memorias ponte

Por Isilda Jana - Professora de História e membro do CEHLA

Numa altura em que decorrem obras na ponte entre Rossio ao Sul do Tejo e Barreiras do Tejo pensamos que é oportuno a publicação do texto que a seguir se transcreve.

Foi no decorrer das aulas de História Local, na Universidade da Terceira Idade de Abrantes (UTIA) que este texto me chegou às mãos, oferecido por uma aluna, entretanto já falecida.

É a fotocópia de um texto escrito à máquina com o título "Ponte do Tejo" Não vinha assinado, nem tinha o nome do autor. Logo na altura perguntei à senhora que o entregara essas informações em falta.

O         texto fora escrito por um seu familiar, Baltazar Santos, antigo professor primário, falecido em 1978, com 73 anos de idade. Tinha vivido em Rossio ao Sul do Tejo.

É esse texto que aqui se transcreve.

A transcrição de um documento exige sempre algumas opções, ou seja, alguns problemas a resolver, para cuja solução é necessário adotar critérios. Neste caso, teve-se na devida conta o modo como o autor fecha o seu texto, como adiante se verá: «Escrita à pressa de memória e sem olhar nem rever - é possível que haja [algum erro de escrita ou troca de letras.» Quer isto dizer, entendeu-se, que o autor pede a quem ler o texto que faça as correções que ele não fez. Foi, pois, o que fizemos, até para facilitar a leitura.

Um outro problema tem a ver com o facto de o texto a que tivemos acesso ser uma fotocópia do original, com alguns cortes na margem direita do texto. Sempre que houver dúvidas, isso é assinalado com parêntesis retos [ ]. 0 mesmo no corpo do texto.

Finalmente, o facto de ter sido escrito “de memória” faz com que a veracidade dos factos tenha de ser testada. Nalguns casos, mais precisos, as falhas da memória vão assinaladas em nota.

Os sublinhados constam no texto de origem.

E agora, o texto

PONTE DO TEJO

Entre Abrantes (Barreiras do Tejo) - margem direita e Rossio ao Sul do Tejo - margem esquerda.

Esta ponte foi construída para ligar a vila (então) de Abrantes à estação de caminho de ferro construída próximo da povoação de Rossio ao Sul do Tejo.

Esta estação, por diligências da Câmara Municipal, foi construída no local em que se encontra hoje, porquanto havia intenção de a mandar construir 300 metros para além Carvalhal. (Isto se pode verificar pela leitura da ata da sessão de 24 de setembro de 18611.)

Se fosse construída como se pretendia, a estação ficava para lá de dois cursos de água permanentes - o Tejo e o seu afluente rio Torto - e o ramal de Abrantes para [a] estação seria muito mais extenso e exigiria um muito maior aterro, sem falar nas duas pontes para o trânsito rodoviário (como hoje se diz). E tal localização não dispensava a ponte sobre o Rio Torto para [o] trânsito ferroviário.

Mas não obstante estas discussões e demoras, a estação foi construída muito antes da ponte e a 7 de novembro de 1862 foi inaugurado solenemente o troço Santarém- Abrantes da linha do Leste, e a 3 de março de 18632 o de Abrantes Badajoz, complemento da ligação Lisboa-com a rede espanhola.

Mas a ligação Abrantes-estação continuou a ser muito teórica. Pessoas e veículos desciam da vila pela calçada da Rua da Barca (ainda hoje existente) e, como hoje, escabrosa e de grande declive.

O (então chamado) “Ramal para a estação” foi alvo de grandes discussões.

Pretendia a Câmara que a vila ficasse com duas saídas: uma para ligar à estrada para a Beira Baixa (pela Ferraria, largo ainda hoje existente) e outra para o Tejo para ligar à estação, começando [na] atual Rua do Montepio e descendo entre o “Paiol” e o Cabeço ou antes Outeiro da Forca3. Foi este o traçado escolhido, ao fim de três anos de aturadas diligências. Em 9 de Abril de 1865 o arrematante do ramal (Manuel Ferreira Bairrão Ruivo) substabelece em José da Fonseca Peres a empreitada da construção do ramal.4

Para o extenso e alto aterro foram expropriados terrenos adjacentes, e dessas escavações ficaram dum e do outro lado do ramal grandes covas e barrocos.

