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POR EDUARDO CAMPOS E CARLOS VIEIRA DIAS*

* Este texto de Eduardo Campos foi elaborado no final do dos anos 90 do século XX, com a finalidade de ser lido em público numa tertúlia abrantina. Alguns pormenores denunciam essa sua característica, ainda assim optou-se por publicar a versão original. Torna-se necessário que o leitor se mantenha particularmente atento a expressões como “século passado”, que se refere ao séc. XIX As imagens, fotografias e anúncios foram compilados por Carlos Vieira Dias, membro do CEHLA

É um pouco difícil determinar, exatamente, qual tenha sido a função social dos antepassados dos atuais cafés, chamados Tavolagens, Estalagens, Adegas ou Tabernas.

Os cronistas portugueses do período de fixação dos portugueses no Oriente, dizem-nos que era nas casas de bebidas que se divulgavam e discutiam as notícias da índia.

Em Portugal, pensa-se que os primeiros cafés tenham sido a Casa da Rosa e a Casa Spencer, estabelecidas em Lisboa antes de 1755, chegando mesmo a dizer-se que foi nelas que, pela primeira vez, se bebeu café.

Fonseca Benevides, que viveu entre 1835 e 1911, conta-nos que por ocasião da reconstrução de Lisboa, o Marquês de Pombal favoreceu a abertura dos cafés, para dar a Lisboa ares de importante capital europeia e ele próprio, para dar o exemplo, aparecia nesses botequins para merendar chá e torradas.

No século XVIII assiste-se, em Lisboa, a uma multiplicação de botequins, mas parece certo que a moda do café (café-bebida), não fazia concorrência ao chá, largamente divulgado.

No tempo de Bocage chegou a haver autênticas disputas entre os chamados cafés literários: o Café Nicola é por demais conhecido, como conhecidas são as atenções que sobre ele tinha o Intendente-geral da Polícia, Pina Manique - e a coisa não era para menos.

Grande parte dos cafés lisboetas desta época era foco de ideias francesas, ou seja, subversivas. E diga-se, em abono da verdade que, por exemplo, o Botequim das Parras contribuiu imenso para a Revolução Liberal de 1820.

Há (houve) cafés que estão muito ligados à História de Portugal: recordo um - o Café Tavares, ao qual esteve ligado esse grupo de intelectuais portugueses conhecidos por Vencidos da Vida.

Politicamente, no período que imediatamente antecede a Primeira República, os cafés perderam um pouco a sua característica de centro político/ /social. Isto porque nessa fase vulgarizaram-se os centros e os clubes políticos, onde as pessoas passaram a reunir-se para discutirem as mais variadas questões nacionais; por isso, e em virtude disso, é nessa altura que surge o apodo pejorativo de estratega de café, que se aplicava àquele que, arredado dos centros, continuava no café a discutir, por exemplo, os acontecimentos da 1ª Grande Guerra.

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Espaço onde funcionou o Café Abadia

Mais recentemente recordo aqui o papel desempenhado por alguns cafés ou tabernas na história recente da cultura portuguesa: ocorrem-me Vale do Rio, a Brasileira, o célebre Martinho da Arcada, aos quais andam associados os nomes de Fernando Pessoa, Augusto Ferreira Gomes, Costa Brochado, Almada Negreiros, Mário de Sá Carneiro e tantos outros. O Martinho da Arcada foi quase uma instituição nacional.

Em Abrantes há referências antigas a este tipo de casas, referências registadas pela toponímia, tais como Rua das Estalagens ou Rua das Estalagens Velhas, topónimos que datam, pelo menos, do século XVI, mas pouco ou nada sabemos sobre o seu funcionamento.

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No século passado, pelo menos em meados do século, sabemos que existiam bastantes tabernas e botequins em Abrantes, bem como igualmente sabemos que algumas delas funcionaram, em determinadas alturas, como autênticos focos de resistência contra certas medidas político-sanitárias tomadas pela Câmara Municipal. Veja-se por exemplo o sucedido em janeiro de 1860: a propósito de uma certa postura municipal, eclodiu um motim popular. Uma das medidas imediatamente tomadas pela Câmara Municipal foi mandar encerrar todas as tabernas, medida a que se opuseram firmemente os taberneiros e os clientes. Durante todo o dia (1 de janeiro de 1860) estes locais foram focos de resistência tumultuária e só à noite, a grande custo, a Câmara Municipal consegue restabelecer a ordem pública e fazer executar as suas ordens.

Já no nosso século os cafés tiveram uma designação curiosa: chamavam-se bilhares, e muitos de vós estão ainda recordados que era (e parece que ainda é) a designação do café do Sr. António Paulo, junto da Caixa Geral de Depósitos.

Um jornal local de 1900 dá-nos conta do encerramento de um “café” denominado Bilhar Abrantino (Jornal de Abrantes, n.º 24, 4.11.1900). No mesmo número desse jornal local diz-se que consta que em algumas povoações rurais, as tabernas fecham a altas horas da noite, “entretendo-se” nelas a jogar os trabalhadores locais, com grande prejuízo da bolsa e do sossego do lar.

