memorias

POR JACINTO ABREU

Jacinto Abreu nasceu no Rossio de Abrantes, em 1922, filho de um embarcadiço. Nessa atividade começou a trabalhar, mas conseguiu libertar-se para os caminhos-de- - ferro como fator. Em 1947, parte para Angola, também como fator. Em 1951, regressa a Portugal, e vai trabalhar como vendedor das Fundições do Rossio de Abrantes. “Fiz a primeira Feira do Ribatejo”, explica. Em 1954 parte, para o Brasil, onde foi várias coisas, mas sobretudo empresário de postos de gasolina e praticante de Judo, modalidade em que é 6º Dan. Em2004, portanto, 50 anos depois, regressa a Portugal.

Para salvar um pouco da sua história pessoal, começou a escrever as suas memórias. Mas parou no regresso a Portugal. Foi esse documento que nos confiou e agora publicamos. No trabalho de edição, mantivemos o mais possível o texto original, mas corrigimos o tom brasileiro e fizemos algumas alterações de pontuação para facilitara leitura corrente.

Entretanto, sabemos que Jacinto Abreu está a gravar de viva voz a sua vida. Uma vida que é um documento histórico de particular interesse, como os nossos leitores podem constatar de imediato.

Alves Jana

 

Confesso que não creio que consiga o objetivo que pretendo alcançar. Escrever as memórias da minha vida. Partindo da premissa de que toda a tentativa é válida, vamos lá. Começo por dizer que tinha mais ou menos seis anos e fomos para a Chamusca, onde o meu pai tenta melhorar a situação financeira, já bastante precária, resolveu tentar a sorte, comprando uma pequena pensão; tínhamos ali uma funcionária que se chamava, ou antes, tinha o alcunha de Meirinha.

 Eu tinha o hábito de ir olhar os rebanhos que atravessavam a terra, e algumas manadas de cavalos, que eu cheio de alegria via passar até ao fim, porque era atrás que sempre vinham as mães com as suas crias, e eu adorava-os; um dia, o pastor disse-me: - Já que gostas tanto, qualquer dia dou-te um cavalinho!... E como que a confirmar acrescentou: - Podes até escolhê-lo.

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Na Vila do Luzo.

Como um foguete, corri logo para casa a contar a boa nova à Meirinha; riu-se na minha cara e virou-me as costas com ar de quem não tinha ouvido nada de importância; mas eu não; eu era com certeza o futuro dono de um lindo cavalinho.

 Um dia ao entrar numa casa do quintal onde estavam guardados alguns barris de vinho, vejo a Meirinha de joelhos junto de um barril de 200 litros e com a boca na torneira e a mão esquerda controlando a saída do tinto diretamente pró papo, sem precisar de copo: a coitada ficou tão atrapalhada que deu um berro seguido de dois esguichos, um por cada narina que pareciam duas torneiras soltando vinho: quando pôde, aponta para a porta e grita: Vai lá que estão a trazer o teu cavalinho!... Ato contínuo, olho por debaixo das pernas duma mesa, por onde se via a porta de entrada, e vejo realmente as pernas dum cavalinho junto da mãe.

Santo Deus, quase morro de alegria; corro como louco para a porta de entrada pensando tratar-se do meu presente, e quando pergunto ao homem se aquele era o meu cavalo, encolheu os ombros, como quem não está a entender nada, até porque realmente não era para entender, visto que de nada sabia, e virou- -me as costas indo em frente procurar se havia alojamento para ele, na verdade o único motivo que o levara ali.

Fui desolado comentar a minha desdita com a Meirinha, a esta altura já refeita do susto que apanhara por ter sido surpreendida naquela situação, e como resposta disse-me que eu só teria o cavalinho quando as galinhas tivessem dentes; foi nessa altura que eu me convenci que na realidade tinha sido enganado pelo pastor; este episódio marcou profundamente em mim pois por muitos anos carreguei com essa desilusão, e hoje decorridos mais de 80 anos ainda me lembro muito bem das sensações que senti, primeiro duma grande alegria, e depois duma grande tristeza.

Mais tarde os meus pais resolveram voltar à nossa terra, pois a tentativa de melhorar a situação na Chamusca não deu certo, e a mais do que levou, meu pai apenas trouxe uma filha, que foi a minha irmã mais nova, a Isilda, que nasceu lá.

O meu pai tinha um barco que fazia transportes no Tejo de diversas cargas, e que, quando o ria enchia, no Inverno, era quando se ganhava algum dinheiro, mas se a chuva tardava e a seca portanto se prolongava, tornava-se um problema muito sério porque o dinheiro acabava e os pais não tinham donde viesse para manter a casa: recordo-me perfeitamente dalgumas ocasiões em que meu pai teve de recorrer a amigos, pedindo algum dinheiro emprestado que pagaria “logo que chovesse”; este era realmente um problema com que se defrontava a classe marítima que se dedicava aos transportes no rio Tejo: por vezes conseguiam alguns dias de serviço avulso, nalgumas firmas da terra fazendo qualquer tipo de serviço.

Numa dessas ocasiões valeu-lhe o presidente da Junta de Freguesia, que era seu amigo e que sabendo da sua situação o ocupou a pintar os postes de eletricidade (iluminação pública) deixando a seu critério a cor a ser aplicada; como o meu pai achasse as cores verde e vermelho bonitas, pintou metade de cada uma.

