Senhor Jesus do Capítulo
Isilda Jana - Professora e membro do CEHLA
As nossas igrejas estão povoadas de imagens de santos e santas que nos habituamos a ver nos altares. Muitas, sem o sabermos hoje, têm estórias curiosas, são estórias da nossa história que estão ligadas à tradição oral e cuja origem, muitas vezes, se perde no tempo. São algumas dessas estórias que hoje aqui vamos trazer.
Senhor Jesus do Capítulo
Igreja de S. João Batista, em Abrantes
O Senhor Jesus do Capítulo é uma imagem de grande devoção em Abrantes. Reza a tradição que esta imagem foi trazida de Roma pelo 1º Conde de Abrantes, D. Lopo de Almeida, por volta de 1471, quando este chefiou uma embaixada ao Papa Sisto IV. A imagem trazida de Roma foi oferecida aos frades de São Domingos, convento que então ainda se localizava fora da vila. É aí que a imagem começa a ser venerada. Mas foi mais tarde, quando se iniciou a construção do Convento de S. Domingos, no local onde ainda hoje se encontra e os frades se instalaram, temporariamente, numas casas do castelo de Abrantes que eram pertença de D. João de Almeida, filho de D. Lopo, que a imagem se tornou mais popular. O Senhor Jesus do Capítulo foi então colocado na capela-mor da Igreja de Santa Maria do Castelo e foi a primeira vez que as mulheres puderam ver esta imagem que até então estava fechada num convento masculino.
A imagem ganhou fama redobrada e a igreja permanecia sempre cheia de fiéis que contemplavam e imploravam favores ao Senhor Jesus do Capítulo que se manteve neste local entre 1509 e 1517, ano em que findaram as obras no novo convento. Em 1517 a imagem foi então transferida para o novo convento de S. Domingos e foi colocada na Casa do Capítulo, onde se manteve até 21 de março de 1571.
A devoção à imagem continuou, sobretudo em situações de calamidade. Conta-se que no ano de 1569, foi a vila atacada por uma grande peste. E foi então que a população e os religiosos decidiram colocar num saco os nomes dos santos das várias igrejas, para escolher um a quem fazer uma grande festa e rogar com maior devoção. Uma criança tirou à sorte e saiu o Senhor Jesus do Capítulo. A festa fez-se. E aconteceu o milagre. A peste cessou, como que por encanto.
A partir daí todos os anos se fazia uma festa no dia 22 de março para celebrar o acontecido. Consta também que o ano de 1714 foi um dos mais secos de que há memória por estes sítios. Fizeram os moradores súplica ao Senhor Jesus do Capítulo implorando chuva e passados os dias da novena e ladainhas fizeram uma procissão.
E diz A. Morato que “esta teve início com um dia cloro de sol, mas ainda decorria a procissão pelo centro da vila, de repente se turvou o céu e choveu tanta água que quando recolheu ao convento parecia o mais rigoroso inverno".
A imagem esteve durante cerca de 400 anos no Convento de S. Domingos. Depois da extinção deste convento foi transferida em procissão, no dia 12 de dezembro de 1847, para a Igreja de S. João Baptista em Abrantes, onde ainda hoje se encontra. Sobre esta imagem o Jornal de Abrantes de 13 de março de 1949, num artigo intitulado Procissão de Penitência, descreve o seguinte:
“Teve lugar na última segunda feira, às 5 e meia da tarde, uma procissão de penitência que, como todas as que se têm realizado desde que a imagem do senhor Jesus do Capítulo veio do Convento de S. Domingos para a Igreja de S. João, saiu deste templo. Nessa procissão tomou parte a Irmandade dos Passos e a veneranda imagem do Senhor Jesus do Capítulo, que além de ser a de maior devoção no termo de Abrantes é uma apreciável obra de arte que só sai da igreja em situação de calamidade e sempre em procissão de penitência.
Uma multidão computada em 14.000 pessoas seguiu atrás da imagem, enchendo as ruas de lês a lês, entoando o cântico “Senhor Deus Misericórdia". Aqui acorreram pessoas de todo o concelho e região que respeitosamente tomaram parte no impressionante cortejo religioso.
