Joaquim Candeias da Silva*

    O último número da ZAHARA trouxe a público a Lenda de Abre-antes ou de Zahara a Moura, que deu título a esta revista. Embora bastante conhecida no meio cultural abrantino, de há muito se justificava tal (re)publicação, que mais não fosse para justificar o nome escolhido pelos editores, já lá vão quatro anos, oito números de publicações regulares... Mas a Lenda de Zahara deu-me também ensejo para trazer aos leitores um "bosquejo" sobre as verdadeiras origens de Abrantes, tanto quanto a ciência histórica no-lo permite no seu estádio actual.
    Eu, professor de História, confesso: gosto da lenda. E bonita, imaginativa, bem articulada, com pés e cabeça (pelo menos aparentemente), ao ponto de a podermos considerar uma "estória" historiada, pois contém uma série de ingredientes com valor histórico [se bem que estes devam ser assacados mais à erudição do seu primeiro redactor — o bispo D. Fr. João da Piedade (1564?1628) — do que à sua versão genuína, popular]. É também uma lenda moralista, cavalheiresca, em que uma conquista ou batalha se faz sem derramamento de sangue e em que os vencidos se irmanam com os vencedores. E, sobretudo, traz-nos um belo romance de amor, daquele amor cortês medieval, tão bem captado por Herculano e por outros romancistas do século XIX..
    Não obstante, como historiador e académico, tenho de confessar também que a lenda, de tão sugestiva e atraente, pode ser perigosa; isto porque, sendo geralmente classificada como uma lenda etiológica (por uma causa), contém alguns pressupostos erróneos e pode facilmente induzir o leitor ou ouvinte a aceitá-la passivamente como verídica, sobretudo no seu conteúdo mais forte que é a explicação toponímica de Abrantes. E esta é, do ponto de vista etimológico e histórico — e afirmo isto com toda a convicção — inteiramente gratuita e sem fundamento. De resto, repito, talvez possamos detectar na "estória" alguns elementos merecedores de reflexão.
    Pergunta-se: como foi, então, que nasceu Abrantes? Como era Abrantes antes de ser ou de se chamar Abrantes?

O verdadeiro/falso da lenda  
    Há diversas versões: umas mais simples e abreviadas, outras mais longas e romanceadas, ou com pendor mais erudito, mas sempre Lendas, e como tais têm sido publicadas1. Penso que não terá grande interesse para o presente artigo uma elencagem de todas essas publicações; em todo o caso, não resisto a apontar um exemplo de versão longa e romanceada, ainda pouco conhecida, a publicada in Lendas de Portugal, de Gentil Marques, ed. Marina Editores, L.da, Lisboa, 2000, pp. 187-197, sob o título de «Lenda da Porta que se Abra Antes».
    A versão aqui reproduzida no n.0 anterior desta revista creio que tenha sido extraída da obra Lendas Portuguesas [investigação, recolha e textos de Fernanda Brazão, ed. Amigos do Livro e Multilar, vol. 4, Lisboa, 1982 e 1988, pp. 67-73, de onde aliás e com a devida vénia extraímos também a primeira gravura], que por seu turno a terá ido beber em 2.a ou 3.a mão a uns Apontamentos do referido bispo D. Frei João da Piedade. No fundo terá sido ele a fonte em que todos os autores se basearam2.