Depois de pintados o meu pai olhou para a obra e ficou orgulhoso do bom gosto que tivera, e lá se foi no fim do dia para receber o salário do dia, que eram dez escudos: estava ele em casa a jantar quando bateram à porta e lhe dão o recado para ir imediatamente falar com o presidente; estranhou, pois tinha acabado de sair de perto dele, mas foi o mais depressa possível.

Chegado lá perguntam-lhe quem foi o subversivo que o convenceu a pintar os postes daquela cor; como não entendesse em princípio disse isso mesmo, que não entendia.

E o diálogo foi mais ou menos este.

- De que cor pintou o senhor os postes?

- De verde e vermelho.

- Porquê?

- Porque acho as cores mais bonitas que as outras.

- E o senhor não sabe que essas cores são republicanas, e ser republicano é ser contra o nosso regime?

- Não senhor, não sabia.

- Você não sabia que isso pode ser considerado crime político, e, portanto, sujeito a ser preso imediatamente, até responderem processo?

- Não senhor, não sabia.

- Por esta escapa, mas não volte a fazer outra, pois na próxima não será tão bem sucedido. Amanhã o seu primeiro serviço é cobrir tudo duma só cor.

Ficou assim este assunto encerrado e o meu pai voltou a casa mais confuso do que quando saiu, pois muito embora ele, como a quase totalidade dos portugueses detestassem a ditadura Salazarista existente na época, muito poucos se atreviam a mostrar as suas ideias por saber[em] que a cadeia os esperava sem processo formado, sendo imediatamente fechado como comunista pela famigerada PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), o que equivalia a dizer que era um homem marcado para o resto do tempo em que durasse o regime: muitos morreram nos cárceres sem verem a queda da ditadura.

Foi numa dessas fases difíceis na vida de todos nós que recebemos a visita dum “tio rico”, o tio Mané da Fola; até hoje não sei porque ele tinha essa alcunha: lembro-me que trazia sempre de presente para casa um litro de azeite. Deu, a mim e à minha irmã Raquel, 5$00 para ambos, dizendo que era para rebuçados.

Nós costumávamos, quando conseguíamos arranjar uns 10 ou 20 centavos, comprar realmente rebuçados; mas 5$00!... Isto só em sonho!... Mas o dinheirinho estava ali, na nossa mão e isso era a prova da realidade: não perdemos tempo e corremos até à loja da Sra. Maria José Borda d’Água comprar tudo em rebuçados. Voltámos para casa e o tio já tinha ido embora.

Foi um reboliço dos diabos; eu tinha uns seis anitos e a Raquel dezasseis meses mais que eu!... Quando a mãe viu aqueles dois pacotes de rebuçados nas nossas mãos, e já sem dinheiro nenhum, quase teve um desmaio!...

Vocês tiveram a coragem de fazer uma coisa dessas? O teu pai, coitado, trabalhou um dia inteiro para ganhar 10$00e vocês gastaram os 5$00 em rebuçados? Vão imediatamente devolver isso e trazer o dinheiro, e acompanhou o grito com o gesto de pegar no chinelo, para nos dar com ele no traseiro!... Corremos então à loja e, como pudemos, contámos o que se passou!... Faltava contarmos que já faltavam alguns!... Gaguejámos, mas conseguimos fazê-la entender a nossa agonia!... Ela, com aquele carinho que só as mães têm para dar, disse- -nos: Deixem lá, não tem importância, levem o dinheiro à mãe e também mais dois rebuçados cada um.

Voltámos a casa e a nossa mãe, vendo-nos com a mãozita aberta e nela os 5$00 e os olhos mostrando o medo pelo que ainda podia acontecer, estendeu-nos os braços, sentou-nos no colo e olhando-nos bem nos olhos, justificou a sua revolta dizendo-nos: Meus filhos, este dinheiro foi Deus que nos mandou porque sabe que não temos que comer e assim já compramos feijão, arroz e mais coisas: perdoem à mãe e dêem-me um beijinho!... A mãe gosta muito de vocês.

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Dois varinos durante uma cheia no Rossio.

Era na época de Verão, e é nesta época que se fazem os transportes de determinadas mercadorias, tais como palha de trigo, de arroz, o próprio cereal, etc. Fomos contratados para ir transportar palha de trigo, do Porto Alto para a muralha de Xabregas, um porto de Lisboa; o acesso a este porto por via marítima faz-se pelo rio Sorraia, cuja foz fica num ponto chamado Ponta d’Erva, e que é mais ou menos em frente aos Olivais, já bem perto de Alcochete.

Estes fretes eram normalmente bem pagos, em virtude do perigo das nortadas, frequentes nesta época do ano, que dificultavam as viagens, pondo por vezes em risco até a vida das tripulações.

Carregado o barco, e quando já nos aprontávamos para iniciarmos a viagem de regresso, aparece um homem pedindo para que lhe trouxéssemos cinquenta fardos de palha de junco com destino ao mesmo porto, oferecendo um pagamento convidativo; acontece que em virtude de tratar-se de carga chamada leve, somos forçados a fazer estivas (camadas) de fardos sobrepostos, o que dá origem a uma altura, que em caso de ventos fortes dificulta muito a navegação: foi precisamente o que aconteceu.

Aceite o frete extra, procedeu-se ao carregamento e, logo em seguida, velas ao vento, e aí vamos nós rumo ao mar. Aconteceu entretanto que o vento aumentou de velocidade, e o meu pai começou a recear sair da foz do Sorraia pois sabia muito melhor do que nós, filhos, quanto era perigosa a travessia para o Norte para um barco com uma carga daquele tipo com nortada forte.

No entanto, influenciado por nós, concordou em seguirmos.

