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No quinto aniversário da EICA, a 5 de novembro de 1958

AMÉRICO SANTO (1920-2009) - O SENHOR DIRETOR

POR CARLOS GRÁCIO - Professor de História na ESSA e membro do CEHLA

No dia 20 de outubro do ano de 2009 faleceu o Dr. Américo Santo, que ficará indelevelmente ligado à história da Escola Industrial e Comercial de Abrantes (EICA), pois dela foi, em boa parte da sua história, diretor, mais precisamente entre outubro de 1956 e 1975, quando foram extintos os cargos diretivos uninominais como sejam os diretores das Escolas Técnicas e os Reitores dos liceus.

Nasceu na véspera de Natal de 1920 em Alpedriz, uma freguesia do concelho de Alcobaça, onde fez os estudos primários, sendo os estudos secundários em Leiria, vindo a licenciar-se em Física e Química pela Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Prestou serviço militar em Abrantes na arma de Artilharia (premonitório da sua carreira docente praticamente toda ela feita nesta cidade).

Pela consulta do seu processo individual1, verificamos que iniciou a sua vida de professor na Escola Industrial e Comercial de Portalegre, em 1953/54, após ter feito Exame de Estado para professor efetivo do Io grupo em 26 de Junho de 1953, tendo entrado ao serviço da EICA no ano letivo de 1954/55; prestou pontualmente serviço, nomeadamente de exames, noutros estabelecimentos de ensino, como sejam a Escola Industrial e Comercial de Santarém em 1958/ 59 e na Escola Técnica de Alcobaça de 1964/65 a 1968/69.

A Escola Industrial e Comercial de Abrantes tinha sido criada por decreto a 7 de julho de 1953, tendo iniciado funções em 5 de novembro do mesmo ano, com 224 alunos, 10 professores e 4 mestres, 9 turmas, sendo 2 femininas e 7 masculinas, 4 diurnas e 5 noturnas.

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Havia sido nomeado seu Diretor o Dr. José Manuel Malheiro do Vale (falecido em 1992, era o autor deste artigo, presidente do Conselho Diretivo desta escola, então chamada de Secundária n° 1).

As instalações (provisórias) sediavam-se na Rua Grande, transitando para o edifício Carneiro em 1955, na Rua de S. Pedro do Castelo, onde permaneceram até 1959. Nesse ano foi solenemente inaugurado o edifício atual, que neste momento sofre profundas obras de reestruturação, na Estrada Nacional 24, hoje Avenida Das Forças Armadas.

Foi no edifício Carneiro que o Dr. Américo Santo iniciou funções docentes em Abrantes e onde exerceu diversos cargos pedagógicos como sejam, delegado de grupo e diretor de ciclo, tendo sido exonerado deste último em outubro de 1956 a seu pedido, para ocupar o cargo de Diretor da Escola, em substituição do citado Dr. Malheiro do Vale.

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Corpo docente da EICA em 1956

Vivia-se então em Portugal os anos sombrios da ditadura política do Estado Novo. Salazar eternizava-se no cargo de Presidente do Conselho como então se designava o primeiro ministro, Craveiro Lopes era Presidente da República, a Europa lambia as feridas deixadas pela 2a Guerra e o Mundo bipolarizava-se entre a América e a União Soviética, a Guerra Fria agigantava-se, o rock and roll tinha surgido em 1955, curiosamente a partir de uma canção tema do filme “Sementes de Violência” (em inglês, Blackboard Jungle), que retratava o ambiente atribulado numa escola técnica americana, onde um jovem professor substituto lidava com a indisciplina e o racismo crescentes - a canção chamava-se “Rock around de clock”...

Os cargos de Diretor e Reitor das escolas técnicas e liceus eram de cariz pedagógico e administrativo, mas também político, correias de transmissão do poder central, inculcando valores morais e de respeitabilidade, defendendo uma rígida hierarquia, geradora de atitudes automáticas, enquadrados em rígidas normas comportamentais. O Diretor era uma figura omnipresente, que tudo sabia e que intervinha nas mais inusitadas situações.

