vale acorII

José Vicente e Maria do Carmo, Vale de Açor 1949

POR ROSA BARRALÉ - Natural do Vale de Açor, residente em Tramagal Interessada pela cultura popular.

CASAMENTOS

Logo que o namoro se tornava sério, os jovens começavam a pensar em fazer a sua casa. Duma maneira geral, todos casavam para casa própria. Na maioria dos casos, esta era custeada mais ou menos em partes iguais, pelos pais da rapariga e do rapaz.

Só depois da casa feita, se pensava então na boda. Tudo tinha de ser planeado com tempo, porque era necessário convidar os padrinhos, que tinham por obrigação dar um bom convite aos afilhados e, por isso, tinham de ser avisados com antecedência, para reservarem o presunto e o azeite, assim como os enchidos e os cereais. A maioria dos casamentos era em janeiro, pelo Entrudo e pela Pascoa, enquanto a salgadeira estava cheia e ainda havia azeite, pão e vinho com fartura para a festa.

O mobiliário da casa dos noivos variava de acordo com as possibilidades económicas de cada um. Na maioria dos casos, não passava de duas camas de ferro, uma comoda, mesa da cozinha, cadeiras, bancos de madeira, cantareira, guarda- -louça incrustado num canto da casa de fora, arcas, masseira, tabuleiro para pôr o pão tendido antes de ir para o forno e levar as tripas do porco a lavar, panelas de ferro de três pés, frigideira de ferro, tigelas de fogo, púcaros de barro para aquecer água, cozer os feijões e fazer o café, alguidares de barro, pratos, chávenas, copos e garrafas, jogo de louça de esmalte, trempe, espeto, enxada, sacho, roçadoura, foice, tesoura da poda, forquilha, ancinho, picareta, marreta, alavanca, serrote, martelo, etc.

Quando chegava o dia da cerimónia, a noiva vestia tudo novo, o seu primeiro fato de fazenda, sapatos de calfe, lenço da moda e, sobre isto, um xaile que tanto podia ser de seda como de lã. O noivo também ia vestido com tudo novo, desde as botas-de-elástico, camisa de popelina, gravata, fato de fazenda de cor preta ou azul-escuro, chapéu de feltro preto e por cima um capote alentejano, preto, cinzento ou castanho e guarda-chuva. Tal como a roupa que se estreava nas festas do Maxial, também aqui a indumentária não era influenciada pela estação do ano.

Normalmente a noiva ia de burro, que levava a albarda forrada com um lençol branco. Na mão levava, às vezes, um ramo de laranjeira e oliveira. O noivo e os convidados iam todos a pé.

Os casamentos eram sempre ao sábado e, na sexta-feira já havia ceia para quem vinha de longe e dormia no Vale de Açor.

No dia do casamento, almoçava-se antes da partida para a igreja, refeição composta de sopa de carneiro, maranhos e verde. A cerimónia era na sede de freguesia. Com os noivos seguiam os pais, padrinhos, os irmãos, tios, primos solteiros, porque os primos direitos que já tivessem casado não eram convidados. As mães, irmãs, tias e primas ficavam a cozinhar, sob a orientação duma cozinheira responsável, a arranjar mesas, a improvisar o que fosse necessário, para que tudo estivesse em ordem, no regresso.

A chegada, eram recebidos pelas crianças, independentemente de serem ou não da família, com açafates cheios de pétalas de flores, misturadas com o forro colorido dos envelopes das cartas recebidas, cortado à tesoura em pequenos quadradinhos, que atiravam, sobretudo aos noivos.

A madrinha então dava a cada miúdo uma mão cheia de confeitos, amêndoas, beijinhos e línguas de gato, gulodices a que só nestas alturas tinham acesso.

Seguia-se lauto jantar, composto de canja, couves de carne, galinha tostada, borrego guisado e, no final, arroz-doce e bolo de casamento, que era a mesma receita das ferraduras da fogaça que ia para a festa do Maxial. Estes cortavam-se aos pedaços e colocavam-se em açafates, que passavam diante de todos os convidados, nas mãos de meninas solteiras.

Depois do jantar, os convidados iam ver a casa dos noivos, ou então faziam-no só no domingo. Esta visita era minuciosa, via-se tudo em pormenor, tanto no que respeitava a quantidade como à qualidade.

Quando, ao serão, os noivos iam para casa, os convidados, principalmente os solteiros, acompanhavam-nos e iam para a loja do jovem casal, onde faziam o “descante”, até as tantas da madrugada. O “descante” era um baile masculino, ao toque de flauta, guitarra ou acordeão, se havia algum convidado que tivesse jeito. Caso contrário, cantava-se à desgarrada e dançava-se sempre. Os noivos não participavam, mas eram impedidos de descansar.

 

No dia seguinte, domingo, os recém-casados tinham de ir à missa e continuava ainda a festa do casamento, com almoço e jantar.

As prendas dadas pelos convidados eram produtos da casa (carne de porco, enchidos, azeite, batatas, cereais, vinho, queijos), o que se compreende, porque quem casava pelo Entrudo já não matava porco, nem apanhava azeitona, nem cereais e, com estas ofertas, ficavam governados até às colheitas. As raparigas, por sua vez, ofereciam uma toalha, tigelas, chávenas ou algo semelhante para o recheio da casa, enquanto os rapazes ofereciam dinheiro para fazer face às primeiras despesas familiares.

Durante o primeiro mês, a noiva tinha de se manter por perto, porque todas as mulheres iam visitar a casa, ver o enxoval e levar uma lembrança (uma franga, feijões, azeite, batatas, carne de porco, etc.).

A recém-casada oferecia um bolo, que já estava reservado desde o dia do casamento.

Os pais dos noivos, na véspera ou antevéspera da cerimónia, ofereciam também uma pequena ferradura a cada miúdo da aldeia, pertencesse ele ou não à família, gulodice que todos adoravam.