Connosco ia também o dono dos fardos de palha de junco.

Teve então início a malfadada viagem que havia de ficar na minha memória: o vento aumentou assustadoramente, ao ponto de mesmo com a vela a menos de meio mastro, a lancha pequena pendurada à borda, e nós todos fazendo peso a estibordo para evitar que o barco adornasse, nada conseguiu evitar que alguns fardos se molhassem a bombordo, o que veio imediatamente piorar a situação, pois cada fardo passaria a pesar cerca de 70 kilos, em vez de trinta, somente sobre um lado.

Seguiram-se cerca de cinco horas de desespero, esperando a todo o momento que o barco tombasse definitivamente, e não mais se endireitasse, o que, a suceder, dificilmente deixaríamos de morrer afogados dada a violência das vagas e a distância que nos separava tanto da margem Norte como da margem Sul.

É de referir, a título de esclarecimento, que, com raras exceções, todos os barcos que se dedicavam a este serviço eram apenas impelidos por velas ou remos; motores eram para nós fruto proibido, pois o seu preço não nos deixava sequer pensar nisso.

Enquanto o meu pai, olhando o mar e o vento, nos dava instruções, nós (eu, o meu irmão Samuel e um outro tripulante) tratávamos de com baldes retirar a água que ia entrando pela borda; o dono dos fardos, que nos acompanhava, chamava pela mãe, lamentando e amaldiçoando a hora em que se meteu a bordo, chorava desesperadamente.

Finalmente chegámos a uma distância [em] que nos podíamos considerar fora de perigo, mas ainda tínhamos uma péssima surpresa pela frente.

Havia naquele tempo uns restos de cais que mais não eram do que ruínas e que tinham uma distância razoável de comprimento, mar a dentro; ansiosos por pisar terra firme, não hesitámos em passar por sobre as mesmas ruínas, visto que a altura da maré nos permitia passar sem problemas por ali; com o que não contámos entretanto, foi com o pormenor de que a vaga nos levaria a uma profundidade suficiente para que um dos velhos pilares penetrasse no fundo do barco, fazendo-lhe um rombo que nos obrigou a afundar imediatamente. Claro que não havia a essa altura perigo de morrermos, mas o resto da carga perdeu-se, e foi o bastante para o meu pai, até aí, duma coragem extraordinária, se considerasse derrotado, e não conseguiu evitar que as lágrimas de desespero lhe corressem pelas faces.

Além das memórias dessas peripécias, conservo orgulhosamente a minha cédula marítima que do naufrágio se salvou, mas com a marca da água, por ter andado a boiar.

Quanto ao dono dos fardos, encontrei-o anos mais tarde em Samora Correia e comentámos o assunto, de que ele também nunca mais se havia esquecido.

A vida a bordo nada tinha de perspetivas a longo prazo, uma vez que com o progresso já começávamos a sentir os efeitos da concorrência nos preços dos transportes, feitos pelas camionetas que, ao tempo, na década de trinta, iniciavam a utilização dos motores a óleo diesel, que era muito mais barato que a gasolina, além de que ofereciam a vantagem de os transportes serem feitos de porta a porta, assim se chamava pelo facto de carregarem na fábrica ou depósito expedidor e entregarem diretamente na fábrica destinatária, dispensando o transporte até [ao] e do porto de embarque e desembarque, respetivamente.

Em face disto, quando eu atingi os dezoito anos, embora com sacrifícios tanto físicos como monetários, o meu pai permitiu-me frequentar um curso de preparação para fatores do caminho de ferro, um dos empregos mais cobiçados na época e que, sinceramente, no começo jamais me passou pela ideia vir a conseguir, uma vez que tinha a concorrência de muitos candidatos possuidores do quinto, e até do sétimo, anos de liceus, e eu apenas o quarto ano primário.

Para avaliarem das dificuldades que encontrei, direi que no meu professor éramos vinte e quatro candidatos dos quais apenas quatro conseguimos a tão almejada colocação.

Os resultados só eram conhecidos alguns dias após, por escrito, e diretamente dos serviços centrais; demoraram quinze dias a informar-me e, quando o fizeram, foi por um telegrama ferroviário.

Eram cerca de onze horas da manhã, eu estava num cais que ainda existe na minha terra, junto do rio Tejo, descarregando areia dum barquinho que nós transportávamos do outro lado do rio até ali, e com isso ganhava três escudos por viagem que em média demorava duas horas cada. Mas a minha mãe apareceu lá no fundo da azinhaga a gritar e com um braço no ar tentava mostrar-me o telegrama que chegara de Lisboa!...

Jamais esqueci e nunca esquecerei a emoção que senti naquele momento!... Foi uma alegria tão grande, uma vontade de gritar, de pular, de comunicar a todo o mundo que eu já era um praticante de fator, um futuro fator dos caminhos de ferro, e não mais precisaria de carregar areia para ter dinheiro para o café, além de que tinha a minha “posição social” tremendamente valorizada!... Mas o tempo foi passando, os sonhos foram-se diluindo, e a realidade era bem outra!...

Em primeiro lugar, era obrigatório um estágio de seis meses de prática sem vencimentos, que por falta de exames foram adiados para mais três, findos os quais fui submetido a exame para a categoria de praticante habilitado, e que por ter sido aprovado passei a ganhar cento e oitenta escudos por mês, sem qualquer ajuda de custo por deslocações e só andava destacado de estação em estação, dando folgas, licenças, etc.

Pão e queijo, café, um pedaço de chouriço, foram muitas vezes a minha refeição!... Passou-se um ano, e fui então promovido a aspirante de fator, passando a ganhar trezentos escudos por mês e direito ao uniforme.

