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Trilho da Ribeira da Arcês

Ribeira da Arcês

Passeio por um sonho…

Rui Moleiro - Interessado por História Local e património e membro do CEHLA

Como em quase todas as aldeias, é no Café que o grupo de amigos se reúne para a tradicional bica discutindo os noticiários da hora de almoço ou os títulos dos jornais. É bem-sabido que as conversas puxam conversas.com alguma nostalgia à mistura, o tema pende inevitavelmente para a juventude que já lá vai e para a influência que a Ribeira da Arcês teve na vida de quase todos.

Em Mouriscas existiram aproximadamente quinze azenhas e lagares nas margens da Ribeira da Arcês e Rio Frio e mais duas ou três no Rio Tejo. Na Ribeira da Arcês o caudal de água permitia o seu funcionamento durante quase todo o ano. No pino do verão, a vigilância aos açudes e levadas era constante para que não tivessem fugas de água.

A “ribeira" traz gratas recordações, tanto mais que alguns trabalharam diretamente na moagem dos cereais e da azeitona. Relembram as brincadeiras nos açudes, onde aprenderam a nadar e a pescar, os nomes dos lugares, das hortas e das azenhas. Os proprietários amiudamente emprestavam" o seu nome ao local: Solar da Ti Rosa. Azenha da Maria Dias. Azenha do Roldão. Outros estavam envoltos por lendas e mistérios, como o Pisão do Bruxo, Poço do Inferno, Homem Morto e tantos outros.

Fala-se das tarefas mais ou menos especializadas que era necessário realizar antes das rodas e engrenagens girarem, como a limpeza e reparação das levadas, para que o azeite e farinha surgissem nas mesas dos Mourisquenses e de todos os que conheciam e apreciavam aqueles produtos. Homens e mulheres, que trabalhavam nas azenhas e lagares, personagens mais ou menos peculiares como o Chico Coxo, moleiro de força física invulgar ou a Tia Joana da Azenha, que viveu mais de 100 anos (faleceu com 104).

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Ruínas de engenhos vários, ao longo da Ribeira da Arcês

Com os motores de explosão, primeiro, e a eletricidade depois, a necessidade da colocação dos engenhos junto à Ribeira deixou de ser obrigatória. Por um lado, isso aliviou as penosas deslocações dos moleiros pelos carreiros íngremes, conduzindo os muares carregados, ora de grão ora de farinha, mas ditou o progressivo abandono das azenhas. 0 êxodo rural contribuiu também para diminuição das culturas de cereais.

Surgiu a venda do pão fabricado em padarias, abastecidas de farinha por moagens de tecnologia mais avançada. Ruínas e lembranças é o que sobra... os telhados e as paredes desabaram, muros esboroaram-se e os caminhos foram paulatinamente invadidos por silvas, estevas e acácias. Não há nada a fazer! A frase surge em tom de lamento. Não haverá? Não será possível mostrar aos mais novos os caminhos, as azenhas, ainda que ruínas, os locais onde os antepassados viveram e trabalharam? Lançado o desafio, a abertura dos caminhos com o corte e desmatação das espécies invasoras parecia ser a tarefa prioritária. Reuniram o que tinham de ferramentas, entusiasmaram mais alguns vizinhos e amigos e começaram os trabalhos. Corria o mês de maio de 2016 e se no início eram 6 ou 7, hoje contam-se cerca de 80 colaboradores. “Uma bola de neve”, nas palavras de um dos participantes.

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Ribeira da Arcês

Decorrido um ano, a ainda informal (há planos para registo oficial) associação “Os Amigos da Ribeira da Arcês", num singular projeto comunitário e de cidadania reabriu e desmatou cerca de 10 quilómetros de caminhos. Ainda se soma a limpeza das hortas que frequentemente existiam junto às azenhas, as fontes e as noras. O resultado está à vista de todos quantos quiserem usufruir da beleza de um passeio na natureza, tornado possível com o trabalho voluntário e tenaz de um grupo de pessoas movidas pela vontade de dar a conhecer alguns locais e pontos de interesse (cerca de 15 até agora) existentes na Ribeira da Arcês.

À conversa com António Louro sobre o futuro, conta-nos que a associação terá obrigatoriamente de ser constituída e registada e assim poderá concorrer a apoios financeiros que possibilitem a concretização doutros planos com o mesmo nível de ambição: limpeza e recuperação das fontes (Rota das Fontes), marcação, identificação de oliveiras (Rota das Oliveiras Milenares) e limpeza de duas azenhas no Tejo, nos Cascalhos/Cachão, perto do Canal de Alfanzira.

Recentemente (17 de maio), no âmbito do Orçamento Participativo Portugal foi lançado por António Louro um projeto para criação da “Rota cultural e etnográfica das ribeiras da Arcês, Rio Frio e Rio Tejo" em votação até 10 de setembro de 2017.

A vontade passa também por conseguir um edifício com capacidade para juntar muito do material e utensílios retirados pelos proprietários e herdeiros das diversas azenhas e moinhos desativados e que se encontram dispersos, reunindo o espólio necessário à constituição dum núcleo museológico. No Rio Frio localiza-se a única azenha em condições de funcionamento, “Azenha do Timóteo". Basta apenas arranjar o cereal, porque o saber e a boa vontade dos proprietários estão garantidos. Fica o desafio a alguma associação, escola ou grupo de amigos.

Falta apenas convidar os leitores para um passeio pelas margens da ribeira. O percurso está bem marcado, é circular, inicia-se no lugar conhecido por “Jogo da Bola", Rua da Várzea (Google Maps), junto ao “Café do Zé". Pelo caminho, há placas informativas nos locais que estão associados a uma lenda ou uma história. Obrigatório levar máquina fotográfica e boa disposição. Informações complementares na página do Facebook dos Amigos da Ribeira da Arcês.

IN: MOLEIRO, Rui – Ribeira da Arcês, passeio por um sonho…. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 15. Nº 29 (2017), p. 110-113