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No jantar de homenagem ao Dr. Malheiro do Vale

 

Das várias conversas tidas, para a elaboração do presente artigo, gostaria de destacar o depoimento da D. Fernanda Neto, funcionária administrativa da escola, que recolhi poucos dias antes da sua aposentação e que conheceu o Dr. Américo Santo primeiro como aluna e depois como funcionária e que destaca o seu rigor de atuação, a sua exigência no cumprimento da disciplina, na separação das instalações escolares de rapazes e raparigas (ainda não há muito tempo que se dizia “o pátio dos rapazes”, “o pátio das raparigas”), as normas de decoro, ficando célebres a medição da altura das saias das alunas que não podiam estar acima do joelho, ou ainda a instalação sonora no gabinete do Diretor que lhe permitia agir de imediato quando nos pátios algum aluno prevaricava e tinha atitudes consideradas menos próprias, como foi o caso que a referida senhora me relatou, em que o Sr. Diretor admoestou um aluno por estar encostado a um arbusto, qual Big Brother que tudo observa, tudo vigia, de tudo está a par.

Destacou igualmente como funcionária o rigor respeitoso que sempre manteve nas relações profissionais, mas também a sua afabilidade e cordialidade.

Após o 25 de Abril manteve a função até 1975, em condições naturalmente difíceis em que tudo era contestado e posto em causa.

Após ser exonerado do cargo (como todos os outros diretores e reitores das várias Escolas Secundárias e Preparatórias do país), manteve-se em funções docentes, exercendo com brio e com as qualidades profissionais que todos lhe reconheciam, diversos cargos como sejam, delegado de grupo, diretor de turma, ou diretor de instalações.

Conheci-o em 1986 quando vim para a Secundária n° 1, fazer a minha formação em serviço. Dele retenho exatamente a cordialidade, a educação no trato e a respeitabilidade, que manteve sempre que nos encontrávamos casualmente, após a sua aposentação ocorrida em 30 de junho de 1990.

Numa palavra, um Senhor!

Era casado coma Senhora D. Maria Guilhermina Zúniga, entretanto falecida, e pai do Eng. Jorge Santo.

Termino este despretensioso trabalho de evocação de uma figura incontornável da história da escola onde trabalho há mais de 20 anos, com vários depoimentos escritos por pessoas que conheceram mais de perto que eu, o Dr. Américo Santo, bem como do atual Diretor da Escola Secundária Dr. Solano de Abreu, uma vez que não se repetindo a História, repetem-se ou recuperam-se os cargos, embora numa perspetiva diferente.

DEPOIMENTOS

Pediram-me um testemunho sobre a vida e obra do Senhor Dr. Américo de Jesus Almeida Santo, o que faço com prazer e alegria, pois foi grande a amizade que sempre nos ligou desde que ele veio para esta cidade, primeiro como professor e mais tarde como diretor da Escola Industrial e Comercial de Abrantes, que hoje tem o nome de Escola Dr. Solano de Abreu.

Como pessoa, posso afirmar que foi sem dúvida um homem bom, que tinha sempre a preocupação de cumprir escrupulosamente o seu dever, para com toda a gente, o que por vezes lhe deu dissabores...

