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Fotografia dos anos 30, do século XX, da Praça Raimundo Soares Mendes, onde se localizava o Externato. Cedida por Carlos Vieira Dias

Memória do Externato D. Francisco de Almeida

Por Manuel Soares Traquina - Bancário aposentado, que tem como principais hobbies a pintura, a leitura e a escrita.

Quem hoje subir a Praça Raimundo Soares, ao chegar ao topo nascente, há-de observar à sua direita, antes de entrar na rua Manuel Constâncio, com o número 15 de polícia, um edifício de três pisos a que nada confere especial atenção. Se for jovem segue indiferente; se tiver uma idade com história, e, se cruzou a porta e subiu as escadas em anos remotos e sucessivos, para e, eventualmente, solta um suspiro de saudade por ver agonizar o sítio onde alimentou sonhos adolescentes e começou a construir o futuro. E há-de lamentar que a memória da sua escola tenha sido varrida das referências históricas, quase não existindo notícia da sua existência a não ser nas lembranças pessoais. E como estas são voláteis e perecíveis, diluem-se irrecuperavelmente, com o correr do tempo no esquecimento. Daí que esta evocação seja muito circunscrita e redutora.

O antigo Externato D. Francisco de Almeida - é dele que me proponho a elaboração desta nota biográfica - perdeu há muito a aura e dignidade que os que o frequentaram lhe conferiam e de que é merecedor. Parcialmente emparedado, adivinham-se-lhe as mazelas das entranhas; parece estar inevitavelmente condenado ao camartelo.

Sou dos que lamentam este ostracismo. Entrei na porta encimada pelo número 15 num certo dia de outubro da década de cinquenta do século passado, vindo de um interior fechado, receoso, ansioso e expectante de uma novidade que desconhecia. Fi-lo durante cinco anos.

O Externato D. Francisco de Almeida terá nascido em 1907 quando um certo Dr. António Maria Dias Milheiriço obteve da Câmara de Abrantes um subsídio e alvará para a instalação de um estabelecimento de ensino secundário na Cidade. Dezasseis anos depois, toma o nome de Curso de Lecionação de Abrantes e em 1928 passa a Colégio Liceu, com uma frequência de 80 alunos.

É em 1933 que, já batizado Colégio de Abrantes, se fixa na Praça Raimundo Soares, onde permanece até à extinção, em outubro de 1955. Não sei quando adquiriu o nome definitivo; terá sido logo depois.

A exiguidade de fontes autoriza-me duas especulações: a circunstância de o apelido Milheiriço ser comum ao primeiro e último Diretor leva-me a supor que o Externato se manteve sempre na mesma e única Família. Outra suposição, que não pude confirmar, é a de que houve tempo em que foi frequentado também por meninas. Provavelmente antes de 1933, data da instalação do Colégio de Fátima.

É esse o edifício anónimo, agora ninho de ratos e abrigo de pombos, que nem pelo facto de ter sido o primeiro estabelecimento de ensino secundário para rapazes em Abrantes, merece, sequer, uma placa memorialista.

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Entrada e edifício do antigo Externato, na atualidade.

São, portanto, enquanto as houver, as lembranças pessoais, que não necessitam nem de anais, nem de placas, nem de monografias, que substituem os inexistentes registos documentais. De alunos, porque as dos professores perderam-se definitivamente.

Destes retenho os que ajudaram a formar- -me: o matemático capitão Costa, austero e exigente, o capitão Elias da Costa que nos fazia gostar de História, o diretor, Dr. Alberto Fontes que por ser médico, ministrava ciências naturais, o Dr. Isidro Sequeira Estrela, rigoroso nas aulas de História, o Dr. Mário Bonança, o ten. coronel Milheiriço, o cap. Júlio Serras Pereira, o coronel Costa Pina... Nomes que Abrantes esqueceu, mas que perduram na memória de cada um dos seus alunos.

O padre Nuno que antecedeu o padre Freitas ministrava as aulas de Moral e Canto Coral. Das suas lições guardo uma perplexidade. Muito suavemente, como na altura era aconselhável, abordava uma realidade hoje curricular, mas então tabu: a educação sexual. Talvez por isso não aqueceu o lugar. Nem todas as memórias são boas; um sargento, cujo nome esqueci, que dava Ginástica no pátio interior do Colégio, não se coibia de usar a bota militar como instrumento corretor de rebeldia e estímulo de cultura física.

