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POR NUNO CAROLA - Natural de Alvega e interessado pela cultura e História locais.

Isto assim já está bom - sentenciava minha mãe enquanto atava uma fita que sobrara do Natal ao exíguo cesto de verga, onde uma gorda e anafada galinha de pescoço pelado se debatia nervosamente. O Domingo do Bom Pastor era, para as crianças, um dia único. Apresentar, ao Senhor Prior, com toda a solenidade que nisso víamos, uma oferta lá de casa, em nome de toda a família. Os cinquenta metros que distavam até à Igreja pareciam quilómetros, ao transportar tão pesada carga para os 7 anos.

O primeiro encontro era à porta da Igreja, onde uns e outros avaliavam de soslaio a importância das oferendas de cada um. Já no banco da primeira fila, esgrimiam-se argumentos sobre as vantagens de um casal de rolas sobre uma garnizé, e ajuizava-se da superfluidade de um cesto de fruta. A vontade de superar qualquer outra oferta era, só por si, embaladora. E, de repente, lá estávamos todos em pé, o coro a entoar “Bendito o que vem em nome do Senhor”, o Senhor Prior a contornar, solene, o altar, e as galinhas, patos, pombos e coelhos a agitarem-se com tamanha gritaria.

A liturgia decorria breve, antevendo já o pároco a zoológica azáfama que caracterizava aquele Domingo. O sermão era apressado por um cacarejar aqui, umas risadas ali, umas batatas a rolarem pelo chão, e todo um burburinho que se ia gerando em torno de grandes e pequenas caixas com furos, contendo sabe-se lá que espécimes melhores ou piores que os nossos.

E eis que, finalmente, chegava o ofertório. Após depositarmos o minguo óbulo que os pais nos davam propositadamente para o efeito, cada qual seguia agora para o corredor central da Matriz, formando generosa procissão. E era aqui, precisamente no momento alto da afirmação da nossa virilidade social, que, subitamente, encolhíamos até ficarmos mais pequeninos do que quando havíamos entrado. Das povoações mais rurais vinham coelhos de vários quilos, pombos que pareciam frangos, patos mudos lustrosos, gansos gordos, cabazes gigantescos que pareciam saídos de pinturas maneiristas de tão coloridos e pródigos, um casal de garnizés de uma tal matização de cores que embevecia, frascos de mel, garrafões de vinho caseiro, garrafinhas de licores, vinhos finos, champanhes, whiskies, envelopes com dinheiro, até ramos de flores caras e caixinhas de bombons. No final, e quando o pedestal do altar mais parecia uma banca de mercado, irrompem duas mocetonas solteironas, todas figuronas, a segurar uma frágil cesta de vime onde um borrego vinha ajujado nas quatro patas. E de tal maneira disposto que se lhe podia, claramente, avaliar o portentoso perfil e respetivo volume. Ao gesto apressador do venerando sacerdote, foi o cordeiro levado para a sacristia, não fosse dar-lhe para balir nos Santos. E, siderados assim, com a grandiosidade de tão poderoso trunfo, empederniam-se-nos os membros, pelo que já nem acompanhávamos a assembleia no erguer e no ajoelhar. À comunhão, nem a hóstia se desfazia como normalmente, mas era aqui que começava a galhofa.

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Antigo Pároco de Alvega (Pe. João dos Santos), entre 1906 e 1950.

Indiferentes a preces, invitatórios e hossanas, as galinhas sentiam-se desconfortáveis assim amarradas, e os coelhos sufocavam nas caixas de sapatos que lhes serviam de jaula. Com a berraria do cântico elevada a decibéis consideráveis, e um ajuntamento de pessoas mesmo ali, não tardava um coelho passear-se pela alcatifa da capela-mor, ou uma garnizé dar um voão para trás da cadeira do Senhor Padre. E lá vinha, diligente, uma zeladora mais atenta, rompendo a procissão, a apanhar o fugitivo. O destino, já se sabia, era uma das caixas dos arcazes da sacristia, onde cabia de tudo. Tínhamos de morder a mão para não rir, e baixar a cabeça para afugentar a imagem tão insólita. Mas eis que rebentávamos... volvia a boa senhora da sua tarefa, e um borracho, amorosamente amarrado com o seu par numa cestinha de doces de amêndoa, libertara o organismo, contra o qual não deveria forçar. E assim, a alcatifa vermelhinha da capela-mor apresentava, agora, um elemento perturbador na sua cor uniforme. Nesta altura, já a maior parte de nós puxava a gola da camisola para o cimo da cabeça afim de rir à vontade, sem ofender o olhar cândido dos santos que dos nichos dos altares liam as nossas mentes.  Ide em paz, e que o Senhor vos Acompanhe. - Graças a Deus! - Missa acabada, mas nem por isso missão cumprida. A criada do Senhor Prior encabeçava uma pequena hoste de voluntárias que receberia e acomodaria, sob as suas ordens, todo aquele maná, na Casa Paroquial. À porta desta extensa fila se formava, meticulosamente analisada pelo Pastor, que, do princípio ao fim, agradecia e despedia com uma bênção das mãos ossudas sobre as nossas cabeças.

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Lá dentro, galinhas, patos, coelhos e garnizés eram lançados à uma no galinheiro, enquanto os restantes mantimentos eram devidamente separados e arrumados. Na entrada, uma senhora menos capaz de esforços, e mais diminuída de vista, mas nem por isso de vontade de colocar à disposição do Pastor daquele rebanho os seus humildes préstimos, despedia os ofertantes com uma mão-cheia de rebuçados. E nós, já despidos da pele de representantes de família, retomávamos o fartar vilanagem do dia-a-dia: após receber os respetivos rebuçados, cada um de nós andava dois ou três lugares para trás e intrometia-se na fila, retomando lugar entre os que esperavam, no intuito de passar despercebido perante a inocente distribuidora de rebuçados. E lá vinham a segunda, terceira, e às vezes quarta, mão-cheia de rebuçados, que, todas juntas, constituíam o quinhão com que “mitigávamos a ofensa do borrego.”

IN: CAROLA, Nuno – O Domingo do Bom Pastor. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 7. Nº 13 (2009), p. 64-65