O serviço militar obrigatório obrigou-me a alistar-me durante dois anos sem qualquer vencimento, ou antes recebendo o “pré” de quinze escudos por quinzena!...

Enquanto estive ao serviço do Exército concorri à categoria de fator de terceira classe, categoria com que me apresentei ao serviço em 1945, então com o vencimento de quatrocentos e cinquenta escudos!...

Decorreram dois anos e, em 1947, assino um contrato com a Companhia dos Caminhos-de-ferro de Benguela para prestar serviço em Angola com a categoria de fator de segunda e o vencimento de dois mil e oitocentos angolares, cerca de dois mil e setecentos escudos.

Até aqui, nada que mereça destaque, porém a viagem, pelas peripécias que aconteceram, é digna de ser contada, pois jamais me passaria pela cabeça ser possível assistir a tamanhos absurdos.

A viagem foi de navio, mas ao contrário do que eu supunha, pois esperava um navio de passageiros, foi por um pequeno navio de carga, em que apenas havia uma cabine de quatro passageiros, que normalmente era ocupada por algum passageiro embarcado nalgum porto africano, onde navios de maior calado não podiam aportar.

No dia 14 de outubro de 1947, saímos de Lisboa com escala prevista em quase todos os portos da costa de África até ao porto do Lobito, onde chegámos quarenta e cinco dias depois!...

Doze dias depois chegámos ao porto de S. Vicente em Cabo Verde.

Ali não chovia havia quatro anos e a seca dava à ilha um aspeto desolador!... Só os brancos e muito poucos nativos tinham um aspeto saudável, de resto a doença estava bem à vista em todas as caras.

À noite fui com uns colegas dar um passeio a terra (éramos três colegas com o mesmo destino), todos solteiros, e não perdemos a oportunidade de uma farrinha; voltámos para bordo cerca das três horas da manhã, e mesmo a essa hora ainda fazia um calor a que nós do continente não estávamos habituados; quando íamos chegando à proximidade do cais começámos a ouvir uns gemidos, aproximámo-nos mais e vimos então que o barulho era provocado pela tosse e pelos lamentos de muitos nativos doentes que, encostados uns aos outros em toda a extensão da muralha deitados sobre a areia, choravam a sua desdita!... Nessa noite não consegui dormir!... O navio estava a uma distância de uns quinhentos metros, mas os gemidos pareciam-me estar ali mesmo ao meu lado; o dia nasceu e fomos informados de que teríamos como colegas de viagem setecentos pretos com destino ao porto de S. Tomé; o embarque foi o que de mais desumano se pode imaginar!...

O transporte até ao navio fazia-se por pequenas barcaças, que levavam cerca de cinquenta de cada vez, e atravessando o cais, que era de madeira, colocaram uma corda por cima da qual só passariam os que estivessem em condições físicas suficientes para serem aproveitados nos trabalhos das roças logo que chegassem ao destino, ou seja, o que eu em princípio pensava tratar-se de uma forma de socorrer aqueles infelizes não era mais nem menos do que sugar até à última gota de sangue a desgraça de que eram vítimas aqueles coitados!...

Devem ter sido “reprovados” cerca de sessenta por cento dos que se apresentavam para embarque!... Como o cais era estreito, ninguém tinha a chance de voltar para trás, pois os que a todo o custo queriam sair da ilha não cediam um palmo de terreno, o que obrigava os rejeitados a serem jogados de cima do cais para a praia donde se arrastavam como podiam o mais depressa possível para que sobre eles náo caíssem os que se seguiam.

A doença de modo geral era toda a mesma, desnutrição, que como consequência lhes provocava o que nós vulgarmente lhe chamamos de barriga d’água, e aos homens, além da barriga, provocava-lhes o enchimento dos testículos daquele líquido, de forma a parecerem duas enormes bexigas que lhes atingiam os joelhos; o contraste com a magreza das pernas dava-lhes um aspeto terrível; não havia a mínima preocupação com o facto de serem ou não da mesma família os que ficavam dos que seguiam, o que dava origem a que casais se separassem, filhos fossem abandonados, e o que muito me espantava era que tudo isto se fazia sob o olhar e as ordens das autoridades “brancas” que forçavam os próprios nativos a serem os carrascos dos seus patrícios, e quando pretendi saber porque isto se passava assim, recebi como resposta que me aconselhavam a ficar calado, pois ninguém me tinha pedido opinião, “para bom entendedor meia palavra basta” e engoli em seco.

Completado o embarque, abandonados os farrapos humanos à sua própria sorte, era já noite quando nos fizemos ao mar de novo.

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Jacinto Abreu no período em que foi fator no Lobito

Como na noite anterior não tinha pregado olho, e o dia tinha sido de arrasar os nervos nem que fosse [ml de aço, só acordei já na manhã seguinte, ao som da barulheira dos coitados que haviam passado a noite sobre o convés, encostados uns aos outros conversando certamente sobre a sua triste sina, onde muitos não tinham como entender o porquê de tudo o que estava a acontecer!...

Levantei-me e vejo o quadro que representavam os cerca de setecentos homens, mulheres e algumas crianças na mais absoluta promiscuidade onde todos se portavam como se tratasse de um imundo chiqueiro de porcos.

