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POR TERESA APARÍCIO - Professora, membro do CEHLA

Filipe Nunes, mais conhecido por “Ti Filipe”, é na verdade “um homem dos sete ofícios” e, se contarmos bem, terão sido até mais alguns, tantas e tão diversificadas foram as atividades que desenvolveu durante a sua já longa vida. Conta hoje a bonita idade de noventa e três anos, atravessou quase todo o século XX e vai entrando em força pelo século XXI, sempre ativo e interessado pela vida, embora o peso dos anos já se faça sentir sobre os seus ombros cansados.

Nasceu em Abrantes, mesmo no coração do seu centro histórico - o castelo. O pai era alferes no Regimento de Artilharia, então ali sedeado. A mãe era espanhola, de Sevilha, mas na altura trabalhava e residia numa das dependências do castelo. Foi desta, e da exuberância do seu sangue sevilhano, que herdou a vivacidade que, apesar da idade, ainda hoje o caracteriza.

Nunca conheceu o pai, pois este foi para França, integrado nas tropas portuguesas que para ali foram combater na Primeira Guerra Mundial e lá morreu, segundo ele e por ironia do destino, no próprio dia em que o filho veio a este mundo.

A mãe ganhava pouco e por isso quase não frequentou a escola (fez a quarta classe já em adulto) e cedo teve de ir trabalhar. Ainda criança, com oito ou nove anos, já era pastor nas barreiras do castelo. O rebanho era pequeno, apenas algumas ovelhas que pertenciam a um militar do quartel, mas os poucos tostões que ganhava eram necessários à sempre magra economia familiar.

Amante do desporto, na juventude jogou futebol no Benfica de Abrantes e também em Tramagal, Rossio ao Sul do Tejo e Dragões de Alferrarede.

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Fez a tropa não em Artilharia onde estivera o seu pai, mas em Infantaria, outro dos quartéis da cidade. Aí passou pela sua vida um outro desporto, este bastante mais radical - o boxe. Foi, pois, pugilista e orgulha-se de ter tido como mestre um cabo-verdiano que se dizia primo de Ben Levi, um americano muito famoso na arte do soco.

Casou, os filhos começaram a aparecer (e foram sete), as dificuldades aumentaram e a vida passou a doer a sério. Era preciso sustentar a família e então tornou-se funileiro. Fazia panelas, tachos e outros objetos em folha-de-flandres ou zincada, colocava fundos novos em recipientes velhos, deitava pingos de estanho nos pequenos buracos que o uso e o calor iam abrindo e punha “gatos” em pratos de loiça. Estes eram uma espécie de agrafos feitos de metal, que introduzidos por detrás do objeto, nuns pequenos furos feitos com uma sovela, ligavam as duas partes partidas, sem nada se ficar a ver pela parte da frente.

Era um tempo em que a vida era difícil e o dinheiro pouco, pelo que os objetos se utilizavam até ao limite possível da sua durabilidade. Assim passou a arranjar de tudo um pouco, desde alambiques a chapéus-de-chuva, tornando-se assim também amola-tesouras.

Começou a andar de porta em porta a oferecer o seu trabalho, carregando às costas a pesada caixa das ferramentas e só depois, quando foi possível, comprou uma bicicleta para se poder transportar mais rápida e comodamente. A seguir veio um carrito puxado por um burro e com ele, na companhia da mulher e já com dois ou três filhos, percorreu muitas (e algumas distantes) terras do nosso país. Escolhia uma árvore que fosse mais frondosa, sob ela armava uma pequena tenda de pano, feita por ele, e aí dormiam, quer fizesse bom ou mau tempo. Certo dia, veio uma trovoada tão forte que a água quase os ia arrastando a todos, tendo-se salvo por pouco.

Para anunciar a sua chegada, batia com um martelo numa bigorna e, passados poucos minutos, apareciam os fregueses com os objetos que tinham para arranjar. Quando o dinheiro o permitiu, comprou uma espécie de flauta típica dos amola-tesouras, cujo código musical era conhecido de todos. E as pessoas até diziam que quando aquele toque se ouvia muito nitidamente, era sinal de chuva próxima.

Como os filhos começassem a aumentar, esta vida itinerante tornou-se pouco prática. Fixou-se novamente em Abrantes, deslocando-se apenas para os arredores, que por vezes não eram assim tão próximos. Mas não ficou por aqui por muito tempo. O dinheiro continuava a ser pouco e então tornou-se contrabandista. Ia a pé, com o saco do contrabando às costas, muitas vezes a corta-mato para não ser apanhado, dormia onde calhava, mesmo no campo e assim percorreu grande parte de Espanha, chegando a ir até Andorra. Levava café, tabaco, arroz, etc. e trazia outras coisas, como bonitos tecidos, que não se encontravam por aqui, especialmente “no tempo da guerra” e que só podiam ser comprados por pessoas endinheiradas. Era um trabalho perigoso e os guardas espanhóis não eram para brincadeiras, mas sempre ia ganhando mais qualquer coisa. Andou assim sete anos e so não andou mais, porque a mulher, a sua Amélia, lhe pediu encarecidamente que deixasse aquela vida, pois vivia numa constante aflição, com medo que lhe acontecesse algum percalço. E ele, por vezes, demorava a regressar, chegando a estar dois meses sem vir a casa...