Foi Confúcio que nos deixou esta máxima: “Nem todos podem ser ilustres, mas todos podem ser bons”. Ora, esta era e foi sempre a sua grande preocupação. Quem com ele privou poderá testemunhar esta realidade. E porque vivemos em tempo de crise global de valores, que tem a sua origem num vazio de normas morais, importa realçar a vida do Senhor Dr. Américo, razão pela qual era uma pessoa simpática para toda a gente, em especial as pessoas que serviam a Escola com dedicação, amor e espírito de servir. Esta é sem dúvida a arte de ser chefe, pois o chefe não é o que faz tudo, mas o que ajuda os outros a fazer. E esta Escola, que foi das mais prestigiadas no país não só na sua situação geográfica mas também pela habilidade que o Senhor Dr. Américo teve em saber aproveitar a embalagem que a escola já tinha da direção do grande pedagogo que foi o seu fundador, Dr. Américo Malheiro do Vale e que o Senhor Dr. José Manuel Malheiro do Vale soube manter e dinamizar. A sua grande preocupação era a Escola e o bem de todos. Por vezes sacrificava a própria família, as suas férias e até a própria saúde, pois normalmente ali passava os seus dias e por vezes o próprio serão.

No primeiro dia de aulas cada professor recebia o seu horário e respetiva caderneta, no entanto estava sempre disposto a ajudar a resolver dificuldades. Não se limitava a mandar, mas por vezes ouvia as pessoas e por vezes pedia opinião e dialogava. E a luz vem normalmente do diálogo. “É a falar que as pessoas se entendem” e o povo diz na sua sabedoria popular: “Faz o bem não olhes a quem... o bem não faz barulho e o barulho não faz o bem”.

A grande preocupação do Dr. Américo Santo era não só transmitir conhecimentos, mas sim formar homens e mulheres para a vida. E foram muitos os que por aqui passaram e a escola preparou para o mercado do trabalho. Abrantes, sendo um dos polos de desenvolvimento do centro do país, não tinha ensino oficial para a classe média e por isso foi com grande alegria que em 6 de novembro de 1953 foi inaugurada a Escola Industrial e Comercial, que beneficiou não só alunos do concelho de Abrantes, mas também dos concelhos limítrofes (Gavião, Sardoal, Constância, Ponte de Sor e Vila e Rei). Todos estes concelhos têm uma dívida para com a nossa Escola e quantos nela serviram com dedicação e amor. Sendo a gratidão um dos sentimentos mais nobres que existem no coração humano, importa que se preste homenagem a quem tanto contribuiu para o engrandecimento do país.

Recordo aquele pensamento de alguém que dizia que a ingratidão é a pior das plantas que existem na terra e o provérbio russo que diz: “Podemos pagar o ouro que nos emprestam, mas nunca o bem que nos fazem”. E foi o que o Senhor Dr. Américo fez por esta Escola, tornando muitas pessoas alegres e felizes.

Pde. Manuel Narciso Alves

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Na cerimónia evocativa do cinquentenário da EICA

Aos diretores, quer antes do 25 de Abril, quer à nova figura criada pelo Decreto-Lei N°. 75/2008, de 22 de Abril, é confiada a gestão administrativa, financeira e pedagógica das escolas/agrupamentos. No entanto, as semelhanças entre os diretores de antes de abril de 74 e os diretores atuais esgotam-se praticamente na definição de competências atrás enunciadas. Se antigamente eram nomeados e respondiam diretamente ao poder dominante, presentemente são recrutados de entre docentes qualificados para o exercício das funções, seja pela formação ou pela experiência em administração e gestão escolar, através de procedimento concursal, prévio à eleição. Apesar da complexidade do sistema educativo atual e da diversidade de variáveis que, hoje, um diretor enfrenta e que anteriormente pareceriam mais simples, devido a um enquadramento autoritário da figura do diretor, ambos tiveram e têm pela frente um grande desafio de promover a unidade escolar e fomentar o espírito de equipa entre os professores e funcionários da escola, ou seja, desenvolver a transição de um grupo para uma equipa escolar.

Jorge Costa Atual diretor da ESSA

Falar do Dr. Américo Santo é lembrar um homem de quem guardo uma imagem da civilidade, da amabilidade e do respeito pelos seus parceiros e colaboradores.

O Senhor Diretor, como o conheci e como o reconheci sempre, ao longo de 39 anos de docência, dentro e fora da escola, recebeu-me amavelmente no primeiro dia em que iniciei funções, ainda jovem, insegura, mas com vontade de aprender a ensinar.