Quando os noivos casavam para fora da terra, na véspera do casamento, iam dizer adeus a todos os vizinhos. Pediam desculpa aos que ficavam, se alguma vez os tinham ofendido, e era frequente haver lágrimas nestas despedidas, onde todas as ofensas ficavam perdoadas e se faziam os maiores votos de felicidades para o futuro. Também aqui ofereciam o tradicional bolo e recebiam de presente géneros ou dinheiro.

Se por acaso a noiva não era do Vale de Açor, quando chegava o seu enxoval, era da tradição que o quarto do noivo já estivesse montado, assim como o que ele trouxesse para o novo lar.

Os pais dos noivos também davam de presente aos padrinhos, antes da boda, um quarto de um carneiro, vinho, pão, uma travessa de arroz-doce, um bolo grande, num tabuleiro bem enfeitado com uma toalha própria, peça de relevância em qualquer enxoval.

APOIO NA DOENÇA E NA MATERNIDADE

Naquela sociedade rural, o que mais assustava as pessoas era a doença e a morte do marido ou da mulher, enquanto tinham filhos menores.

Na doença, além de se não poder trabalhar, ainda havia despesas com médicos e medicamentos. Não havia qualquer sistema de proteção na doença. Cada um tinha de arcar com todas as despesas médicas e medicamentosas. Era frequente, as famílias endividarem-se para fazerem face a estes encargos inesperados. Depois, tinham de andar longos tempos para os liquidarem. Se a doença envolvia internamento, apesar de tudo, não era tão complicado a nível económico, porque nesses casos, conseguia-se um atestado de pobreza, passado pela Câmara Municipal de Abrantes, e o custo ficava só por aquilo que se deixava de ganhar.

Mas havia hábitos que ainda hoje enternecem. Quando alguém era internado no Hospital da Misericórdia de Abrantes, era quase obrigatório cada agregado familiar fazer-lhe uma visita e levar-lhe qualquer coisa (dinheiro, conduto e pão, bananas ou bolos). Se a doença não obrigava a internamento, mas não permitia que a pessoa fosse trabalhar, também fazia parte das regras uma visita a casa e, nesse caso, levava-se-lhe mercearias, ovos, um frango, pão de trigo, bolos ou bolachas. Este hábito instituído tinha como finalidade proporcionar à família os meios necessários para poder tratar-se, principalmente se era prescrita dieta.

Quando uma mulher era mãe, também se tinha de visitar a parturiente, no primeiro més de vida do bebé e, igualmente, a visitante fazia-se acompanhar de mercearias, pão de trigo, um franguito ou coisa semelhante, de acordo com as necessidades mais prementes e as possibilidades de quem ia fazer a visita.

As mães não saíam de casa nos primeiros trinta dias após o parto, se fosse uma menina e quarenta dias, se fosse um rapaz.

A parteira era a pessoa que manifestava maiores aptidões para o desempenho da tarefa. Era necessário que fosse calma, muito asseada, cuidadosa e soubesse descontrair a parturiente e incutir-lhe confiança. Normalmente era uma mulher já madura, experiente, e era ela que escolhia quem a ajudava. Ao fim de anos, essa ajudante quase sempre ia assumir a função principal com o apoio de todos.

Durante o primeiro mês, era essa parteira curiosa que ia duas vezes por dia dar banho ao bebé, vigiava o cordão umbilical, dava conselhos às novas mães e lavava a roupa da criança.

Estas tarefas não eram remuneradas, mas a parteira tinha a honra de ser convidada para o batizado, levar a criança ao colo à igreja, ocupai1 lugar de honra à mesa do banquete e o pai e o padrinho do neófito tinham o dever de lhe oferecer uma lembrança em dinheiro ou algo de que a senhora precisasse. Relata Ermelinda Soares da Costa que seu pai dizia ter oferecido à parteira, pelo nascimento de um dos filhos, um par de sapatos.

O batizado era no Souto. À cerimónia religiosa apenas iam a criança, o pai, a parteira o padrinho, a madrinha e os avós. A mãe ficava com as avós e irmãs a fazer o jantar, que devia estar pronto quando regressavam da igreja, cansados e cheios de fome.

É justo lembrar a ti Carolina Botas, que no século XX desempenhou, com grande competência, o cargo de parteira e enfermeira durante cerca de cinquenta anos, conforme testemunho de seu filho mais novo, Francisco Maria Pires. Era natural da Aveleira, concelho de Vila de Rei e veio para o Vale de Açor para casar com Manuel Pires, de quem teve seis filhos. A aldeia inteira rendeu-se às suas qualidades, aos seus conhecimentos e aos seus conselhos. Em solteira tinha sido criada de servir em casa dum médico na Frezoeira, onde viu e aprendeu muitas coisas. Era também esta senhora que fazia os banquetes dos casamentos, tanto os doces como outros cozinhados.

APOIO À TERCEIRA IDADE

Por volta dos sessenta anos, os casais “entregavam-se aos filhos”, quer dizer que a partir daí, eram os filhos que punham e dispunham, mediante acordo prévio. Estabeleciam-se as condições em que os pais passavam os seus bens para os filhos e estes assumiam determinadas obrigações, que tomavam o nome de “sabido”.

As propriedades eram divididas pelo número de herdeiros, que tomavam posse delas em definitivo. Havia equipamentos e ferramentas que também eram divididos, mas se assim o entendessem poderiam continuar a utilizá-los em comum, como por exemplo o alambique, o pulverizador, etc. Mais tarde ou mais cedo esta partilha não funcionava, ou porque uns faziam a sua manutenção mais cuidada que os outros, ou porque queriam utilizá-los ao mesmo tempo e, como tal não era possível, com o tempo, cada filho acabava por adquirir alguns desses equipamentos básicos.