Enojado, viro a cara para o lado oposto, e vejo o nascer do Sol tropical que de tão belo me fez esquecer por momentos tudo o que de ruim me cercava, só sendo chamado à realidade quando a tripulação me avisou de que me afastasse pois iam proceder à “limpeza” e, ato contínuo, acestam as mangueiras com os seus potentes jatos de água e apenas gritando para os passageiros “agarrem-se se não querem ir pela borda fora”, e iam mesmo se não seguissem as instruções.

O banho era geral, lavavam-se ferros, correntes, cabos, homens, mulheres, crianças, enfim, tudo o que estava na frente!... Estas crianças já tinham que trabalhar no destino. Passado o meu primeiro impacto, vi que na realidade, o que a mim me parecia um absurdo, para a tripulação tratava-se apenas dum trabalho de rotina, que eles faziam com a maior naturalidade!... Café ou qualquer outro dejejum, para eles não havia.

Mais ou menos pelas onze horas da manhã, é anunciado o almoço, que era composto de feijão com arroz, trazido num enorme panelão que foi colocado no meio do convés, e aos empurrões foram mais ou menos organizadas filas para receberem as suas rações; chamou logo a minha atenção o facto de ver muitos dos nativos de chapéu na mão, sapatos e algum objeto que de qualquer modo pudesse servir de prato; “prato, sim senhor”... pois não era para outra coisa senão para aparar a comida, pois de contrário não comiam nada, e não foram poucos os que à falta do tal prato improvisado eram forçados a aceitar a comida numa concha que faziam com as duas mãos, e que por vezes tinham de soltar, pois ainda vinha quente de tal modo que queimava-lhes as mãos.

Foram muitos e variados os aborrecimentos que tive durante esta viagem, mas para ilustrá-los citarei apenas alguns.

Pode parecer estranho, mas, por incrível que pareça, o primeiro e mais sério foi justamente com os meus colegas; em S. Vicente, eles compraram uns cachos de bananas que, por serem muito caros, os residentes nativos não conseguiam comprá-los; custavam cerca de dez escudos e tinham mais ou menos umas trinta ou vinte e cinco cada cacho; eu estranhei realmente que tivessem querido tantas, mas só depois é que vi o porquê.

Como eles sabiam que certamente a fome obrigaria os coitados a sujeitarem-se a pagar qualquer preço, venderam-nas depois a um escudo cada, fazendo dessa forma um divertimento, pois por cada escudo recebido jogavam uma banana para o meio da turma que se aglomerava junto deles e que, ato contínuo, pulavam todos ao mesmo tempo sobre a banana o que dava origem a brigas constantes visto que, conquanto os meus colegas se divertissem, para eles tratava-se duma disputa muito séria, pois estava em jogo a sua própria sobrevivência; agrediam-se ferozmente, e por vezes ficavam bastante feridos.

Claro que sacrifiquei o bom entendimento entre nós, colegas, e entrei em discussão violenta com ambos, tentando obrigá-los a parar com o espetáculo: custou-me a perda duma amizade que nascia, mas convenci-os a desistir não sem antes ter de apelar para o comandante no sentido de proibir tal injustiça, no que fui atendido.

Mas as surpresas ainda estavam para vir, e tantas foram elas.

Logo na manhã do dia seguinte foi encontrado morto um dos coitados, vítima do seu precário estado de fraqueza.

Os tripulantes, já habituados a cenas destas, prenderam-lhe uma grelha nas costas amarrada com umas cordas, diminuíram a velocidade, puxaram o leme a um dos lados e com uma corda foram descendo o corpo até à água, soltando em seguida uma das extremidades da corda; o pormenor de puxar o leme a um lado era para evitar que o corpo fosse cortado pela hélice, o que afinal nada adiantou, pois imediatamente a seguir começaram a aparecer manchas de sangue na água provocadas pelo ataque de tubarões, que naquelas paragens há em quantidades enormes.

Esta cena foi repetida mais dezassete vezes, pois foram exatamente dezoito os mortos em circunstâncias idênticas, sendo que a partir do nono ou décimo não havia mais cordas, nem grelhas, nem afrouxamento de velocidade; simplesmente eram pegados pela cabeça e pelos pés e lançados ao mar, ou mais exatamente aos tubarões que a partir do primeiro não mais deixaram de acompanhar o navio com uma regularidade extraordinária, o que era facilitado pela pequena velocidade que o navio desenvolvia pois era apenas de oito milhas por hora, com bom tempo, pois se o vento soprava do lado contrário nem essa velocidade atingia: apenas como esclarecimento a quem não esteja muito familiarizado com estes assuntos digo que a marcha normal de um navio de passageiros oscila entre dezoito e vinte e uma milhas horárias.

Saímos de Cabo Verde no dia 23 de outubro e chegámos a S. Tomé e Príncipe no dia sete de novembro seguinte; foram, portanto, quinze longos dias de sacrifício em que tudo de ruim acontecia!... No convés faziam as suas necessidades fisiológicas, discutiam, brigavam, tinham relações sexuais, enfim, e tudo isto acompanhado dos intermináveis lamentos dos que não aguentavam tanto sofrimento e desabafavam a chorar!...

À chegada a S. Tomé, ainda nos faltava mais uma surpresa.

Já na baia morreu uma das passageiras, que por sinal estava grávida, e para que fossem dispensadas as formalidades da praxe, visto que tratando-se de morte no porto teria de ser constatado o óbito por um médico, simplificaram tudo atirando o corpo à baía, [o] que deu origem a mais um festim para os tubarões, que por se tratar de água parada, a mancha de sangue alastrou por vários metros e os esfomeados bichos davam então um verdadeiro espetáculo de terror, revolteando- -se nas águas tintas de sangue, tentando abocanhar cada um o seu bocado o mais rápido possível; e assim terminou esta etapa que na realidade foi a pior a que já assisti em toda a minha vida de mais de meio século.