Com ele aprendi o sentido da expressão “serviço púbico” e a gostar da nossa escola. Dele recebi sempre incentivo para fazer melhor, respeito e reconhecimento pelo meu trabalho.

Foi com estranheza e mágoa que assisti à forma como deixou as suas funções de direção, num tempo quente de emoções, em que a sua correção para todos os colaboradores não foi correspondida. Apesar disso, soube voltar à sua condição de professor e dar-lhe igual dignidade até à aposentação.

Depois não nos encontrámos, muitas vezes, na escola, mas continuei a cruzar-me com ele na cidade e a saudá-lo como sempre.

A escola, como a conheci e como a entendo, e as gerações de alunos que por aqui passaram, serão sempre devedores do seu trabalho.

 

Fernanda Chambel Professora desde os tempos da EICA

Como aluna da Escola Industrial e Comercial de Abrantes, aluna regular e introvertida, recordo o então Diretor, Dr. Américo Santo, com a autoridade inquestionável que assegurava o bom funcionamento da Escola, garantindo aos alunos um ambiente propício à sua formação integral. Mais tarde, lecionando no mesmo estabelecimento de ensino, tive o privilégio de conviver com o Dr. Américo Santo que, nessa altura, era professor efetivo de Física e Química. Desse período, recordo a sua simpatia, a disponibilidade e o interesse genuíno em contribuir para a minha valorização pessoal e profissional.

 

Fernanda Mendes Antiga aluna da EICA e professora da ESSA

 

Conheci o Dr. Américo Santo sob duas vertentes:

Como visita da sua casa (posteriormente como padrinho) e como diretor da E.I.C.A., durante o meu período de estudante, desde o Ciclo Preparatório até completar o Curso Geral de Formação Feminina. Em casa era uma pessoa simples, interessado na vivência familiar, ativo, cordial para com os vizinhos, presenteando-os com o gesto de descobrir a cabeça, tirando o seu “sempre presente chapéu de abas”. Era reservado e com o seu espaço bem delimitado. Na sua casa acolhia miúdos para brincar com o filho e sobrinhos nas férias.

Como Diretor da E.I.C.A., era rigoroso, sempre presente, um “Homem do seu Tempo”, que gostava de ter o controle da situação, mas muito próximo dos alunos e professores, quase como nossa sombra. Era, todavia, um dirigente que, apesar das regras que impunha, aceitava consensos. Só a título de exemplo cito três situações:

- Deixava o meu grupo, desde que a professora concordasse, assistir aos treinos das equipas de futebol profissional no “Barro Vermelho”, mas o tempo era compensado durante a semana, nos períodos livres!

- Quando surgiu a moda da mini saia, obrigou-nos a descer a bainha da bata um palmo abaixo do joelho... como retaliação descemo-la até quase aos pés e ele recuou!

- Após solicitação da respetiva professora, comprou ele próprio discos de música francesa... só que entre as músicas vinha o ousado “Je t aime, moi non plus”, que ele resolveu censurar, indo buscar o disco à sala de aula. Conseguimos, todavia, convencê-lo a deixar-nos ouvi-lo, na sua presença, o que nos deixou muito felizes, porque ouvimos algo proibido, o que poucos tinham conseguido!

Já sopravam os ventos da democracia e liberdade e nós já inconscientemente nos rebelávamos com as regras...

 

Lucinda Pereira Funcionária do ASE

 

Nota:

1 O autor agradece as facilidades concedidas pela direção da Escola Secundária Dr. Solano de Abreu, na pessoa do seu diretor, Dr. Jorge Costa, para pesquisa de documentos e recolha de depoimentos, sem os quais este texto não poderia ter sido elaborado com o rigor que a memória do Dr. Américo Santo merece.

IN: GRÁCIO, Carlos – Américo Santo (1920-2009): O Senhor Diretor. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 8. Nº 15 (2010), p. 55-59