O “sabido” constava duma longa lista anual que os pais exigiam aos filhos, para poderem viver com a qualidade de vida a que estavam habituados. Esta lista variava de família para família, conforme as possibilidades de cada um. Este compromisso era sagrado e tinha de ser honrado.

Fosse qual fosse a condição familiar, a lista era encimada por um porco, cujo peso aproximado se explicitava. Seguia-se a quantidade de alqueires de azeite, milho, trigo, feijão, grão, queijos, vinho, lenha, dinheiro para as mercearias e roupas, quando os pais não dispunham de economias, ou quando as tinham dividido com os filhos no ato das partilhas. Paralelamente e, à medida que as forças iam impedindo de se manterem, iam acordando quem e quantos cântaros de água se iriam levar a casa, por dia, quem fazia a limpeza semanal, quem lavava a roupa, quem fazia a comida, até que já não sendo capazes de se arranjarem e comerem em condições, eram levados para casa dos filhos, por períodos que poderiam ir do dia, à semana ou ao mês.

Duma maneira geral, eram bem tratados e respeitados.

Nas doenças prolongadas, a família e as vizinhas ajudavam nos cuidados de higiene e também a dar as refeições. Na fase terminal e, se o idoso não deixava dormir de noite, as vizinhas ficavam à vez com o doente, para a família descansar e não estar sozinha.

FUNERAIS

Quando alguém falecia, se era homem, eram estes que o barbeavam, lhe davam banho e o vestiam. Se era mulher, eram elas que a amortalhavam.

Cada casa tinha de levar para o velório, que se fazia na sala do defunto, uma candeia e uma garrafa com azeite para a mesma, a fim de se elevar à luz divina a alma do falecido. Esta prática só se deixou de fazer em 1964, porque no velório da ti Maria Courelas, em pleno Verão, as pessoas sentiram-se mal. Curiosamente foi a primeira pessoa a ser sepultada no cemitério de Fontes. A partir daí a iluminação deixou de contar com tantas candeias.

A sede da freguesia, o Souto, ficava a duas horas de caminho e, só aí havia cemitério até à década de sessenta do século XX. O funeral era complicado, porque os caminhos não passavam de pequenos carreiros e atravessavam-se ribeiras sem pontes. Esta obrigação era um penoso sacrifício, que em vez das habituais duas horas, passava ao dobro, nos rigores do Inverno. Por isso o Vale de Açor teve de se organizar para fazer face à compra do caixão e também ao transporte.

Como os fogos não eram muitos, estabeleceu-se a obrigatoriedade de um homem por cada casa participar no funeral. Estes transportavam o caixão aos ombros e, em certos locais, era necessário o auxílio de cordas.

Se eventualmente algum homem andava a trabalhar nas ceifas, na cortiça, em Lisboa, ou em qualquer outro lado, tinha que pagar um dia de salário, dinheiro esse que era dividido por todos os que tinham perdido o dia, para fazer o funeral. Excecionalmente, poderia ser permitido à esposa de um dos ausentes ou a alguma mulher viúva ou solteira, ir buscar o caixão à cabeça e, ficava assim isento de pagar o dia.

Depois, um familiar do último falecido, ia de casa em casa, cobrar a parte que lhe cabia da despesa do caixão, porque este era pago em partes iguais por todas as famílias.

Segundo Ermelinda Soares da Costa, este sistema manteve-se até finais dos anos cinquenta, depois algumas pessoas começaram a querer urnas para os seus familiares, em vez dos modestos caixões.

Porém, a obrigatoriedade de participar no funeral continuou até mais tarde. Ainda hoje que as estradas são asfaltadas, o cemitério é nas Fontes e as funerárias asseguram o transporte do defunto, muitos naturais que trabalham e vivem noutros localidades, ainda se deslocam à terra para acompanhar o falecido até à última morada.

Durante o velório, os vizinhos tratavam dos animais e ofereciam as refeições à família enlutada, refeições essas que nunca tinham carne na sua composição.

A família do morto dava de esmola, cinco litros de azeite e cinco fatias de pão, que eram divididos por cinco pobres, que podiam ou não ser da aldeia, simbolizando desta forma as cinco chagas de Cristo.

A MATANÇA

Pelo Natal, a matança marcava a vida na aldeia. Eram dois dias de trabalho com ar de festa, normalmente uma segunda-feira, o dia da matança, e uma terça-feira, o dia da desmancha.

Todas as famílias matavam os porcos no mesmo dia e convidavam os pais, sogros e irmãos solteiros se vivessem noutras aldeias. Os homens e rapazes, de todas as famílias, começavam num extremo da aldeia a matar os porcos de cada um e iam até à última casa. Eram sempre presenteados com uma bucha de figos secos, filhós, paio dos porcos mortos no ano anterior, pão de trigo e vinho.

Seguia-se o almoço: couves, sopas de bacalhau ou cabeça de nabo com feijão. Só depois se chamuscavam os suínos. A seguir, lavavam-se, abriam-se, retiravam-se-lhes as tripas e vísceras, penduravam-se e deixavam-se a escorrer a noite inteira, depois de terem sido lavados, interior e parcimoniosamente, com o melhor vinho da adega, que depois era utilizado nas morcelas.

Entretanto as mulheres faziam o jantar (couves com carne e arroz do osso do peito com bofe). A seguir à refeição, os homens davam uma volta pelas adegas, enquanto as mulheres iam lavar as tripas com sal, laranja e vinagre, na água límpida do ribeiro, por cima do Chabouco.