Dum e doutro lado do ramal apertadas filas de choupos esguios e tortuosos, em breve se ergueram desde o largo da estação até à ponte (ainda não existente) filas continuadas para a margem direita no aterro curvilíneo que teve de ser construído para que a ponte não terminasse na “Quinta da Fábrica da Sola”, do Dr. Zeferino de Serpa Pacheco, (hoje Quinta de S. João). O primitivo traçado era em linha reta e a ponte tinha mais um pilar. Feita essa alteração ao projeto, a ponte terminou longe do natural encontro na encosta da colina da margem direita.

Este encontro (cabeça da ponte, que os francelhos chamam “testa da ponte”) modificou o regime da corrente do rio, estabeleceu ali um remanso cuja fatal consequência foi um cada vez mais vasto areal (antes inexistente) e a erosão da margem esquerda. As pessoas de mais de 50 anos ainda conheceram o Tejo sem areal na margem direita e um grande areal na outra margem continuação do aluvião da ma[r]gem esquerda formada pelos afluentes dessa margem - aluvião milenário onde hoje se eleva a povoação de Rossio ao Sul do Tejo e os lugarejos desde o Rio Torto até ao Rio de Coalhos e as terras de vinha e pinhal.

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        A 2 de Março de 1868 adjudicou-se a construção da ponte à empresa Clark & C.a .5

Foi encarregado das obras o francês Dominique Dupin, hábil e adestrado profissional, sem embargo de ser incorrigível alcoólico, que casou, em Barreiras do Tejo, com Jacinta da Silva Cordeiro de quem teve duas filhas, uma das quais mandou construir o belo prédio junto da “Portagem”, projeto do arquiteto Ventura Terra6.

A construção [da ponte] foi dada a uma Parceria de que fazia parte a Viscondessa do Tramagal (Casa Bancária) e em pagamento recebeu a exploração da ponte por 99 anos, com taxas de portagem, (hoje parecem ridículas) de 5 reis (meio centavo) por pessoa, e as de animais e veículos, com a proporcionalidade que é de supor. Lembremo-nos [de] que nesses tempos um mestre de carpinteiros ganhava 650 reis (0$65) por dia, e 1 alqueire de trigo a mesma quantia...

Mas, naqueles tempos inocentes e ignorantes da Técnica e das suas invenções, pessoa alguma pensou que novos veículos seriam inventados e... nada se previu no contrato sobre as correspondentes taxas.

Vieram os automóveis, vieram os camiões, antes destes vieram as bicicletas, depois as motos, e - porque a tabela não os mencionava - não lhes exigiam taxas, nem se cuidou de ajustar as velhas tabelas aos novos tempos. Mas passavam os novos veículos, utilizavam a ponte que fora construída com a promessa de ser paga pelo seu rendimento.

Se não pagavam porque a tabela não previra o seu surgimento no trânsito, não deviam transitar pela ponte pelo mesmo motivo de as tabelas os não referirem.

Mas além do Progresso surgiu à Parceria concessionária o maior inimigo: o agravamento da vida, isto é o aumento do custo de tudo o que se pagava.

Não foram modificadas as taxas correspondentemente. Hoje diríamos: Não foram atualizadas. A concessão era um monopólio, tinha de ser cumprido, com lucro ou prejuízo. Ainda os juristas não tinham decidido que serviços públicos não podem depender de contractos. Os direitos dos contribuintes e utentes não podem ser desprezados.

Mas - paradoxalmente - foram alterados os contratos de concessão de fósforo, de tabaco, dos caminhos de ferro...

A Parceria da Ponte, defendia-se do déficit, da fatalidade da falência, nada despendendo na reparação da ponte.