Uma novidade que surgiu por esta época foi a cerveja a copo - chamada Imperial, e parece ter sido António Salgueiro quem inaugurou entre nós uma Cervejaria e Pastelaria - a pastelaria era fornecida pela Padaria Inglesa, de Lisboa, enquanto os refrigerantes vinham das principais fábricas do Porto (JA, 215, 3.7.1904).

Com o pitoresco da linguagem da época vou ler-vos três pequenos anúncios publicados no Jornal de Abrantes. O primeiro intitula-se O Café d‘A Brazileira (JA, 299, de 11.2.1906):

«Esteve ha dias nesta redacção o sr. Jay-me Brito, incansável propagandista do elegante e importante estabelecimento para venda de café do Barzil, que os srs. A Telles & Ca acabam de instalar no Chiado. Ao digno empregado cuja delicadeza e apresentação nos penhorou em demasia, devemos a amabilidade da oferta de uma lata do café d‘A Brazileira, para experimentarmos, o que muito sinceramente agradecemos».

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Casa de Doces "A Regional”, em primeiro plano. Ao fundo, Café Abadia

 

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Café Império                                                                                                                                                              

                                                                                     

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Café Vigia                                                

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Restaurante Gato Preto, mais tarde Café Império

 

Na quinta feira à noite, foi o sr. Brito apresentado na Sociedade de João de Deus, onde, com a sua elegante machina preparou o magnifico, saboroso e aromático café, que teve a gentileza de distribuir por todos os sócios presentes, sendo opinião geral que o café alem de muito grato ao paladar era dotado dum excelente aroma.

Em nome dos sócios presentes e que tiveram o prazer de saborear a deliciosa bebida aqui expressamos a nossa sincera gratidão.

Este acreditado café, vende-se nesta villa na Ourivesaria Lemos».

Outro anúncio, o segundo:

«ANTIGO CAFÉ BILHAR - Proprietário - Gabriel Paulo

Abriu na Rua Avelar Machado, nos baixos do Sr. José Henriques da Silva.

Estabelecimento caprichosamente montado com todas as condições de asseio para bem receber todos os estimáveis fregueses.

Sortido muito variado, em vinhos finos do Porto, licores genebras, cognacs, cervejas, gasosas, refrigerantes e conservas de todas as qualidades (JA, 347, 13.1.1907)».

Finalmente, o terceiro:

«Café Lisboa - José Paulo Fernandes participa aos seus amigos e ao publico em geral que abriu (17 de fevereiro de 1907) o seu “Café Lisboa” na sua casa na Rua Serpa pinto, onde alem dum esmerado asseio, se encontrará um variado sortido de bebidas e tabacos. O bilhar é novo e um dos mais modernos. Enfim, é o seu estabelecimento um verdadeiro “bouquet” de modernismo.

Visite-o pois (JA, 352, 17.2.1907)».

Sobre os “modernos” cafés de Abrantes dispomos de dois testemunhos, alias muito próximos um do outro: um de 1937 e outro de 1949.

São textos opinativos, discutíveis, uma vez que ambos refletem ideias pré-concebidas e sectárias.

O primeiro testemunho é do Dr. Martins de Carvalho (1937). Enumerando os principais bilhares de Abrantes, refere-se a Casa Vigia, a Abadia Abrantina, ao Chave d‘Ouro e à Cervejaria Estrela, para concluir deste modo:

«A vida da sociedade, no verdadeiro sentido da palavra, existe unicamente na Assembleia Abrantina (...) e no Club Abrantino, este último de caracter mais familiar. A Assembleia tem roda habitual noturna: conversa, leitura e jogo - como sucede com a Sociedade Dr. João de Deus.

De resto existem diversos bilhares, alguns autênticas chafaricas, como o Café Chave d‘Ouro, covil comunista já conhecido pela autoridade».

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Esta era a opinião de Martins de Carvalho. A que de seguida vou ler pertence ao capitão Artur Elias da Costa, que residiu algum tempo em Abrantes (em meados deste século):

«É uma coisa por demais. A toda a hora se vê desmesurada multidão que se aglomera (...) nos balcões dos cafés (...) ansiosos de ouvirem o que se diz e se inteirarem do que mais oculto se passa na cidade. Parecem gente embarcada, com o pensamento, sempre inquieto, a ver se descortinam, no mar da sua vida, alguma novidade capaz de esterilizar a semente do tédio que germina no fundo do coração de todos eles.

Assim se explica a prosperidade dos botequins da terra. Uma enorme clientela abanca em volta das mesas, entre um copo de cerveja e um pires de tremoços (ainda cá não chegou o requinte de um novo puxavante - as batatas fritas), ou bebendo o seu café e emborcando cálices de bagaceira, cigarrando nos dois casos com uns ares de homem moderno; e a conversar focinhos de bode, lá vais conspurcando a reputação moral duns e outros com a solércia dos boatos falsos, agravando-a por aquela absoluta falta de delicadeza e de respeito dos que fazem da alcovitice um delicioso passatempo».

 

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Anúncios de diversos cafés de Abrantes

IN: CAMPOS, Eduardo e Carlos Vieira Dias – Os Cafés de Abrantes. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 5. Nº 10 (2007), p. 32-38