Fazia sempre muito frio e, às vezes, até chovia, pelo que lavar as tripas era um trabalho pouco cobiçado. Era também uma escola para as futuras donas de casa que iam aprendendo, desde muito pequenas, como se lavavam as tripas, como se viravam e como se tirava o célebre “remendo do bucho” - glândulas gástricas com um intenso sabor amargo que depois transmitiam ao recheio se não fossem bem retiradas, mas era preciso muito cuidado para as tirarem inteiras. Era uma prova decisiva para atestar que a rapariga já podia casar, porque se ainda não soubesse tirar o “remendo do bucho” inteiro, não reunia os requisitos indispensáveis.

Como os dias são pequenos pelo Natal, depressa se fazia noite. Então ceava-se, normalmente o mesmo do almoço e, só depois as mulheres faziam as morcelas, enquanto os homens iam fazer mais uma ronda completa, pelas casas todas, a pesarem os animais. Esta rusga era acompanhada de cantigas ao desafio, ao som de gaita-de-beiços e até dançavam sozinhos o fado batido. Os pesos eram anotados e, no final, aquele que tivesse o porco de maior peso, ainda tinha de servir uma última rodada do melhor vinho, por um copo de asa. Ficava detentor do troféu do porco da bandeira, o qual não tinha qualquer representação física, mas permanecia na lembrança de todos até ao ano seguinte.

Todos gostavam de ter o porco mais pesado. Era motivo de secreta vaidade feminina, porque, discretamente, fazia da sua dona uma boa tratadora e, por conseguinte, uma excelente dona de casa. Em contrapartida os porcos de peso mais baixo não dignificavam nada as suas donas.

E a noite não terminava sem que se provassem as morcelas novas, assadas no espeto, bem regadas com vinho, pelos homens e com café, pelas mulheres.

No dia seguinte, com as carnes bem escorridas, os homens desmanchavam os porcos nas peças habituais: presuntos, pás, toucinhos, pés, cabeça, papadas, ossos da espinha (coluna vertebral) que se salgavam esfregando-se intensamente com sal grosso. Depois, colocavam-se na salgadeira, feita de madeira, bem apertados e calcados com grande quantidade de sal, de forma que nenhuma das peças pudesse tocar noutra, o que poderia comprometer a qualidade da salga. Os lombos, costelas, febras, fígado, bofe (pulmões), rins, pâncreas, banhas, eram selecionados para se fazerem chouriços, mouras, negritas, farinheiras e banha. Cada um dos enchidos ficava em temperos (sal, alho, vinho, colorau ou conserva de pimento e cominhos) dentro de alguidares de barro vidrado. Eram mexidos todos os dias, para os temperos ficarem distribuídos uniformemente e, só uma semana depois, se enchiam as tripas, que já estavam bem lavadas e conservadas. As farinheiras só se enchiam passados quinze dias, em tripas de vaca.

Os enchidos eram secos ao fumeiro. Quando se entendia que estavam em condições, atavam-se em cambalhotas (molhos com uma dezena ou duas de enchidos) e punham-se em azados de barro, com azeite, para se conservarem durante todo o ano. Outros ficavam também em cambalhotas no cimo da salgadeira. Eram os primeiros a ser comidos. As farinheiras, por vezes, também se guardavam no cimo das arcas do milho.

Cerca de um mês depois, o homem, ou este com os filhos, que assim faziam a aprendizagem, iam “mexer a carne”, isto é, desenterrá-la do sal e ver se os presuntos estavam bem curtidos, com o auxílio de um sovino de moita, que espetavam em certos sítios, até chegarem ao osso.

Cheiravam-no em seguida. Se estivesse bem salgado tinha o cheiro agradável a presunto, caso contrário, se cheirava mal, tinha de ser esquartejado para deitar fora a parte que não estava bem conservada.

Depois, a mulher já colaborava na arrumação definitiva das carnes, de forma a saber localizá-las rapidamente, quando quisesse cozinhá-las.

Embora o analfabetismo fosse quase completo até à década de vinte, do século XX, não há dúvida de que muitas contas tinham de ser feitas, para que um porco de sete a dez arrobas, que era o peso normal, pudesse constituir conduto, durante um ano, para uma casa de quatro pessoas. A partir daí lá se matavam dois porcos, mas mesmo assim, ou vendiam-se os presuntos ou trocavam-se por toucinho em Vila de Rei, Amêndoa e Vale de Vacas, na proporção de um quilo de presunto para quilo e meio de toucinho.

ALIMENTAÇÃO

vale acorII1

Boca de forno de lenha e alambique.

A alimentação era constituída, fundamentalmente, por aquilo que a natureza dava naquele momento. A base era o pão de milho, cozido semanalmente em forno próprio. O pão de trigo era para os dias festivos e casamentos. Quem tinha muito centeio misturava algumas tigelas da sua farinha na do milho e fazia um pão de mistura muito mais saboroso.

Havia épocas em que se comiam couves a todas as refeições, depois quando apareciam as batatas novas, era batatas, quando apareciam as favas e as ervilhas, eram favas e ervilhas e assim sucessivamente.

Como não se podiam conservar os frescos por muito tempo, a alimentação era, em certos períodos, monótona e cansativa, pela sua pouca diversidade. No Inverno, comiam-se as couves e os nabos com batatas e feijões, mas nem sempre as batatas velhas chegavam até às batatas novas, assim como os feijões. Na Primavera, para acompanhar os grelos de nabo e de couve-nabo, apareciam as primeiras batatas semeadas no início de janeiro, se por milagre conseguiam escapar às geadas do Inverno.

Seguiam-se depois as alfaces, as favas, as ervilhas e depois o período mais variado e mais rico, com os alhos, as cebolas, o feijão verde, os tomates, as abóboras, os pepinos, os pimentos, os melões, as melancias, etc. Mas apesar de tudo o lema era “comer para viver e não viver para comer”. Daí que não se cuidasse muito da alimentação, era necessário comer qualquer coisa, e pronto, não se caprichava como hoje para que a refeição fosse mais variada e saborosa.