Deixou o contrabando e a vida ainda ficou mais difícil. Voltou a viver com a família numa tenda, mas agora em Abrantes, no Barro Vermelho, onde era o antigo campo de futebol. A mãe morava perto, num buraco profundo que ali existia, cavado na argila. Foi dos piores tempos da sua vida. Passava mal, por vezes pouco havia para comer, mas primeiro estavam sempre os filhos.

Para ver se arranjava mais algum dinheiro suplementar, começou a andar nas feiras com uma barraca de fantoches. Eram os chamados “Robertos”. A cabeça e as mãos dos bonecos eram feitas em madeira e depois pintadas, tudo feito por ele. A mulher confecionava as roupas que tinham de ser largas, para se poderem meter nelas as mãos e assim manejar os fantoches, de acordo com a situação que se pretendia. Ele e mais dois irmãos é que faziam este trabalho de dar vida aos bonecos, tendo também de introduzir na garganta uma espécie de tubo, denominada “palheta”, conseguindo assim que a voz tivesse aquele tom esganiçado, característico dos “Robertos”. O enredo das pequenas peças era arranjado pelo “Ti Filipe” e quase sempre baseado em histórias que lia ou em contos tradicionais. Um dos trabalhos que mais gostou de fazer e que mais tempo perdurou na lembrança dos espectadores foi sobre a vida do Marquês de Pombal. Lera uma biografia, em versão popular e achou que daria uma peça interessante, o que na verdade aconteceu. Entre outras ficaram-lhe também na memória “Carolina e o João Esqueleto” e “O Salteador da Calabria”. E o mais interessante e que as peças não eram escritas, funcionavam apenas num registo oral e, apesar disso, os vários atores conseguiam entender-se.

Mas era preciso chamar o público e, então, dois ou três músicos tocavam com estridência alguns instrumentos musicais e mesmo a mãe, que já tinha alguma idade, conseguia ainda tocar, com energia, uma espécie de tambor, denominado “caixa”. As pessoas acorriam para ver o espetáculo e, no final, a mulher ia com uma bandeja por entre a assistência, recolher as moedas que iriam depois contribuir para sustento do espetáculo. Não havia um preço estipulado, cada um só dava o que queria e o que podia.

Era uma pequena empresa familiar, onde todos tinham uma função a desempenhar, mas de que o “Ti Filipe” era a verdadeira alma. Conservou até há pouco tempo a barraquinha dos fantoches, que também foi feita por ele e umas ondas do mar em madeira, cenário de uma qualquer peça e ainda conserva as cabeças de alguns bonecos. Estava tudo muito bonito, diz-nos ainda hoje, com ar saudoso e enlevado.

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Mas nem só disto se podia viver, pelo que teve de continuar com o seu trabalho de funileiro.

Passou também a ir trabalhar aos quartéis, onde arranjava as cornetas, as peças metálicas das tendas de campanha e muitas outras coisas. Começou aqui por Abrantes, pelo Quartel de Infantaria, que então estava no Convento de S. Domingos, mas passou depois a ser chamado par ir a outros mais distantes. Pagavam-lhe o comboio, mas o dinheiro que ganhava não era muito.

A música foi outra das suas paixões. Tocou em várias bandas filarmónicas: na de Abrantes (extinta há muito), Rossio ao Sul do Tejo, Ponte de Sor, Sardoal e Mação. Ultimamente tem tocado na de Mouriscas e com noventa e dois anos ainda acompanhava a banda nas festas e procissões, tocando “caixa” ou bateria.

Há uns meses atrás, partiu uma perna e esteve algum tempo afastado da sua terra. Agora regressou e já o vemos de novo pelas ruas da nossa cidade, cujas calçadas estavam por certo saudosas dos seus passos, que há tantos anos estavam habituadas a ouvir e a sentir.

Viúvo já há uns anos, recorda com saudade a sua Amélia, companheira dos momentos bons e dos maus (que foram muitos), mas continua enfrentando a vida com a coragem que sempre o caracterizou. Onde mais gosta de estar é na sua pequena loja (o seu pequeno santuário), rodeado pelos objetos que ele ama e que fizeram parte da sua vida: as ferramentas, o carrinho de amola-tesouras, os fantoches, os instrumentos musicais, etc... E ainda vai trabalhando, fazendo pequenos arranjos em objetos variados, alguns dos quais, hoje, apenas só ele sabe fazer.

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IN: APARÍCIO, Teresa – “Ti Filipe: o homem dos sete ofícios. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 7. Nº 14 (2009), p. 36-39