Ora esta obra, por ser metálica, embora, não estava sujeita a fraca erosão. Muito pelo contrário. A superfície de rodagem era de... madeira. A estrutura era metálica, o pavimento era de grossas pranchas longitudinais e sobre estas pranchas menos espessas transversais; as primeiras fixadas por fortes parafusos e as segundas por grandes pregos. E tudo isto exposto à ação do calor, do frio, da chuva, da geada, das dejeções dos animais, do atrito das ferraduras, das ferragens das rodas, às oscilações aos choques, à desintegração... Isto na faixa de rodagem, que, sendo dupla, não abria logo buraco. Mas nos passeios, formados por pedaços de velhas pranchas apoiadas só nos extremos? Quando a madeira estalava, não havia nenhum obstáculo material até às águas do rio, dezenas de metros abaixo. Porque os passeios eram exteriores à ponte.

Passava um automóvel em grande velocidade (e em breve até mesmo em pequena) e as pranchas saltavam e depois recaiam no seu lugar. Por vezes, por mais soltas eram levadas pelos veículos, sem o condutor de tal se aperceber... e expunha-se a ser vítima de desastre prendendo-se a outro carro em sentido oposto.

No fim de anos, veio uma nova tabela: aumento das taxas antigas e incluindo novos veículos, já existentes e os prováveis. Era já alguma coisa, mas não o bastante. As novas taxas não eram equitativas.

Um terceiro inimigo surgiu à Concessionária, ou, antes, a Concessionária verificou a existência de um inimigo de sempre: a cobragem. Nova forma de fiscalização, mais empregados... mas sem êxito. Depois a vida mais e mais se agravou e perspetiva do déficit surgiu. Resolução: despender o menos possível com as reparações.

Passa um dia pela ponte o Ministro Duarte Pacheco e vê o mau estado da pintura. Uma determinação enérgica: pintar a ponte inteiramente sob cominação de se dar cumprimento ao contrato: rescisão.

O Gerente da Parceria viu, ou alguém por ele: a pintura da ponte custa x; a concessão dura n anos; o rendimento anual é y; n x y é menor que x. “Não se pinta a ponte!”

Duarte Pacheco rescinde a concessão, mas a cobrança continua por conta do Estado. O público não recebe muito bem a decisão: tal como na fábula do burro, dono e salteadores, que ganhava o público em mudar de concessionário? Continuava a pagar.

Requisita o Ministro ao Secretariado do Desemprego quatro empregados para estar sempre um de serviço; a cobrança rende menos do que rendia à Parceria; manda cantoneiros de estradas fiscalizar e fiscais da cobrança: recebe-se mais, mas... a quantia mais não chega a ser igual à despesa. Suprime a cobrança e declara a passagem livre.

Os jornais entoam hossanas ao Ministro...

O Ministro manda os funcionários a comparecer perante o tribunal: condenados pelo crime de peculato, os infiéis cobradores andam pelas portas com uma subscrição para angariarem a importância que têm de pagar.

O publico paga.

E aqui se acaba a história duma ponte e da sua errada colocação e localização porquanto devia ser situada entre as colinas das duas margens mais próximas: Outeiro da Forca (marg. dir.) e Cabeço do Caneiro (marg. esq.): ficava o acesso à ponte sempre livre d[e] enchentes do Tejo ou do Rio Torto, o seu comprimento era menor, não prejudicava a navegação pois era mais alta e ligava o Norte do Tejo com a planura do Sul num percurso nunca inundável.

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Ramal de acesso a estação, no Rossio ao Sul do Tejo

Ao falar das áleas de choupos do Ramal para a Estação não se referiu o valor estético. Os choupos desapareceram (malefício fatal do urbanismo!). Mas ainda hoje se pode rever, isto é tornar a ver sem ser subjetivamente pelas recordações e narrativas: há fotografias em postais e há fotografia da tela pintada pelo Dr. José Mota, para a antiga “Abadia”.

Nesse tempo a estrada da Estação tinha só duas pequenas casas. E não tinha iluminação alguma.

Era um lugar interdito a partir do pôr do Sol. Aliás o Rossio terminava na [Fábrica] Bucknal (onde hoje é o Café Pato Bravo).

Com estes apontamentos e um pouco de imaginação e saber escrever podem redigir uma pequena monografia da Ponte, pois creio que é isso que se pretende.

Escrita à pressa de memória e sem olhar nem rever - é possível que haja algum erro de escrita ou troca de letras.

IN: JANA, Isilda – Abrantes Memórias Sobre Uma Ponte. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 13. Nº 25 (2015), p. 25-28