Porém, se aparecia alguém de visita, aí as coisas eram diferentes.

Todos gostavam de receber bem e então caprichava-se um pouco mais.

Além dos mimos dalgumas épocas: as filhós pelo Natal e matança, o arroz-doce pelo Carnaval, Páscoa, Festa do Maxial e casamentos, bolos de ferradura pela festa do Maxial e casamentos, capilé pelas festas do Maxial, broas pelos Santos, havia outros pratos que ainda são recordados e confecionados com frequência, não se deixando de introduzir umas pequenas modernices, para os tornar mais agradáveis à vista e ao paladar. Convém lembrar alguns, tais como: batatas de cebolada, batatas fritas com alho e vinagre, batatas esborrachadas, couves de carne, couves com feijão, nabos com feijão verde, maranhos, mexuda, ovos fritos com açúcar, passas fritas, caldo de farinha de fava torrada, caldo de farinha de trigo torrada, gemada com vinho.

Na gaveta do pão quase nunca se acabavam as azeitonas e o queijo, assim como no Inverno não se acabavam as passas de figo.

JANEIRAS

Durante o mês de janeiro, podiam organizar- -se, em grupo, os homens e rapazes da aldeia para irem cantar as Janeiras a todas as portas, pedindo esmola. Também podiam ir a outras terras, assim como o casal podia ser visitado por outros homens, doutras terras, com a mesma intenção.

As dádivas eram constituídas fundamentalmente por enchidos, toucinho, azeite e dinheiro. Estes produtos eram leiloados no final das missas e com esse dinheiro fazia-se o Ofício, que era uma missa na Quaresma, cocelebrada por sete padres, pelas almas do Purgatório.

A letra que os homens cantavam era mais ou menos a que se segue:

Acordai se estais dormindo

Nesse sono tão profundo

À porta lhe estão pedindo

P’rás almas do outro mundo

As almas do outro mundo

Elas não podem cá vir

Dai esmola se puderes

Elas nos mandam pedir

Vós estais tão esquecidos

Que nem delas vos lembrais

Já tendes na outra vida

Vossos filhos, mães ou pais

Não lhes peço a riqueza

Nem tão pouco as fazendas

Só peço as migalhinhas

Que sobram das vossas mesas

Já o Sacrário está aberto

Já o Senhor lá está dentro

Nós devemos adorar

O Divino Sacramento

O Divino Sacramento

Companheiro do Senhor

Acompanhe as nossas almas

Quando deste mundo formos

Quando deste mundo formos

Sabe Deus p’ra onde iremos

Ou p’ró Céu ou Purgatório

Ou p’ró Inferno ardendo

S. Miguel pedi por nós

A Jesus nos altos céus

A esmola que vós dais

Seja por amor de Deus

A esmola que nos dais

Não julgueis que a comemos

É p’ra mandar dizer missas

Por alma de quem lá tendes

As Janeiras não se cantavam à porta das famílias de luto recente.

Enquanto funcionou o lagar havia uma bilha, onde cada pessoa deixava a porção de azeite que entendia e que se destinava a iluminar o Santíssimo. Hoje as pessoas continuam a recolher azeite ou dinheiro, que, depois, é solenemente oferecido durante a missa, com a mesma intenção.

CARNAVAL

O Carnaval era uma palavra desconhecida no Vale de Açor, porque aí o termo que se utilizava era o Entrudo. Era precedido por um período com certas liberdades, não permitidas fora dessa época, tais como: pequenas mentiras, pregar sustos, enganar as pessoas, etc.

Evidentemente que era à juventude que agradava mais toda esta brincadeira. Cozinhava- -se na terça-feira, dia de Entrudo: cabeça do porco, pé e rabo do mesmo, assim como ossos e enchidos e, o tal galo que reinava na capoeira desde o ano anterior. Comia-se às vezes arroz-doce e bebia-se café à noite.

Era dia de se comer em demasia e aquilo que sobrava, em tempos mais recuados, ficava enterrado em sal, até acabar a Quaresma, mas já havia quem comia carne aos domingos. Todas as famílias, após terem mexido a carne e confirmado que estava tudo bem salgado, incluindo os presuntos, ofereciam um “jantar de carne”, constituído por um bom pedaço de toucinho, um enchido de cada espécie, um osso ou um pé de porco, a quem, no Verão, tinha morrido o suíno, vítima de peste africana.

JEJUNS

Profundamente religiosos, cumpriam, com rigor, o calendário imposto pela Igreja. Respeitavam dias de jejum e abstinência e até as crianças eram estimuladas a fazê-lo, mesmo antes da sua idade atingir a obrigatoriedade. Os idosos também estavam dispensados desse sacrifício, assim com os doentes e parturientes, mas era frequente jejuar- -se, mesmo quando podiam deixar de o fazer.

Alguns, os que tinham maiores possibilidades monetárias, compravam a Bula e ficavam dispensados deste sacrifício. Mesmo assim, alguns ainda jejuavam.

A missa dominical era também obrigatória para todos, só podendo faltar os mais idosos e os que, por motivos de saúde, não podiam deslocar-se à igreja.

QUARESMA

Os quarenta dias que separavam o Entrudo da Páscoa eram vividos num ambiente austero, sem alegria, em recolhimento e com muitos sacrifícios. A mocidade não gostava da Quaresma, porque não lhes era permitida qualquer brincadeira, não podiam cantar senão cânticos religiosos, nada de demonstrações de alegria, tinham de jejuar três ou todos os dias da semana, exceto ao domingo, quando os seus corpos, em crescimento e cheios de trabalho pediam alimento em abundância.

Depois, o rigor do jejum foi diminuindo, até ser só obrigatório à sexta-feira.

A abstinência era total, mas aos poucos foi-se começando a comer carne aos domingos, depois à quarta, à quinta e só a sexta-feira é que se manteve até mais tarde.

