Por Carlos Grácio - Professor de História, membro do CEHLA

 

SOLIDÃO

Gosto muito da solidão

Da quietude das serranias

De tudo o que traz mansidão

Das paisagens mais sombrias

 

Gosto do meu cantinho sossegado

E ao ver-me só, mesmo tão só

Sei que estou bem acompanhado

De mim não tenham pena nem dó.

 

D. Piedade Anselmo

 

Este meu trabalho resulta de um desejo antigo de fazer um artigo sobre esta poeta popular de Abrantes, de quem sou amigo há vários anos e que aprendi a estimar e a admirar a sua imensa força de viver.

Na conversa tida, preparatória deste texto, Piedade Anselmo olha-me do alto dos seus noventa e seis anos (!), com um brilho no olhar que reflete o seu entusiasmo pela vida e pelo caminho percorrido ao longo de quase cem anos de vida vivida.

Maria Piedade Raposo Anselmo nasce em Abrantes em 1919, na casa onde ainda hoje habita, em pleno centro histórico da cidade florida. Frequenta a escola até à 3a classe, concluindo os estudos primários já em idade adulta, pois o mundo do trabalho esperava-a cedo. No entanto, segundo me conta, não concluiu a primária quando criança também por ter sido vítima de uma acusação injusta de um ato de vandalismo que não cometeu (quebra de um vaso com planta no recreio da escola) e de que foi acusada por uma colega, cujo dedo acusador ainda hoje recorda com mágoa e amargura. Assustada com as consequências de tal acusação, fugiu da professora e da escola para não mais voltar. Mais tarde a mãe colocou-a numa mestra, a menina Ester, mas que não levava os alunos a exame por não ser professora diplomada.

Sempre gostou muito de ler histórias fantasiadas, o que naturalmente estimulou a sua imaginação, já de si criativa.

Piedade Anselmo1

Na fotografia da esquerda, Piedade Anselmo na sua infância; na fotografia da direita, Sol Poente, da autoria de Piedade Anselmo

Depois, foi para um ateliê de costura, como era hábito as raparigas irem, e ainda antes esteve alguns anos como bordadeira, atividade de que muito gostava, segundo me confidenciou. Na costura também bordava, e mais tarde foi trabalhar para uma oficina de alfaiate, onde o seu primeiro ordenado foi de 7$00 (sete escudos) por semana, tendo comprado com esse dinheiro a tesoura de alfaiate, ferramenta indispensável para o seu labor. Trabalhou com vários alfaiates ao longo dos anos, e especializou-se, por assim dizer, em casacos de homem; a título de curiosidade, um dos alfaiates com quem trabalhou foi o sr. Alexandre Paulos. Entretanto começou a namorar o que foi depois seu marido, e continuou a trabalhar, depois de casada, na alfaiataria, coisa que não era habitual nesse tempo, em que as raparigas casadoiras deixavam os ofícios para ficarem em casa, o que foi caso único em Abrantes no que a trabalhos oficinais dizia respeito. Apenas as que exerciam trabalho no setor público (ensino, correios, tribunais, hospitais, por exemplo) continuavam após o casamento. Podemos, pois, dizer que foi, por assim dizer, uma pioneira!

Já nesse tempo gostava de ler e na casa da mestra dos bordados todas tinham o hábito da leitura, e todas as semanas alguém comprava um livro, geralmente um romance, e quem o comprava era o último a lê-lo, pois ficava com ele, e assim semanalmente havia um novo livro para partilharem. Engenhoso, não?...

Por essa altura já fazia poesia, sobretudo versos de amor que muitas vezes rasgou com vergonha que alguém os lesse. Subia para uma trapeira que havia lá em casa e de frente para o jardim Ator Taborda dizia a sua poesia para um namoradito que estava precisamente no jardim. Digam lá se não era um quadro romântico, este namoro da janela para o jardim...

Mais que palavras, namoravam por gestos e olhares, e à noite lia compulsivamente, já deitada, à luz da candeia de azeite, até que a mãe descobriu e acabou-se a leitura noturna, até que arranjou um artifício para tapar com jornais a sombra projetada pela candeia e poder ler com a luz coada até altas horas da madrugada, o que não prejudicava o seu trabalho de costureira e bordadeira.

Fez o exame da 4ª classe já casada, numa altura em que se equacionou a hipótese de ir com o marido para as colónias e o exame era obrigatório. Dado curioso é que no exame foi a única que acertou o resultado de um problema matemático e na prova de leitura apenas leu a primeira linha do texto, já que a prática da leitura era muita. Já antes tinha perdido a oportunidade de se empregar nos correios por não ter o exame da 4ª classe.

Ao longo da vida, como diz, nunca parou, e a prova é que já mais recentemente foi uma das primeiras alunas da Universidade Sénior de Abrantes (UTIA), onde ainda hoje frequenta várias disciplinas, entre as quais Informática, Histórias Tradicionais e História da Arte, para além de ser membro da Tuna, sendo, portanto, uma verdadeira tunante...!

Sempre teve na vida uma atitude positiva, otimista, solar diria eu, confidenciando-me que a disciplina que mais gostou de frequentar na UTIA foi Mitologia, lamentando não haver atualmente.

Tem um blogue na internet para divulgação da sua obra poética, intitulado Seara da Vida (belo e sugestivo título, digo eu).

Também frequentou a aula de pintura, e não esquece a importância da professora Maria Helena Milheiriço, que foi a primeira professora a lecionar português na UTIA.

O poema Solidão foi o seu primeiro trabalho publicado no Jornal de Abrantes, onde passou a ter uma coluna semanal. Entrou em diálogo com outro poeta repentista através dessa publicação, na circunstância o sr. Nortadas Pereira.

As temáticas são as mais variadas, desde a religiosa à profana, passando pela sentimental, a onomástica ou a de circunstância, como por exemplo a que dedica (e tem vários) à sua cidade: Abrantes.

Abrantes cidade mãe

Tens a alma de teus filhos

Mesmo assim não há ninguém

Que não te meta em sarilhos.

És refúgio p’ra meus ais

Minha cidade, florida

Foste sempre, és e serás

A razão da minha vida.

In Sol Poente

Piedade Anselmo2

Piedade Anselmo a intervir inserida na Tuna da UTIA

Tem dois livros publicados (Sol Poente e Ondas da Vida), para além de poesia não editada ainda.

Também é uma exímia artesã de palhaços em trapo e cara de bola de ping-pong pintada (pela D. Filomena Flores), procurados por muita gente, o que faz com que tenha sempre novas encomendas (já fez para cima de trezentos!).

À pergunta “O que é para si a vida?”, responde-me que é um lugar de descoberta, pois nela continua a encontrar pessoas e o que mais gosta é de ser alegre e conviver.

Tem uma filha, Isabel, que trabalha na indústria hoteleira, em Lisboa, e enviuvou já há alguns anos, vivendo sozinha, mas rodeada de amigos, entre os quais eu me incluo.

Bem-haja D. Piedade, pelas lições de bem viver que transmite aos outros e por esta vontade de pedir boleia à vida em cada dia que passa!

 

IN: GRÁCIO, Carlos – Piedade Anselmo uma força da vida com a poesia na alma. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 13. Nº 26 (2015), p. 19-22

Nota: Maria Piedade Raposo Anselmo faleceu a 31 de Agosto de 2017 com 98 anos.