Entregues os sobreviventes, foram embarcados outros quatrocentos, mas estes já em boas condições físicas, e que por terem completado o seu contrato de trabalho regressavam às suas terras de origem, que no caso era Angola; o navio tinha escala em Matadi, porto que fica a dois dias de viagem da foz do rio Zaire acima.

Era época de chuvas e o rio trazia um grande caudal que dificultava a subida; com a onda provocada pela deslocação de água, ficavam a descoberto o que eu pensava serem troncos de árvores jogados à margem e que afinal outra coisa não eram senão pachorrentos crocodilos, cobertos de lodo, que logo ficavam verdes com o movimento das águas, em quantidades impressionantes.

Um dia em Matadi, e de novo nos fizemos ao mar para chegarmos a Luanda dois dias depois.

Aqui já nós encontrámos de novo civilização!...

A cidade era já naquele tempo muito bonita, o clima embora tropical era maravilhoso, a acolhida dispensada aos que chegavam era ótima, enfim, veio realmente ajudar muito a esquecer o que de ruim se tinha passado.

A viagem continuou, e sem nada de problemas chegámos ao porto de Lobito quarenta e cinco dias depois de termos saído de Lisboa.

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Mas a partir daqui as saudades já começaram a tirar-me o sono, eu havia deixado os pais, os irmãos, e a namorada, e não era fácil suportá-las. Vida nova, e lá vou eu ter o primeiro contacto com os Caminhos de Ferro de Benguela; apresentei-me à diretoria, mandaram-me ir ao caixa que já tinha o meu recibo de pagamento pronto, e recebi quase cinco mil escudos!... Ora eu ganhava no continente 450$00 por mês, imaginem a emoção ao ver todo aquele dinheiro na minha mão!...

Era chefe do serviço do movimento o Dr. António de Almeida Lavrador (?).

Uma ótima pessoa, que a partir desse dia ficou sendo bastante meu amigo.

Depois das apresentações de praxe perguntou-me se tinha preferência por alguma estação; como na realidade eu não conhecia nenhuma, disse que estava à disposição do serviço para trabalhar onde mais falta fizesse; o resultado foi que me colocaram em Vila Luzo, mais tarde chamada cidade do Luzo.

É interessante referir um pormenor engraçado.

Fui a um bar tomar uma cerveja e, quando pergunto quanto era, apresentaram-me um livro de vales para assinar; primeiro não entendi, mas depois o funcionário explicou-me que branco não precisava de pagar logo, bastava assinar o vale e no fim do mês pagava: imaginem a minha surpresa diante duma situação destas]; ninguém me conhecia, portanto não sabiam se eu era ou não bom pagador, nem para onde eu ia, enfim, situações novas, com pessoas novas, e portanto com novos conceitos sobre pessoas, que há muito tinham sido postos de parte no continente, e só por piadas podiam ser contadas.

No dia seguinte, mala na mão, e lá vou eu para a estação para tomar o comboio para Vila Luzo; foram 1015 quilómetros rodados à velocidade máxima de 40 klms por hora, com um percurso cheio de novidades para mim.

Por exemplo, [dal estação de S. Pedro o comboio tinha de subir a serra do Lengue com uma roda dentada no meio dos carris, pois a rampa não podia ser subida com os trilhos normais em virtude da inclinação ser muito grande: como a velocidade aqui era de cerca de cinco klms horários, bandos de macacos acompanhavam o comboio e, ou porque queriam divertir-se ou porque realmente tinham raiva de nós, a verdade é que em toda a subida não pararam de atirar pedras às carruagens, só não quebrando os vidros porque os funcionários se encarregaram de levantar as persianas que eram todas de madeira e muito fortes.

Mais adiante, outro pormenor engraçado; como era época de chuvas, sempre que aparecia uma réstia de sol os trilhos ficavam cobertos de gafanhotos, numa quantidade impressionante, que procuravam o calor que o sol provocava no aço; claro que o esmagamento de milhões de gafanhotos por sua vez originava uma camada oleosa que se colava às rodas e obrigava a patinar de tal modo que o comboio era obrigado a parar. O maquinista e os ajudantes pegavam então numas raspadeiras, raspavam as rodas e uns bons metros de trilho para que o comboio pudesse tomara embalo até terem que repetir a mesma operação ou alcançasse um percurso inclinado no sentido da sua marcha e desta forma atingir uma área onde já não houvesse gafanhotos em tanta quantidade.

Finalmente cheguei ao destino: o chefe titular era um senhor Barroso, muito atencioso, mas não I tardei] a notar que o homem era cheio de complexos, talvez pela sua pouca estatura, e ainda por cima já com uns quarenta anos de África, o que queria dizer, já sem paciência nenhuma, o que o tornava facilmente irritável, especialmente contra os pretos, a quem castigava por qualquer motivo insignificante.

Numa das muitas vezes em que isso acontecia, presenciei um caso que me revoltou, motivo porque entrei em conflito com ele.

Havia realmente naquela época uma grande submissão da raça negra aos brancos, por isso mesmo, sempre que um deles tinha necessidade de se dirigir ao branco, fazia-o com uma humildade chocante, e numa das vezes tive oportunidade de presenciar quando uma nativa se dirigiu com a mesma humildade de sempre, aproximou-se um pouco da mesa do chefe Barroso e perguntou-lhe com o seu mau português se o comboio que ia para Huambo demorava muito: como resposta recebeu um “quê?” de interrogação que foi dito com a única intenção de a obrigar a aproximar-se mais dele e portanto ficar ao alcance de uma paulada que logo se seguiu, usando para isso o pau da bandeira que sempre estava ao seu alcance e que era de madeira muito pesada; a infeliz foi atingida no pescoço e logo correu a chorar e a agarrar-se à cabeça.