Hoje já ninguém jejua, mas ainda não se come carne à sexta-feira.

As orações em grupo eram frequentes. Novenas, terços, orações em determinados dias santos, aconteciam com frequência. Como não havia igreja nem capela, havia sempre uma casa em que a dona abria as portas para todas entrarem e rezarem. O sinal era dado por um búzio que alertava os interessados. Era também com o toque de búzio que a catequista chamava as crianças para a catequese e os ranchos da azeitona assinalavam a partida matinal.

Rezar o terço em família, depois da ceia, era um hábito diário em quase todas as casas, mas na Quaresma era obrigatório.

O Domingo de Ramos, que a igreja ainda hoje consagra com grande solenidade, era o dia em que se benziam os ramos, constituídos por rama de oliveira, louro e alecrim. Após a missa, no regresso a casa, eram pendurados num prego e quando fazia trovoada queimavam-se alguns raminhos, enquanto se rezava a Santa Bárbara a seguinte oração: “S. Jerónimo se levantou, seus sapatinhos calçou e Nossa Senhora encontrou.

-Aonde vais S. Jerónimo?

-Vou espalhar as trovoadas que pelo mundo andam armadas.

- Então espalha-as lá para bem longe, onde não haja pão nem vinho, nem eira nem beira, nem flor de rosmaninho, nem vaca com seu bezerrinho, nem mulher com o seu menino, onde não se ouça cantar os galos nem repenicar os sinos”.

 

vale acorII2

Almotolias de barro, candeia de azeite e candeeiro a petróleo.

A Semana Santa era o culminar dos sacrifícios. Na terça-feira apanhavam-se couves para os animais comerem até sexta-feira, porque só se podiam apanhar de novo, depois das três horas da tarde da sexta-feira santa. Nem sequer era permitido entrar em horta que tivesse couves plantadas, porque foi o período em que Jesus Cristo se escondeu no horto. As pessoas também não podiam comer couves na quinta e sexta-feira santas, o que era uma alegria para quase todos, já que tinham de as ingerir diariamente. Comia-se, nesses dois dias, feijão com massa ou arroz e castanhas com arroz.

Muito mais antiga era a tradição das pessoas não se pentearem, já não se sabe bem se era só na quinta-feira santa, se era em mais dias também. Pretendia-se assim chamar a atenção para a manufatura das cordas com que amarraram Jesus Cristo.

Nos meados do século XX, o jejum ainda era obrigatório na quarta e na sexta-feira.

Pelas nove horas da manhã do sábado de aleluia, terminava aquela penitência de quarenta dias de tristeza, fome e sacrifícios e já se podia rir e cantar por todo o lado, assim como comer até saciar o apetite.

Como a sede da freguesia era longe, as pessoas só no domingo de Páscoa é que iam à missa e não participavam nas cerimónias da Semana Santa.

Raramente e só um grupo reduzido ia às Endoenças ao Sardoal, que eram muito afamadas. Era quase como ir a Meca, uma vez na vida e bastava.

No Domingo de Páscoa, comia-se borrego, cabra ou outro animal, assim como carne e enchidos de porco, mas nunca um galo. Normalmente uma família que tivesse borrego ou cabra para matar, vendia depois a outras pessoas a parte remanescente. Ao contrário do porco que se conservava de várias formas por um ano, não se conhecia maneira de fazer o mesmo a outras carnes, pelo que tinham de ser consumidas de imediato.

Fazia-se arroz-doce e os padrinhos davam os folares aos afilhados. Enquanto pequenos davam um folar ou confeitos e uma moeda ou uma peça de roupa e, quando começavam a trabalhar, aos rapazes não se dava nada, enquanto às raparigas ofereciam uma toalha ou tigela para o enxoval, quando podiam.

ENCOMENDAR AS ALMAS

Durante toda a Quaresma, raparigas e mulheres cantavam numa varanda alta, ao ar livre, todas as noites, depois da ceia, em círculo, viradas para o seu centro, embrulhadas em xailes por causa do frio noturno, num linguarejar que não era nem português, nem espanhol, nem latim, uma canção melancólica e com um compasso lento, no intervalo de cada um de sete padres-nossos, a que se seguia a reza duma salve-rainha.

Tal como as Janeiras, a Encomendação das Almas era um sacrifício para aliviar as almas do Purgatório e ainda pelos pecadores, por aqueles que andavam pelo alto-mar e por maus caminhos.

O cântico de que já ninguém recorda a letra, começava assim:

“Reienzemos mai lum padre-nosso, em nosso.....”

Ainda se cantaram em 1961 ou 1962.

DESOBRIGA

Desobriga era o termo que se utilizava para designar a Comunhão Anual, que tinha lugar na Quaresma, para todas aquelas pessoas, que sendo praticantes, não tinham o hábito de se confessarem várias vezes por ano, mas que cumpriam o dever de o fazer anualmente, conforme preceituava a Igreja. Na década de quarenta do século passado, ainda era assim que procediam. No dia de S. José, 19 de março, confessavam-se os rapazes, no dia 25 do mesmo mês, confessavam-se as raparigas. Só se comungava uma vez por cada confissão e só se podia fazê-lo em jejum desde a meia-noite da véspera. Após o Concílio do Vaticano II, 1962/1965, a confissão anual deixou de ser obrigatória e a desobriga deixou de vigorar. No Souto, após a comunhão, as pessoas iam à sacristia dar baixa do nome, como se de caderno eleitoral se tratasse.

Os casais tiravam um dia de trabalho e iam confessar-se à sede da freguesia, onde, além do padre da mesma, havia outros confessores que vinham ajudá-lo.

Nessa altura a comunhão só podia ser tomada em jejum completo, portanto não é difícil imaginar o que era as pessoas levantarem-se cedo, tratarem dos animais e depois fazerem duas horas a pé, confessarem-se, assistirem à missa e só depois comerem. Era um dia de fome.

