António dos Santos Piedade com o Rancho de S. Miguel do Rio Torto
Por Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA
Nasceu em Abrantes em 1902 e aqui residiu e faleceu sessenta e nove anos depois, no ano já distante de 1972.
Depois de exame da quarta classe, começou a aprender a lidar com o ferro numa forja, na antiga rua da Videira, perto de onde está hoje o Teatro de S. Pedro, saindo de lá para ir trabalhar na Metalúrgica Duarte Ferreira, em Tramagal. Para se deslocar utilizava apenas os seus pés e uma barca que o atravessava para o outro lado do Tejo, perto do Casal da Preta.
Cumpriu o serviço militar no Entroncamento e aí, depois, resolveu ficar empregando-se na C.P como traçador (fazia o desenho das rodas dos comboios e das engrenagens anexas), terminando a sua vida ativa nas Fundições do Rossio de Abrantes.
Com uma atividade profissional exigente (por vezes tinha de se levantar às cinco da manhã para iniciar o dia de trabalho às oito horas, como era então habitual) e depois já com família constituída parece que isso bastaria para lhe preencher a vida. Mas não! De espírito vivo e irrequieto, precisava de mais, de muito mais, para se sentir completamente realizado.
Tirava horas ao sono, para ler e escrever prosa ou poesia, aprendeu muito mais por si próprio do que nos escassos quatro anos que frequentou a escola primária. Desenvolveu os seus conhecimentos em Matemática, chegando a dar explicações e aprendeu música, tornando-se um bom tocador de flauta e guitarra.
Mas para o seu desenvolvimento intelectual e artístico, além da sua vontade e gosto pessoal, desempenhou papel importante uma figura abrantina que se cruzou no seu caminho desde a infância e que foi determinante no seu trajeto futuro. A sua mãe trabalhava em casa do dr. Solano de Abreu e este, perspicaz como era, logo reparou na inteligência e vivacidade do rapazito que brincava pelos corredores e jardins de sua casa e com quem frequentemente se cruzava. Apadrinhou-o na igreja, mas a isso não se limitou. Ajudou-o a cultivar o espírito e tornou-se no seu mentor e no modelo com que o jovem se começou a identificar. Conversava com ele, emprestava-lhe livros e assim António Piedade começou a desenvolver a sua inteligência e sensibilidade. No dia em que completou dezasseis anos, fez o seu primeiro soneto, onde já se descortinava que as sementes deitadas à terra, por Solano, estavam a cair em solo fértil e promissor. Dedicou-o “A uma Velha Árvore”:
Naquele monte além, com mansidão
Tu foste bem pequena... .hoje crescida
Ao pastor davas sombra e guarida
Nos dias de calmaria do Verão
Mas um dia apareceu um aldeão
E destruiu para sempre a tua vida!
Eternamente pois vais ser esquecida
Tirando ao pastor a fresquidão
Oh! Quantas vezes a humanidade
Destrói a sua vida sem piedade
Como te destruiu a ti à machadada
Esqueceu pois os dias de calor
Quando frondosa e sem idade
A tua sombra tão fresca era desejada.
Sem ter a sorte de ter, como o padrinho, uma situação económica desafogada que lhe permitisse o acesso à Universidade, com muito trabalho quis e conseguiu seguir-lhe, em parte, as pisadas, tornando-se, como ele, num cidadão responsável e participativo e também num incansável animador cultural.
No Cine-Teatro S. Pedro, em Abrantes.
Se consultarmos a imprensa da época, constatamos que escrevia assiduamente não só para todos os jornais que nessa época se publicavam em Abrantes, como também para outros de regiões mais distantes como é o caso do “Diário do Ribatejo” e da “Gazeta do Sul”.
Os temas que versava eram muitos e diversificados, desde a notícia à crónica, artigos de opinião, poesia, etc... Visitante assíduo de Londres, onde residia um dos filhos e para onde ia de comboio, daí não se esquecia da sua terra e continuava a enviar para os jornais locais as suas crónicas, por onde perpassava o bater do coração daquela importante capital europeia.
Com um marcado espírito de cidadania, fundou, em parceria com o doutor Moreno, a Casa do Povo de Abrantes, que teve um relevante papel social na cidade; sendo mais tarde extinta, as suas funções passaram a ser desempenhadas pela Segurança Social. Foi também membro ativo da Liga dos Amigos de Abrantes, foi “irmão” da Misericórdia e fez parte da direção do Montepio Abrantino, instituição a que dedicou este soneto, quando do seu centésimo aniversário:
Cem anos um combate com nobreza
Mantém este ancião nesta cidade
Fazendo sem revezes caridade
Com foros de altruísmo e realeza
A sua chama firme sempre acesa
Indómita à usura e à maldade
Com rasgos de beleza e de bondade
Conquistou pelo bem sua nobreza
Cumprindo com primor o seu destino
Há cem anos estancando o sofrimento
O forte Montepio do abrantino
E uma luz no nosso firmamento!
É do Mutualismo um velho hino
Que está sempre no nosso pensamento.
E quando algum melhoramento surgia na cidade ou alguma velha aspiração se concretizava, o seu coração rejubilava e isso transparecia na sua escrita. Foi o que aconteceu quando da criação da Escola Industrial e Comercial de Abrantes, para a qual escreveu a letra de um hino, de que segue a primeira estrofe:
A nossa Escola
Abençoada é na cultura
Que nos conduz!
Segunda mãe e muito amada
Do bom caminho é meiga luz.
