeno forno feito para cozer os tiços ou paus mal ardidos na primeira cozedura Cozedor - homem responsável pela cozedura
Cozer carvão - fazer a combustão controlada da madeira de modo a resultar carvão
Cunha - pedaço de ferro em ângulo introduzido à força para rachar lenha
Derruba - operação de derrubar ou deitar abaixo o sobreiro (serrado ou, mais tarde, arrancado com máquina) para ser feito em lenha
Empoar - cobrir com o pó ou terra tirada de cima do forno o carvão (muito dele ainda em brasa) depois de o forno ter sido desmanchado (e estar separado ou escolhido o carvão dos tiços ou pedaços mal ardidos) tiços ou paus mal ardidos na cozedura
Enfornar - fazer o forno, dispor a lenha e cobri-la com terra de modo a permitir uma combustão controlada
Enxó - ferramenta para desbastar peças grossas de madeira
Fiada - coroa em mato, colocada a meia altura da parede do forno, que ajudava a segurar a terra (e que devia servir como respiradouro do forno durante a cozedura)
Forno - monte de madeira coberto de terra de modo a fazer carvão
Gateira - buraco para entrada de ar no forno a fim de controlar a combustão da lenha
Grade - instrumento com dentes (aparentado com a forquilha, mas com os dentes em posição diferente) com que se rapava o carvão
Jantar - refeição tomada ao princípio da tarde, às 14 horas
Lêve - bocado de terra molhada retirado, em tempo de chuva ou junto de água, a golpes de enxada, que era utilizado para cobrir o forno
Malhada - local ocupado pelos carvoeiros com as suas barracas e o fogo e os poucos pertences e que tanto podia ser entre sobreiros como num barracão do monte
Malta - conjunto de pessoas
Manajeiro - capataz, o que comanda o grupo e dirige os trabalhos
Marrão - maço ou marreta para espetar à força a cunha na madeira
Mau jeito - lesão corporal em resultado de um mau movimento, “dar um mau jeito”
Migas - espécie de açorda feita com pão batata e gordura de porco, “fazer umas migas” Mistura - aquilo (arroz, massa, couve...) que se misturava no feijão ou no grão na panela Monda - arranque de ervas daninhas numa sementeira
Par de migas - ração de migas feita de uma vez na sertã
Sertã - espécie de frigideira
Sesta - tempo de descanso à hora de maior calor
Tamanco - peça de calçado rústico com base em madeira e peito de couro grosseiro
Tapume - cobertura vegetal (junco, bracejo, fetos ou mato) com que se cobria a lenha e que por sua vez seria coberta de terra (terrar o forno)
Terrar - cobrir de terra o monte de lenha para que fique pronto para a cozedura
Toro - secção sem ramos de tronco de árvore abatida
Venda - loja em que se vende, geralmente mercearia de aldeia
Duas enxadas e uma grade
In: JANA, José Alves – As carvoarias do Pego. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 4 Nº 8 (2006), p. 19-30