SANTOS POPULARES

Só em 1950 o Vale de Açor teve um fontanário. Até aí havia uma fonte de mergulho, onde se introduzia o cântaro para encher. A água estava em contacto com o ar, os insetos e ao alcance de todos os animais, portanto sem higiene nem garantia de qualidade

A fonte nova, que foi ornamentada com um pequeno painel de azulejos de Santo António com o Menino ao colo, passou também a ter a sua festa na noite de S. João.

Todos os anos, depois do dia de trabalho, na noite de 23 para 24 de junho, é que a mocidade ia colher marcela e murta e fazia a estrutura dum arco com troncos de pinheiros novos. Revestiam-no, de murta e marcela, enfeitavam-no com papéis e fitas coloridas e queimavam o restante, no largo da fonte, numa atmosfera de alegria, perfume, fumo e algazarra. No entanto nada impedia que cada família também fizesse o seu pinheiro e o encimasse duma bonita cruz de marcela.

Em redor da fogueira, juntavam-se novos e velhos, uns para saltarem e dançarem, outros para verem e outros para guardarem as filhas de algum rapaz mais atrevido ou pretendente de quem não gostavam.

Muitos dos jovens nem se chegavam a deitar, porque dizia a tradição que a água ficava benta até ao nascer do sol. Por isso regavam-se com o crivo do regador, todos os animais domésticos, (aves e mamíferos), as flores dos jardins e punham-se ao ar roupas de vestir e da cama, enfim, praticam ente tudo o que houvesse em casa. Também se tomava banho, prática pouco frequente em tempos idos.

Ainda antes de nascer o sol, também se podia ir ralhar com as árvores que não davam fruto, infligindo-lhes alguns golpes de podoa ou roçadoura no tronco, ao mesmo tempo que, de mau modo e de voz irada, as ameaçavam de serem cortadas se não carregassem no ano seguinte. E, ainda estão vivas pessoas que ralharam ou ouviram ralhar e dizem que às vezes dava resultado.

A FESTA DO MAXIAL

No quarto domingo de agosto, tinham e ainda têm lugar no Maxial, a aldeia mais próxima, os festejos em honra de Santa Águeda, a padroeira duma pequena capelinha bem no coração do lugar.

Não havendo no Vale de Açor capela ou igreja, associavam-se os seus habitantes às festividades do Maxial. Todos os anos havia um festeiro nomeado para integrar a comissão organizadora. Esta prática estendia-se também às outras aldeias em redor, que assim angariavam produtos para fazer face às despesas do fogo, da banda de música, do padre da freguesia e de outros que vinham cocelebrar com ele, fazer o sermão e a procissão.

Os festejos duravam dois dias, domingo e segunda-feira. O domingo era o mais importante. A banda ia esperar as fogaças, que vinham das aldeias vizinhas, recolhia-as, normalmente debaixo do alpendre da capela, onde ficavam expostas até há hora da procissão. Depois integravam-se nesta e só depois é que era leiloado o seu conteúdo.

Não havendo grandes acontecimentos locais, nem se soubesse muito do que se passava no mundo, este acontecimento religioso e profano ao mesmo tempo, era motivo de entretenimento antes e depois da festa. Se alguém estreava um fato novo era pela festa do Maxial, independentemente de ser de lã ou de seda, ninguém ligava a isso. Também era a época em que as famílias se juntavam e festejavam, comendo borrego, galinha, coelho assim como presunto, paios e o que de melhor houvesse em casa, bem regado com o bom vinho do ano anterior. Este repasto tomava-se sobre mantas feitas no tear, estendidas no chão, pertinho do arraial, depois de terminada a procissão.

Mas não se pode deixar de explicar todo o ritual para que o Vale de Açor fosse bem representado nos festejos. Não havia à volta fogaça que levasse bolos tão deliciosos, cuja receita era escondida das outras aldeias, para que não lhes pudessem tirar aquela superioridade tão estimulante. O mesmo se passava com o vinho, qualidade que não havia, ali por perto, nada de semelhante. Até o próprio capilé se distinguia dos outros. Também a sua receita era segredo.

Como se disse atras, o Vale de Açor tinha um festeiro e o seu papel era coordenar e dinamizar a população da terra para brilharem na festa de Santa Águeda. Cabia às mulheres a elaboração e ornamentação da fogaça. Começavam por um peditório para saberem se havia galinha, galo ou coelho para assar, saber quem o assava, quantas garrafas de azeite e vinho se conseguiam, assim como enchidos, fruta, etc. Depois, já na semana da festa, faziam novo peditório de ovos, farinha e açúcar para os bolos e o pão da fogaça.

Aos homens cabia o peditório em dinheiro, notas que eram também postas na fogaça e era motivo de orgulho atingir-se um montante significativo. Estava quase definido que cada homem deveria contribuir mais ou menos com um dia de salário. O dinheiro era colocado bem visível entre canas rachadas que o seguravam dalguma rabanada de vento mais forte. Só depois da procissão é que os festeiros retiravam as notas das fogaças.

Os festeiros escreviam uma carta, a todas as raparigas solteiras, a pedir, em termos muito delicados, uma prenda para a quermesse. Elas ofereciam: tigelas, copos, toalhas turcas, pentes, travessas, etc.

Eram autorizadas pela organização as barracas do capilé, à volta do recinto da festa, que as raparigas cobiçavam para amealharem uns cobres com a venda do capilé durante o dia e, do café quente, pela noite fora.

Após o sol-posto, estalejavam os foguetes de lágrimas e, pela meia-noite, ardia o fogo-preso, o ponto alto dos festejos. Continuava o arraial, mas a maioria das pessoas debandava logo que os castelos deixavam de fazer barulho, num mar de fumo com cheiro a pólvora e dum ruído que deixava as pessoas ensurdecidas por algum tempo.