Instintivamente dei um grito de reprovação que o deixou surpreso e furioso ao mesmo tempo: levantou-se e pondo-se na ponta dos pés descarregou toda a revolta em ameaças, procurando-me se eu me esquecia da minha graduação comparada com a dele, e por fim gritando para que me reduzisse à minha condição de seu subordinado.

Claro que diante duma situação dessas eu não só não acatei como lhe fiz sérias ameaças de agressão física caso ele não parasse imediatamente com as ameaças: como não continuou, o assunto de momento ficou encerrado, mas só de momento, pois três semanas depois sou transferido “por conveniência de serviço” para o Lobito.

Três meses depois sou promovido a fator de 1ª classe e consultado sobre a estação que preferia para prestar serviço; escolhi Vila Luzo e, caso curioso, o chefe Barroso passou daí em diante a tratar-me com toda a atenção e claro que eu retribuía o tratamento, e fomos até amigos dado que na minha frente não voltou a tomar atitudes idênticas à anterior.

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Jacinto Abreu no período em que foi fator em Benguela

Recomeçada a vida normal, algumas peripécias engraçadas se passaram: por exemplo, havia um clube de futebol chamado o Ferrovia, onde jogavam os ferroviários, claro; sucedeu que um dia o guarda redes, que era maquinista, por se ter atrasado o seu comboio não podia estar presente ao jogo, portanto teríamos que jogar com apenas dez jogadores e a agravante de o faltoso ser justamente o guarda redes.

Como recurso deliberou o responsável pela equipa que eu deveria substituí-lo: ora eu nunca na vida tinha calçado uma botas de futebol, e nem sequer sabia dar um pontapé na bola.

Reclamei, argumentei, barafustei por todas as formas possíveis e imagináveis, mas nada demoveu o “técnico” e em instantes eu lá estava, “simples analfabeto” em futebol equipado e colocado entre os postes cuja distância um do outro me parecia uma légua; era impossível que a minha baliza não fosse muito maior do que a outra!...

Eu tremia como vara verde, não conseguia ficar parado um momento sequer, tal a agitação que sentia; não sei se de medo ou de raiva da bola, o certo é que sempre que a via ao meu alcance me atirava a ela com tal gana que mais parecia estar a salvar a minha própria vida e, caso curioso, eu devia realmente ter algum jeito para a coisa pois a verdade é que eu já não deixei mais de alinhar nos jogos seguintes e normalmente saía-me bem; não tardou a chegar ao conhecimento de algum diretor do Lobito Sport Clube, do Lobito, e em pouco tempo sou convidado a ir “treinar” nesse clube.

Ora eu na realidade tinha um medo muito grande do ridículo e tinha consciência disso, no entanto, depois de muita insistência e para que não pensassem que eu me estava a fazer caro, concordei em ir a um treino: era treinador um tal senhor Leite Velho, que me colocou no meio do campo, apesar de eu voltar a repetir que ou na baliza ou nada, uma vez que estava ali a pedido deles e com a única intenção de provar que não era má vontade, mas só na baliza (?).

Nem assim, fiquei o tempo todo praticamente apenas a assistir e a verdade é que o treino acabou e o treinador nem sequer me falou.

Acontece que o campo era municipal, por esse motivo todos os clubes ali treinavam, motivo porque logo a seguir se apresentaram os jogadores do Luzitano Sport Clube para o seu treino.

Como eu fiquei um pouco mais no campo, fui para as balizas brincar com alguns dos jogadores do Luzitano enquanto os colegas não chegassem: no fim da brincadeira, o treinador daquele clube veio saber quem eu era, o que fazia ali, e finalmente convidou-me para fazer parte do treino, o que aceitei com uma vontade danada de fazer bonito!...

Recordo com muita saudade que entre os jogadores havia um garoto que mais tarde viria ser o famoso internacional do Sport Lisboa e Benfica e que se chama José Águas: uma particularidade importante, foi a dificuldade que tive em convencer os responsáveis pelo clube de que nunca tinha assinado a ficha de jogador por clube nenhum, pelo simples motivo de que nunca antes tinha jogado futebol.

É interessante notar que o facto de eu fazer parte da equipa estando já inscrito por outro clube implicava na anulação do jogo além de outras penalidades; mas por fim assinei e logo fui escalado para jogar no próximo desafio que se efetuava sempre aos domingos: era regulamento que havia sempre dois jogos seguidos; o primeiro em segundas categorias e o segundo as primeiras ou seja os titulares; pois bem, fui tão bem sucedido que no intervalo do segundo jogo o técnico mandou-me entrar para substituir o guarda redes titular que não tinha sido feliz na sua atuação.

Estávamos a perder por uma bola a zero, sendo que o empate já daria à nossa equipa a conquista do título de campeão do ano; momentos após o reinicio do jogo a nossa equipa empata, o que daria portanto a vitória; a um minuto do fim sofremos um penalti e considerámos logo como perdido o troféu; mas a sorte estava do meu lado pois eu defendi para canto e imediatamente após a marcação do respetivo canto o juiz apitou para o final do jogo; portanto, empate e conquista do campeonato pelo meu clube.