    Mas o bispo parece não se ter limitado a reproduzir a sua infância, em Abrantes (séc. XVI). Crente numa longa remontar ao século XII ou mais, procurou dar-lhe vida com uma roupagem factual, de modo a melhor convencer assim foi que, nas suas notas, ele atribuiu a Zahara algo lendária; ela afigura-se-nos quase uma heroína real, 'acontecimento".
    Escreveu ele (seg. M.A.Morato):
«E isto huma tradicao popular que per mais de quatro seculos de pais a filhos entre os moradores d'Abrantes, e que dizem prender corn a verdadeira origem deste nome, mas como esta tradicao corre desfigurada no vulgo, no posso leixar de lhe dar vida avivando-a na memoria dos meus patricios.»
    E mais abaixo:
«E este acontecimento tradicional que eu acredito dera origem ao nome "Abrantes", lembrado da sentença de Aristóteles: Quod omnes, aut complures sentiunt, aut dicunt, idfalsum esse non est putandum — No caso de todos, ou muitas pessoas, sentirem ou dizerem [o mesmo], não é de presumir que tal seja falso», Tal "acontecimento tradicional" ganhava assim foros de voxpopuli. E, se voz dopovo era tantas vezes conotada nesses tempos com a voz de Deus, receoso que houvesse alguém que viesse a tomar a sua erudita explanação por uma balela ou infantilidade, o bondoso prelado acrescentava:
«Muitos dos que isto lerem, ou ouvirem, quiçá se riam, julgando esta tradição huma lenda pueril, mas mudarão por certo de pensar quando com madureza reflectirem, (...) pois que o tribunal do vulgo é inflexibile em as suas sentenças.»
     Pois bem, passemos então à análise dos pormenores alegadamente de carácter histórico, a tal "roupagem" da lenda, procedendo como que a uma desconstrução da mesma:
- Zahara, filha do alcaide mouro Ibrahim (ou Abraham) Zaid: O nome próprio Zara já o encontramos com bastante frequência na Bíblia (p. ex., Génesis, 36 a 38), e Sara era a mulher de Abraão (talvez do hebraico saray "princesa"). No árabe, zahrâ [= "flor de laranjeira"], também com muito uso como antropónimo, era um dos cognomes de Fátima (filha de Maomé e de sua esposa Kadija); e havia já no século X a cidade de Zara, perto de Córdova, subsistindo ainda o nome como topónimo na Arménia (Turquia) e na Croácia. Quanto a Ibrahim, era a designação árabe do bíblico Abraão... Mas o mais interessante é que, daqueles dois personagens (filha e pai), os vamos encontrar como protagonistas na reconquista (também lendária) de outro importantíssimo castelo desta região centro e sensivelmente da mesma época— o de Leiria — e pelo mesmo D. Afonso Henriques: ela exactamente com o mesmo nome (Zara) e seu pai (embora não nomeado), o mesmo alcaide mouro já velho3.
- Samuel, filho bastardo de Ibraim e irmão de Zahara, havido de uma cativa cristã em Soure, pelo ano de 1 118: Samuel é um antropónimo de origem hebraica e que já se atestava igualmente em Soure no século XII, dando depois origem a topónimo, que ainda hoje ali existe. E sabemos mais: que a vila teve ocupação visigótica e muçulmana, que aí existia por volta de 1040 um pequeno cenóbio, que o seu castelo foi objecto de várias reconquistas desde fins do séc. XI, que ao conde Fernão Peres de Trava por D. Teresa (mãe de Afonso Henriques) e em 19.3.1128 pela mesma à Ordem do Templo, e que em 1144 foi o castelo refeito devido a novas incursões inimigas, em consequência das quais uma parte da população ficou cativa dos Mouros4. Quanto a Machado (o cavaleiro que aprisionou Samuel), cujo nome parece ter derivado de antiga alcunha, poderá ter origem portuguesa, mas como nobre só nos aparece a apelidar um neto de uma manceba de D. Sancho I...
- O monge beneditino de Lorvão (João Gonçalves): Na versão mais completa era irmão do grande fidalgo (infanção) Gonçalo Gonçalves, a quem a condessa D. Teresa dera o senhorio de Soure por volta de 1125 com o objectivo de restaurar o seu castelo e que viria a distinguir-se na tomada de Santarém em 1147 (segundo outros seria também irmão de Gonçalo Mendes da Maia, o "Lidador"). O mosteiro de Lorvão, no concelho de Penacova, já anterior ao domínio muçulmano, pertencia de facto à Ordem de S. Bento e era um centro importante do moçarabismo peninsular (sécs. VII?-XI), tendo em 1109 sido doado à sé de Coimbra.
- D. Afonso Henriques: O nosso rei Fundador (1109?-1185), a quem as fontes muçulmanas chamam Ibn Arrin, por ele ou por outros seus guerreiros-vassalos em seu nome (porque não era possível estar em todo o lado nem agir sempre pessoalmente), tomou, de facto muitos lugares e fortalezas a Mouros, conforme a respectiva Crónica, de Duarte Galvão (cap. LIX): «primeiramente na Estremadura: Santarém, Lisboa e todalas outras vilas e fortalezas dela, des Coimbra até Lisboa». [Antes, no cap. XI, descrevera o cronista a tomada do castelo de Leiria aos Mouros, "por força" (ano de 1 135); e «seguiu mais sua entrada pela terra dos Mouros e tomou Torres Novas»... Teria entrado também no território de Abrantes? Embora as crónicas o omitam, tal não seria impossível. Quanto à conquista do castelo aos Mouros na madrugada do dia 8.12.1148 (!), falaremos mais adiante...
- D. Pedro Afonso, 1.0 alcaide do castelo de Abrantes: De facto assim vem citado no Foral de 1179. Mas, apontado na lenda como filho bastardo de D. Afonso Henriques, não poderia sê-lo pois não se lhe conhece entre os filhos, dos 7 legítimos e 4 ilegítimos que teve, nenhum com esse nome. Segundo outros, seria meio-irmão do Conquistador, filho ilegítimo do conde D. Henrique, mas esse terá falecido em Alcobaça c. 1170... Quem seria então aquele alcaide? Parece que se trataria [segundo o autor do artigo bem fundamentado da Enciclopédia (verba "Abrantes")] de outro indivíduo — D. Pedro Afonso Viegas: filho de D. Moço Viegas e neto do ínclito Egas Moniz de Ribadouro ("pois outro do nome não havia então na alta nobreza"), casou com D. Urraca Afonso, filha ilegítima do rei conquistador e de Elvira Gualtar. Teria sido ele o alcaide de Abrantes mencionado no Foral.