Na segunda-feira, os festejos começavam por uma missa, continuava o arraial e as tascas a venderem copos de vinho, muito poucas cervejas, alguns pirolitos e laranjadas.

À noite estavam os festejos terminados. Faziam- -se as contas, pagavam-se as despesas e os contratos. Entregava-se o lucro ao padre, que no domingo seguinte o iria referir durante a missa e nomeavam-se os festeiros para o ano seguinte.

OS BOLINHOS

O dia de Santos, 1 de novembro, era um dia inesquecível para a criançada da aldeia. Depois do jantar, hoje almoço, juntavam-se todas as crianças num dos extremos do Vale de Açor, felizes e vaidosas, porque normalmente estreavam uma peça de roupa nova e iam pedir os bolinhos a todas as casas, mesmo que estivessem de luto recente. Em grande algazarra e correria, gritavam a plenos pulmões: “Bolinhos, bolinhos em louvor dos seus santinhos!”

vale acorII3

Casa de princípio do século XX (Ti Narcisa e Ti Joaquim Alfaiate)

Recebiam, principalmente, tremoços e figos secos. Acontecia às vezes haver uma família que, devido a problemas da vida, tivesse feito promessa de dar coisa diferente, como por exemplo: um papo-seco, rebuçados, uma moeda ou algo semelhante, o que era considerado um luxo para a época.

Em casa quase todos tinham as broas, confecionadas com açúcar, farinha de trigo e milho, ovos, erva-doce, canela. Eram amassadas e levedadas antes de irem para o forno. Eram tendidas em redondo, de tamanhos variados, conforme a finalidade: se eram para serem comidas em casa, para oferecer a familiares e amigos, ou apenas para dar a crianças.

Não havia casa alguma onde fossem negados os bolinhos.

Paralelamente, a juventude fazia magustos e os homens convidavam-se mutuamente para irem provar a água-pé.

OS SERÕES DE INVERNO

No Verão, os dias grandes não deixavam tempo para serões. Os mais importantes eram os serões das descamisadas. Mas, no Inverno, entre vizinhos, era frequente passarem-se em conjunto. Juntavam-se duas ou mais famílias numa só casa e faziam alguns trabalhos, ao mesmo tempo que conversavam também. Os homens conversavam sobre sementeiras, animais, negócios, empregos onde poderiam ir ganhar algum dinheiro antes das sementeiras, enquanto as mulheres iam fiando ou remendando e conversavam também sobre se as galinhas punham ou não punham, se as roupas dos mais pequenos serviam ou estavam apertadas, da saúde, dos feitios das roupas, das dificuldades do dia a dia e assim sucessivamente. Os rapazes e raparigas juntavam-se num canto da cozinha e, se havia algum fraquinho especial, iam-se catrapiscando como sugeria o coração, ao mesmo tempo que elas iam fazendo renda ou bordados para o enxoval que tinha de ser feito com muita antecedência, já que era todo executado pela própria.

vale acorII4

Florinda Luísa, com 95 anos, habitante mais idosa de Vale de Açor.

Os mais pequenos, se frequentavam a escola, aproveitavam para fazer os trabalhos de casa e estudar a lição que precisavam levar na ponta da língua, no dia seguinte.

Era agradável aquele bocado de serão, onde também se contavam histórias, nem todas com final feliz. Por vezes os mais pequenos iam para a cama apavorados com os relatos dos adultos, pois naquelas histórias havia almas penadas, bruxas e lobisomens e ninguém se detinha a pensar se era ou não conveniente contar tudo aquilo na frente de crianças.

Aproveitava-se para beber um ou mais copitos de vinho que se acompanhavam com figos secos ou então provavam-se os enchidos, depois da matança.

Se havia luar, as pessoas iam, sem qualquer luz, dumas casas para as outras, mas se não havia lua levavam uma lanterna de azeite ou uma pinha acesa. Mais tarde já usavam os candeeiros a petróleo que antecederam os petromaxes.

NOTA FINAL

Muita coisa ficou ainda por dizer, mas isto pode ser o ponto de partida para outros que queiram continuar o trabalho, pesquisando noutras fontes.

As origens poderão ou não corresponder à verdade, mas já se pode afirmar que nas Memórias Paroquiais, pós-Terramoto de 1755, o Vale de Açor já é referenciado.

Este trabalho só foi possível com os testemunhos de:

Carlos dos Anjos Francisco n. 1937-05-28

Celeste do Carmo Simões n. 1937-04-01

Deolinda do Carmo Francisco n. 1940-12-18

Diamantina Alves de Moura n. 1957-12-05

Emília dos Anjos Francisco n. 1934-09-23

Ermelinda Soares da Costa n. 1945-11-23

Francelina dos Anjos Francisco n. 1940-11-17

Francisco Pires Maria n. 1931-10-04

Irene Pires Gaspar n.1958-09-23

João Francisco n. 1925-06-27

Josué de Nazaré Canhoto n. 1946-04-17

Maria de Lurdes Pires Baptista n. 1938-11-28

Maria Pires Baptista n. 1936-09-04

Maria Rosa Pires n. 1948-03-13

Maria dos Santos Alves n. 1945-11-11

Mário Rosa Santos n. 1933-11-28, todos nascidos no Vale de Açor.

E ainda de:

Luís Maria Dias n. 1933-08-04

Luísa Maria n. 1927-02-25

Maria dos Anjos n.1929-01-30

Maria José Rosa Lobato n.1933-10-20, casados com naturais do Vale de Açor.

E ainda com o apoio incondicional de Teresa Aparício.

IN: BARRALÉ, Rosa – Vale de Açor II: tradições para recordar. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 6. Nº 12 (2008), p. 84-93