O que aconteceu depois foi inacreditável; fui carregado em triunfo como um herói, fomos levados para um restaurante dos melhores da cidade, jantámos, bebemos, e por fim os discursos da praxe feitos pelos diretores.

Foi relâmpago o meu aparecimento como craque, mas não foi menos rápido o desaparecimento; um ano antes eu era um ilustre desconhecido, e um ano depois voltei ao ponto de partida, ou seja, fui de novo transferido para uma estação do interior, e adeus futebol.

A minha estadia em África foram cerca de quatro anos.

Quatro anos de saudade, saudade da família, dos amigos e da terra onde nasci e vivi [de I trabalho, responsabilidade, satisfações e desilusões.

Não podiam faltar, claro, momentos alegres também, mas tudo passaria se não viessem a surgir doenças, doenças tropicais, tal como o paludismo e uma biliosa, e ainda cálculos na vesícula, que me obrigou a ser operado, o que aconteceu em Abrantes, na antiga Casa de Saúde do Dr. Manuel Fernandes: segundo informações dadas por este médico, o otimismo dele levou-o a mandar retirar o dreno antes do tempo necessário para o término da extração dos resíduos, ocasionando uma peritonite que me reteve por 27 dias hospitalizado e já quando se preparava (o enfermeiro Manuel) para me rapar os pelos na região do apêndice (apendicite), eu recusei, gritei e não deixava que me rapassem, gritei, barafustei e eis senão quando a chegada duma ambulância com uma sinistrada (traumatismo craniano) os obrigou a interromper o que estavam a fazer (isto porque era mais uma ou duas horas que eu poderia estar vivo) enquanto a acidentada poderia ser salva, como de facto foi.

É indescritível o que me aconteceu a seguir: se existem milagres, e eu acredito que sim, fui salvo por um milagre e julgo isto porquê? Porque o meu desespero me forçava a fazer toda a minha força (que era muito pouca em virtude do meu estado de fraqueza) fez com que eu, sem esperar nem entender, expelisse pelo ânus toda a porcaria que tinha nos intestinos, parei de chorar, e passei a rir de alegria pois as dores que sentia, havia mais ou menos vinte dias e noites, pararam duma vez: turvou-se-me a vista e o resto consigo reter na memória até hoje passados cerca de 55 anos, mas não consigo descrevê-los, não consigo explicar: e é por isso que penso ter acontecido um milagre e os milagres não se conseguem explicar.

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Os pais e a namorada.

E certo que desde criança fui sempre levado aos domingos a uma igreja evangélica que a minha mãe frequentava e aprendi, ou antes ouvi sempre falar de Deus e seus milagres, mas era pequeno e não entendia o que era um milagre, porém tantas foram as ocasiões [em] que me vi em apuros e me salvei que, embora nunca tenha esquecido muitas coisas sobre a existência de Deus e de Cristo, nunca consegui ser um crente convicto.

Muitas foram as vezes em que me interroguei: qual será realmente o caminho certo (igreja, religião) para ser ouvido por Deus? Aprendi que Deus nos fez humanos, deixou os seus conselhos (mandamentos) e nos deixou a liberdade de decidir sobre as nossas vidas.

Durante mais de 75 anos, só nalgumas ocasiões entrei em qualquer igreja, de qualquer religião, sempre com todo o respeito e por homenagem a alguém, por casamento ou morte, que fosse das minhas relações. Simpatizar, sim, com a religião evangélica, convicções não, por não saber o caminho certo e crer que Deus existe e é um só, e tudo vê e tudo sabe; portanto eu tento ser correto na vida, e viver pedindo sempre perdão pelos meus pecados e não criticar ninguém porque frequenta esta ou aquela religião: Deus é um só, seja qual for o caminho.

Não sendo eu, portanto, seguidor convicto dalguma religião, eu pergunto muitas vezes a Deus: que fiz eu, meu Deus, para ser tão protegido por Ele?

E a vida continuou: e eu a agradecer-Lhe. Continuando as minhas recordações.

Regresso a Portugal, vindo de Angola em 1951.

Sem emprego e com 29 anos, a namorar a minha Jacinta (minha mulher depois) tentei ser readmitido nos Caminhos de Ferro (CP), animado pela informação de que o Papa havia feito um apelo à Direção para que perdoassem os demitidos por pequenos delitos e por se tratar de um ano Santo (1951) pudessem voltar ao serviço: julguei, com muita esperança, ser também favorecido: qual quê? Não. E porquê? Perguntei eu ao senhor Engenheiro do Serviço de Movimento, aonde era subordinado, e a resposta foi: Abreu, o seu pedido está aqui, é este, e não pode ser readmitido, uma vez que não há crime a perdoar. Eu respondi: Senhor engenheiro, isso equivale a dizer-me que se eu roubasse o dinheiro da caixa, como fez Fulano em Braço de Prata ou um fardo de bacalhau como um funcionário fez no Setil, ou ainda uma tarifa de meias (?) a um soldado da Ota, como fez um parente do Sr. Inspetor da fiscalização da receita (Sr. Rilano), eu entraria. E a resposta foi: Exatamente, é isso mesmo e lamento muito.

Consegui um emprego na Fundição do Rossio “FRA” como viajante vendedor, onde fiquei durante três anos, embarcando em seguida [em] 1954 para o Brasil.

E é daí em diante que vou continuar tentando escrever algumas memórias, repito, boas umas, menos boas outras e más algumas.

IN: ABREU, Jacinto – Memórias de uma vida cheia. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 8. Nº 16 (2010), p. 57-70