Uma luz suave
E fascinante
Iluminando o estudante.
E depois de tudo isto, ainda lhe sobrou tempo para ser um dinâmico animador cultural. Num tempo em que a televisão e os computadores não tinham ainda tomado conta dos nossos tempos livres, as pessoas, sobretudo os jovens, gostavam mais de ser atores do que espectadores, gostavam de cantar, de dançar, de representar... Ainda não tão escravizados pelo tempo como na sociedade em que hoje vivemos, ele tinha muitos colaboradores que iam dando corpo aos projetos que concebia. Fundou e ensaiou o Rancho Folclórico de Abrantes, denominado “A Moca” e também os ranchos de S. Miguel do Rio Torto e de Chainça. Para todos eles escreveu inúmeras letras que outros musicaram e que constituíram grande parte dos seus reportórios. Em 1938, escrevia ele a letra da seguinte marcha para ser interpretada pelo rancho de Chainça:
Coro
Terra tão fresca e formosa
Tu és tão linda e airosa
Quase planura sem fim...
Ó minha terra natal
Tu és um lindo fanal (farol)
Que tenho dentro de mim.
Dos teus prados verdejantes
Corre a seiva para Abrantes
Sangue do teu coração.
Minha Chainça querida
Minha mãe estremecida
A quem rendo adoração.
Pelos campos e clareiras
Sulcam os nossos arados
E as lindas mondadeiras
Cantam aos seus namorados
Ó lindo Vale das Morenas
Com raparigas formosas
Chainça tuas pequenas
São tão lindas como as rosas
Cada fazenda tem casa
Em cada jeira um arado
Minha terra a toda a hora
Só tu és do meu agrado.
Quinta d’Arca e Gonçalinha
A Samarra e Tapadão
No centro Vale de Morenas
Que é d’aldeia o coração
Vimos cantar nesta terra
A nossa franca alegria
E afirmar lealmente
Do seu povo a fidalguia.
Rancho da Chainça
Amante do teatro, não perdia nenhuma oportunidade de assistir às poucas peças que por aqui eram representadas e, como este escasso alimento não o satisfazia, lá ia ele, de comboio, até Lisboa assistir aos espetáculos que por ali se estreavam. Quando estava em Londres, apesar da barreira da língua, assistia a tudo o que podia, aprofundando assim o gosto pelo teatro e aumentando a sua cultura geral. Não se contentando em ser apenas espectador, passou também a ensaiar e até a escrever algumas peças, como foi o caso da comédia “O General, inspirada numa outra denominada “A Laracha” que, representada com bastante êxito, fez rir muitas plateias em Abrantes e arredores.
Seguindo mais uma vez o exemplo de Solano, até na revista regional se abalançou. Em julho de 1950, a imprensa local fazia eco do êxito da revista “O Rossio banha- -se... Abrantes areja-se”, com letra de António Piedade e música de Manuel Barrai Dias, estando o seu desempenho a cargo do Grupo Cénico da União Desportiva Rossiense.
Os seus variados escritos eram assinados com o próprio nome ou com o pseudónimo SETNABRA, que, se for lido da direita para a esquerda, nos ajuda a compreender melhor a grande identificação que tinha com a sua terra.
Detentor de ideias democráticas, não chegou, infelizmente, a ver nascer a madrugada de 25 de Abril de 1974, que certamente teria vivido com grande alegria. Quando operário no Entroncamento, chegou a ser preso pela PIDE, juntamente com vinte outros companheiros, acusados de lerem jornais considerados subversivos.
No Cine-Teatro S Pedro, em Abrantes
Estiveram na prisão do Aljube de 8 a 28 de setembro de 1944, com esperança de que com o fim da guerra, que já se adivinhava, o regime de Salazar caísse, mas a verdade é que a democracia ainda iria demorar trinta longos anos a chegar. Em 1945, escrevia versos, na altura não publicáveis, onde se evidenciava já a sua bem vincada consciência de classe:
Repara ó trabalhador
Que grande é o teu valor!
Tens linhagem, tens nobreza
Tens nas mãos os teus brasões
Que valem muitos milhões
E foros de realeza.
Grupo Paraquedista (Tancos), na representação da peça “O General”.
Deixou-nos ainda cheio de vida e quando do seu dinamismo ainda havia muito a esperar. Os seus conterrâneos despediram-se dele com sentido pesar, como se pode ler no boletim da Liga dos Amigos de Abrantes, instituição onde muito trabalhou, desempenhando ali, na altura, as funções de escriturário: “Profundo pesar no coração da Liga, na sua sede e direção, em todos os seus associados e certamente também no coração da Cidade que ele tanto amou. [...]. Zelador incansável pelos interesses e desenvolvimento da Liga dos Amigos de Abrantes, de que ele foi o Maior Amigo, muito contribuiu para o seu prestígio e para o grande aumento do número de sócios, nos últimos anos.”
Sempre com um sorriso nos lábios e uma flor na lapela (também a exemplo do seu padrinho Solano) bairrista e disponível para servir os seus concidadãos, foi, no seu tempo, uma figura muito popular e marcante em Abrantes, a sua cidade, que ele tanto amava e que muito contribuiu para valorizar e dinamizar.
NOTA
Agradeço a colaboração de sua filha, Maria Teresa dos Santos Piedade Rego da Costa, que me informou dos dados biográficos e me forneceu muita da documentação que consultei.
IN: APARÍCIO, Teresa – António dos Santos Piedade – o cidadão e o animador cultural. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 11. Nº 22 (2013), p. 43-48