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Por SARA VALENTE - Aluna da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Tomar

Os moinhos de água e as azenhas1 fazem o aproveitamento da energia fornecida pelos cursos de água e já eram conhecidos nos tempos dos romanos2. A sua difusão deu-se na Gália, no tempo de Carlos Magno, estendendo- -se depois a outras regiões da Europa. Esta técnica de fazer uso da energia hidráulica era o processo mais frequente na moagem de cereais e veio a aplicar-se depois no esmagamento da azeitona.

Na maior parte dos casos a água era conduzida artificialmente ao moinho, por meio de represas, mas era indispensável que a corrente de água fosse suficientemente forte para fazer girar a roda e elevar a água.

A robustez da construção, a sua maior ou menor simplicidade, varia de uns lugares para os outros e envolve uma grande despesa na manutenção do maquinismo. A roda hidráulica em ferro, tem vantagem em relação às de madeira, menos resistentes, e, se for pintada, pode aguentar-se anos sem necessitar de reparação.

O direito de usufruir de um curso de água foi o motivo que contribuiu para que muitos destes engenhos fossem de utilização comunitária, tal como acontecia na Idade Média.

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O Lagarinho é um lagar de azeite situado numa Herdade do mesmo nome. Foi mandado construir em fins do séc. XIX pelo Sr. Joaquim Grosso, familiar diretor do atual proprietário. A Herdade situa-se na povoação de Brunheirinho, freguesia de Bemposta, no concelho de Abrantes e tem cerca de 90 hectares.

O lagar fica num terreno de oliveiras e num plano mais baixo relativamente ao “casal”, no alto do declive, onde fica a casa de habitação do dono da propriedade, e, agora, casa de campo. Já há alguns anos que está descativado porque este processo de moagem da azeitona deixou de ser rentável. Funciona como armazém para guardar cestos e alfaias agrícolas utilizadas numa outra área da propriedade destinada à produção do pimento vermelho. O lagar é de construção retangular, de um só piso e de uma só divisão ampla, mas desnivelada cerca de um metro. Tem uma área de 90m2 e na parte superior tem uma porta alta por onde entrava a azeitona. O telhado é suportado por fortes traves em madeira. No exterior do lagar, acoplada à parede norte por meio de um veio ou eixo, sobressai a grande roda em ferro, com 3 m de diâmetro que é a peça fundamental neste lagar de energia hidráulica. Entre os dois aros da roda sucedem-se as penas ou pás, em espaços regulares, sobre as quais cai a água.

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Da ribeira que ainda hoje corre na propriedade, desviava-se água, por meio de uma comporta, para um açude, a qual, depois, corria por uma levada de caleira descoberta, até à grande roda, fazendo-a girar.

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A atividade de um moinho baseia-se na força propulsora da água impelida contra as pás (penas) da roda, fazendo-a girar. Este movimento giratório é comunicado através de um veio horizontal que vai até ao interior do lagar, pondo em movimento a “cremalheira” (duas rodas dentadas ou carretos), uma maior e outra menor que, engrenando uma na outra, imprimem movimento a uma terceira ligada ao veio vertical, que fica por baixo do moinho, provocando a rotação das enormes galgas. Esta rotação pode ser interrompida, quando necessário, por uma alavanca (embraiagem).

A massa de azeitona saía por uma pequena porta da “vasa” para os chamados “carros”, que se deslocavam sobre carris comandados pela “agulha”. Nestes carros fazia-se o “enseiramento” sobrepondo as “seiras”, de esparto, sobre as quais ia cair a massa de azeitona, alternadamente, chegando a sobrepor-se entre 20 a 30 camadas.

As “seiras” tinham por vezes tendência a resvalar, pelo que o sistema sofreu uma inovação: as “seiras”, que antes eram inteiras, passaram a ter um buraco no meio para se adaptarem à agulha, no centro dos carros, onde eram colocadas. Seguidamente, os “carros”, já com a sua carga, entravam na prensa hidráulica, acionada por uma “bateria” (compressor), alimentada pela energia transportada por “correias “ligadas ao “tambor”, o qual é posto em movimento pela cremalheira. Esta bateria está munida de um manómetro indicativo da pressão atingida.

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Nesta “prensa de fuso” e após ser acionado o sistema hidráulico, as “seiras” eram comprimidas de modo a fazer a separação entre líquidos e sólidos, obtendo-se uma mistura de água e azeite, de cor negra, que corria para as “tarefas” na parte mais baixa do lagar e onde ia ser feita a “decantação”. A “decantação” é um processo demorado e consiste na separação da água e do azeite pela diferença de densidade. O bagaço, subproduto sólido que resulta da moagem da azeitona, era dado aos animais misturado com farelo.

Nas “tarefas”, o azeite, por ser menos denso, separa-se da água, ficando num nível superior, enquanto que a “água-russa” sai por uma torneira, na parte lateral e inferior da “tarefa”.

Para acelerar esta separação, sobretudo quando fazia frio, utilizava-se água muito quente. Outra peça indispensável num lagar era a “fornalha”, com a forma de uma salamandra gigante cheia de água aquecida por meio de lenha.