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As “atividades extracurriculares” dos alunos não se ficavam pelas disputadíssimas partidas de futebol no Outeiro de São Pedro, onde os caloiros desempenhavam um papel fundamental: quando a bola pulava as ameias do forte e se despenhava encosta abaixo, a caminho do Tejo cabia-lhes o encargo, naturalmente voluntário, de a recuperar, às vezes muito perto do Pé de Cão, e repô-la em jogo.

As gazetas, raras, de um professor eram também pretexto para uma peregrinação ao Jardim Taborda. Não era nem a veneração pelas flores, nem a devoção pelo teatro, que nos faziam subir a rua José Estevam. Eram outras paixões: batas pretas, meias brancas, cintos vermelhos, cabelos esvoaçantes, olhos de feitiço, a perdição adolescente dos quinze anos que se consumia à vista da saída das aulas no Colégio Feminino Nossa Senhora de Fátima. A História do Externato D. Francisco de Almeida é indissociável dessa miragem cor- -de-rosa; muitos dos olhares trocados entre os aprendizes de sedutores do Francisco de Almeida e as protegidas de Santa Doroteia acabaram em juras de amor eterno em altares de muitas igrejas...

O Colégio celebrava datas que o espírito nacionalista desse tempo estimulava. O discurso que ao escriba destas linhas, emoldurado pela camisa verde e calções castanhos, hoje um “uniforme” de muito mau conceito, era cometido, no dia 1 de dezembro, na igreja de Santa Maria do Castelo. O texto, lido a tremer, abordava o patriotismo, os heróis da Restauração, a nacionalidade e suponho, as virtudes da “situação”. Foram, durante alguns anos, os meus quinze minutos de fama...

Hoje, empreendedorismo é um conceito vulgarizado. Está na moda. Há lembranças que reportam a sua origem ao Externato D. Francisco de Almeida.

Um dia o estimável diretor, Doutor Alberto Fontes fez crer ao escriba deste texto que tinha jeito para o desenho. Era o tempo das histórias aos quadradinhos, do “Mundo de Aventuras” e do “Cavaleiro Andante”. Uma coisa puxou a outra e deu em pequenos livros, histórias pueris de cowboys e piratas, toscamente desenhadas, que deixava ler aos colegas, a troco de dois tostões... Não seria empreendedorismo porque a ideia ainda não tinha sido inventada, mas elevava o ego, tanto mais que o meu “negócio” não tinha concorrência.

O meu monopólio durou pouco tempo. Subitamente a minha criatividade viu-se confrontada com outra mais agressiva e demolidora.

Era também tempo de distrações muito prosaicas. Como não havia televisão, nem internet, nem Playstation, como alternativa criávamos bichos da seda. Um dia, por essa altura, o futuro ilustre neurocirurgião Armando de Matos Ventura, apareceu no Colégio com uma estirpe única dessas lagartas: todas listadas, de várias cores. Um espanto! “O resultado de experiências, cruzamentos, manipulações genéticas” explicou, como que a prever o futuro. Vendeu bichos, vendeu casulos que se fartou e estragou-me o negócio da leitura a dois tostões... O tempo desfez a marosca: os bichos começaram a perder as cores do guache com que tinham sido pintados pacientemente pelo precursor do empreendedorismo...

Esta memória resulta de uma casualidade. Confirmou-me desde logo a forma como tratamos o nosso património e não apenas edificado. As heranças culturais são respeitadas na medida em que servem interesses ocasionais.

O Externato D. Francisco de Almeida foi instrumento cultural e formativo durante anos, em Abrantes. Esquecê-lo é uma indignidade; ignorá-lo é menosprezar aqueles que ele formou como cidadãos, muitos deles socialmente proeminentes.

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Ao fundo, o edifício do antigo Externato, na atualidade

IN: TRAQUINA, Manuel Soares – Memória do Externato D. Francisco de Almeida. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 13. Nº 26 (2015), p. 45-48