Como é da tradição ninguém se via às janelas, incorporando-se os moradores das diversas ruas à medida que a procissão ia passando.
Ao recolher á igreja, que apesar de bastante grande não comportou todos os fiéis, foram rezadas as orações do ritual e dada a bênção pelo Rev. Catarino, pároco da freguesia. Nessa noite e dias seguintes choveu com grande satisfação dos lavradores e de todos os que previam um ano de fome.”
A fé e confiança dos moradores da vila na proteção do Senhor Jesus do Capítulo manifestou- -se em muitas outras ocasiões de calamidades públicas, mas também individualmente as pessoas veneravam e pediam a sua proteção.
S. João Batista
S. João Batista
Igreja de S. João, em Abrantes
O S. João Batista é uma imagem de pedra que se encontra, atualmente, em destaque no corpo da Igreja de S. João, em Abrantes. Segunda reza a tradição, esta imagem está ligada à passagem de D. João I, por Abrantes. De acordo com as crónicas, D. João I esteve em Abrantes antes de ir para a batalha de Aljubarrota. Foi aqui que se encontrou com D. Nuno Álvares Pereira e foi aqui que decidiram ir ao encontro dos castelhanos. Nessa ocasião, D. João I ouviu missa na Igreja de S. João. Até meados do séc. XX estava à porta desta igreja uma grande pedra que, segundo a tradição, serviu de apoio a D. João I para este subir para o cavalo, no fim da missa e antes de ir para a batalha. Esta pedra hoje está à entrada da Igreja de Santa Maria do Castelo.
Depois da batalha e como forma de agradecimento, D. João I terá voltado a Abrantes e aqui terá oferecido esta imagem de S. João Batista que, segundo a tradição, terá sido esculpida com a cara do próprio rei, segundo nos diz o padre Jorge Cardoso, em Agiologia Lusitana dos Santos, e varões illustres em virtude do Reino de Portugal, (1606-1669).
“Pelo que vitorioso foi dar graças à dita igreja, deixando nela o seu retrato (em sinal de troféu), na devota imagem do Santo, que mandou esculpir de pedra, na qual as três partes do seu diadema têm as quinas de Portugal."
A imagem existe e a estória também e já foi registada no séc. XVII.
Nossa Senhora da Graça
Nossa Senhora da Graça
Igreja das Sentieiras
A imagem de Nossa Senhora da Graça que se encontra na Igreja de Sentieiras é uma Virgem do Leite, do séc. XV, talhada em pedra com uma policromia bastante desgastada, acusando alguns repintes toscos. É proveniente do antigo Convento da Graça de Abrantes, um convento de freiras dominicanas que se localizava junto ao Convento de S. Domingos e que foi demolido em finais do séc. XIX.
E a pergunta que se impõe é como foi esta imagem parar à pequena Igreja de Sentieiras? A história foi-me contada por um grupo de senhoras que fazia uma visita guiada ao Museu D. Lopo de Almeida, em Abrantes. Nessa visita uma das senhoras ao aproximar-se da imagem da Virgem do Leite disse:
- Em Sentieiras temos uma igual a esta! Achei estranho.... E contaram-me a estória. “Uns homens de Sentieiras andavam a trabalhar na demolição de um convento em Abrantes e a imagem estava entre o entulho para ir para o lixo. Foi então que os homens pediram ao capataz se podiam levar aquela imagem para terra deles. O homem disse que sim, que podiam levar. E então eles levaram um carro de bois e trouxeram a imagem para a nossa igreja.”
Marquei encontro no local e fui ver. A imagem lá estava no altar-mor da igreja de Sentieiras. Não é igual à de Santa Maria do Castelo, mas não há dúvida, é uma Virgem do Leite, do séc. XV, confirmou o Professor António Batista Pereira.
Nossa Senhora da Boa Viagem
Nossa Senhora da Boa Viagem
Capela das Barreiras do Tejo
Na capela de Barreiras do Tejo existe uma pequena imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem que tem aqui culto antigo. Esta sempre foi uma localidade ligada ao Tejo. Localizada na margem norte, junto ao rio, era daqui que partiam as mercadorias para o centro da cidade, através da antiquíssima rua da Barca. É uma terra de barqueiros e pescadores.