O azeite era depois armazenado em enormes talhas com a capacidade de muitos “alqueires” (cada alqueire de azeite são 10 litros). A água- -russa, que saía da tarefa, corria para um compartimento cavado no chão, a que o povo chamava de “ladrão”, porque depois de fechar o lagar, o lagareiro ainda aproveitava algum azeite que se sobrepunha à água.

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Para medir o azeite, existem os cântaros com uma asa em cima e outra em baixo para melhor se poder inclinar e despejar o azeite. Têm ainda a particularidade de possuir junto à boca um orifício quadrado indicativo da medida exata. Desse modo o comprador não é enganado na medição do azeite.

Temos ainda o funil, o púcaro-medida e o prato onde se colocava o púcaro de modo a não haver desperdício de azeite.

À volta da pequena mesa, sentavam-se os trabalhadores nos momentos de partilharem a “bucha”.

As talhas mais pequenas, em folha (latão), de 20,30,40 litros são usadas pelas pessoas para guardar o azeite em casa. Na aldeia, para ir à mesa, ainda há quem use a almotolia que, hoje em dia, é uma peça de artesanato.

Com o passar do tempo, os usos e costumes vão-se alterando e, por exigências comunitárias, as prensas hidráulicas muito vulgarizadas no século passado, estão agora extintas ou, na melhor das hipóteses, os lagares onde eram utilizados estes engenhos, estão agora transformados em locais de interesse turístico e museológico, normalmente associados ao chamado “Turismo Rural”. Este tipo de turismo permite o reviver de experiências do tempo dos nossos avós, tais como: “o varejar” ou “o ripar” da azeitona; o funcionamento do lagar; o fabrico do pão; a apanha da fruta; o fabrico artesanal do queijo e outras.

Tendo em vista o aspeto pedagógico e a população das nossas escolas, seria útil planear visitas guiadas a estas unidades museológicas (moinhos) para que pudessem compreender as vivências de um passado rural.

GLOSSSÁRIO DE TERMOS RELATIVOS A LAGARES HIDRÁULICOS

Bagaço - Resíduos das azeitonas depois de moídas e prensadas, isto é, após extração de boa parte do azeite e da água.

Bateria - Aparelho complexo, munido de manómetro, gerador da pressão que é transmitida à prensa.

Enseiramento - Conjunto das seiras utilizadas numa prensagem.

Galgas - As mós, em granito, do moinho.

Pás ou penas - Cada uma das asas do rodízio do moinho nas quais bate a água que o move.

Prensa - Aparelho onde se comprime a massa da azeitona moída colocada em seiras ou em capachos.

Roda hidráulica - Recebe e transforma a força viva do curso de água, transformando-a em energia.

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Seira - Capacho de couro com rebordo dobrado, onde é colocada a azeitona moída para sofrer a prensagem.

Tarefa - Depósito para recolha do azeite com água-russa e para processamento da decantação.

Tulha - Quantidade de azeitona que se coloca num local do lagar antes de entrar no moinho (o próprio local onde é colocada).

Vasa - Cubo de forma cónica onde se mói a azeitona por ação das mós.

BIBLIOGRAFIA

Dias, J.; Veiga, Oliveira e Galhano, E, “Sistemas primitivos da moagem em Portugal: Moinhos, azenhas e atafonas” ,Vol. II, CEEP (IAC), Porto, 1959.

Lello, Edgar e José, “Dicionário Lello Universal”, Vol. I e II, Lello e Irmão Editores, Porto, 1978.

Oliveira, Ernesto Veiga de, “Moinhos de água em Portugal”, Geographica 9, Lisboa, 1967.

Oliveira, Galhano e Pereira, “Tecnologia Tradicional Portuguesa - Sistemas de Moagem”, Lisboa (INIC), 1983.

Vasconcelos, Leite, “Etnografia Portuguesa”, Vol. VI, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1982.

WEBGRAFIA

www.cm-tomar.pt (Site do município - moinhos e lagares D’el Rei) www.euromills.net (Site sobre moinhos da Europa)

www.ttt.ipt.pt (Site Tomar Terra Templária sobre Lagares e Moinhos)

1 -“Geralmente, aos moinhos de água dá-se o nome de azenha ou azenha" Vasconcelos, Leite, «Etnografia Portuguesa» Vol VI

2 -“Tendo em conta a utilização corrente que os romanos fizeram dos moinhos de água, admite-se que também em Portugal a sua introdução e difusão tenha sido feita pelos romanos», «Os moinhos geralmente aparecem associados a povoações junto de vias que lhes asseguravam o fácil acesso» Oliveira, Galhano e Pereira, “Tecnologia Tradicional Portuguesa Sistemas de Moagem”, 1983

Imagem in “Aparelhos de elevar a água de Rega”, J. Dias e F Galhano

IN: VALENTE, Sara – Lagar Hidráulico do Lagarinho - Bemposta. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 8. Nº 15 (2010), p. 68-71