A imagem pertencia aos barqueiros do Tejo e todos os anos havia uma grande festa. A festa em honra de Nossa Senhora da Boa Viagem remonta há vários séculos, quando a irmandade tinha a sua sede na Igreja de S. Vicente. Esta irmandade era constituída essencialmente por marítimos, barqueiros e medidores e de entre eles eram escolhidos os reitores onde a imagem de Nossa Senhora ficava de ano para ano, até à festa seguinte.
Numa ocasião, a imagem foi levada para a Igreja de S. João, mas a população não se conformou com a sua ausência e a imagem regressou, em festa, às famílias das Barreiras do Tejo. Havia cerca de 30 anos que a festa já não se fazia e a imagem, entretanto, tinha recolhido à igreja de S. João. Mas no ano de 1947 fez-se de novo e o acontecimento é descrito deste modo no jornal de Abrantes de 22 de junho de 1947:
“(..) No sábado teve lugar a procissão de velas que à noite saiu de S. João acompanhando o andor da Senhora da Boa Viagem. Teve grande brilho e significado esta procissão pelo extraordinário número de fiéis que nela se encorporaram e que não temeram os dois quilómetros a percorrer e o mau piso da velha calçada da Barca.
Era imponente o aspeto que oferecia nas intermináveis filas de velas que se estendiam pelo milenário caminho do Tejo.
No domingo (dia 8 de junho) teve lugar a missa de festa, (num armazém cedido pelo Sr. Carosso e preparado para o efeito), seguiu-se um almoço oferecido pelos habitantes de Barreiras do Tejo. Inicialmente este almoço destinava-se às crianças pobres, mas acabou por ser para todos os que dele quiseram participar. À tarde realizou-se a procissão da Srª da Boa Viagem pelas ruas da localidade, a visita ao Tejo e a bênção dos barcos, cerimónias que comoveram bastante os habitantes idosos daquele lugar. A imagem que figurou na procissão foi conduzida a casa do Reitor como era de tradição e à noite improvisaram-se folguedos populares e uma sessão de cinema ao ar livre, com grande assistência."
A festa manteve-se por mais alguns anos com o contributo de todos construiu-se mesmo, algum tempo depois, a capela da Senhora da Boa Viagem, onde em 1953 a pequena imagem foi guardada. Mas o Tejo foi perdendo o seu tráfego fluvial. Sem barcos, sem marítimos, sem pescadores, a festa de Na Senhora da Boa Viagem, em Barreiras do Tejo, acabou também por se perder.
Nossa Senhora da Conceição
Igreja de S. Miguel do Rio Torto
A imagem de Nossa Senhora da Conceição da Igreja de S. Miguel do Rio Torto é feita em mármore de Carrara. Diz o Livro “Abrantes cidade florida” (1952) que a imagem foi adquirida por subscrição pública.
Mas esta imagem tem uma estória que nos foi contada já em 1995. Disse então Júlia Maria Rosário, então com 83 anos de idade e residente em S. Miguel do Rio Torto, que esta imagem tinha sido oferecida por um soldado francês no tempo das Invasões Francesas. Este francês estava ferido e não conseguiu acompanhar as tropas invasoras. Ficou na zona de S. Miguel, onde foi encontrado por um dos moradores da aldeia que teve pena e o socorreu. O francês ficou restabelecido e voltou a França, mas não esqueceu que um dia foi salvo numa terra estrangeira, por alguém que não o conhecia e se apiedou dele. E foi então que mandou ao homem que o tinha salvo uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Esta imagem feita em pedra e segundo a tradição, muito rara, encontra-se ainda na igreja de S. Miguel do Rio Torto.
Estas são algumas das estórias da nossa História, contadas e recontadas na tradição oral durante séculos. Muitas mais há por aí, que conhecidas ajudam a refazer a densidade simbólica dos lugares que hoje habitamos.
IN: JANA, Isilda – Imagens com Estórias. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 16. Nº 31 (2018), p. 62-67