Selo medieval do concelho de Abrantes, existente na Torre do Tombo

Quanto à tradição abrantina de provirem dele as lises do actual brasão da cidade, não creio que seja tese sustentável. Com efeito, nem as primeiras armas concelhias que se conhecem incorporavam tal símbolo [Ver figura] — eram um castelo com suas ameias alcandorado sobre as águas de um rio e ladeado por duas estrelas de oito pontas , nem me parece que as ditas lises tivessem tudo a ver com heráldica senhorial. A meu ver, com base num documento da BNL, datável de Abrantes 1589 e que é o primeiro documento conhecido onde aparecem as actuais armas de Abrantes [quatro corvos, quatro flores-de-lis e uma estrela ao centro], as lises, bem como os corvos, terão nascido da ancestral rivalidade entre as duas freguesias maiores da vila. Assim sendo, os corvos serão a afirmação de S. Vicente e as lises a de S. João, neste caso talvez por força da vinculação dos fregueses a D. João I aquando da crise de 1385.
- Tubucci, anterior nome de Abrantes: Ora, eis aqui o "nó górdio" e cerne de toda a questão, que já fez e ainda fará correr muita tinta. O principal argumento aduzido pelo recolector da lenda, o bispo D. Fr. João da Piedade (cit.o por Morato), era uma lápide, alegadamente romana, referenciada no castelo, «na cortina da muralha que corre por detrás da Torre de menagem com frente para o Nascente», em que se lia: «D.M.S. / M. RVFINVS / MEDIC. TVBVC. / H.S.E. S. T.T.L.». Como é bem de ver, pretendia-se localizar aqui a sepultura de um médico tubuciense e com ela provar que Abrantes fora a romana Tubucci. Mas... o texto incorre em graves erros e contradições internas, por mim desmontados em 1981 (cf. «Epigrafia romana de Abrantes», Trebaruna, 1981, pp. 9-24), pelo que foi posto de lado, sob fortes suspeita de falsificação,  juntamente com mais três inscrições ditas do aro de Abrantes. Adiante voltaremos a este assunto...

Abrantes antes de Abrantes
    São muitas as referências às antiguidades abrantinas, quer em autores antigos quer em documentos manuscritos (alguns inéditos ou quase), quer mesmo em monumentos epigráficos (estão publicados  bastantes, mas há mais).
    Num dos manuscritos — as Memórias Paroquiais de 1758 — reportando-se ao quesito "se a vila tinha antiguidades ou outras cousas dignas de memória", afirmam os (4) párocos de Abrantes [resposta colectiva, copiada directamente do original da Torre do Tombo]:
    «Se responde que esta Villa he celebrada pela sua antiguidade, pois já lá quando Ulyses veyo á Luzitania a lançar a primeyra pedra para a edificação de Lisboa era esta ditta Villa que então se chamava Tubucci nome que ainda hoje conserva nos vocabularios latinos - cabeça de hum dilatado dominio, que comprehendia  em seu destritto a Colippo, que agora se chama Leiria, e tãobem a Portalegre, chamada então Améa, aonde  a estes e aos mais Povos Tubuccenses dominava El-Rey Adrasto, a quem o mesmo Ulyses veyo aqui a pedir soccorro para a conquista que então lá fazia a El-Rey Gorgorio E mais adiante: «Foi fimdada pelos Gallos Celtas trezentos e oito annos antes da vinda de Christo.»
    Relativamente às epígrafes, conquanto de conteúdo nem sempre credível, vale a pena avocar a conhecida placa do Castelo (redigida e afixada muito provavelmente no ano de 1860):
     «Foi este castellofortifìcado /por Decio Junio Bruto, / consul romano, no anno CXXX antes de Christo. /  Em 8 de Dezembro de 1148 /foi tomado de assalto aos / Mouros por D. Afonso Henriques.
    Das duas citações, a primeira, de tão anacrónica e gratuita, não oferece a menor fiabilidade, e por isso não me deterei nela; já a segunda merece alguma atenção e reflexão: No tocante a Bruto, embora a data proposta não possa aceitar-se em rigor, é sabido que o cônsul romano desenvolveu campanhas de pacificação na Península entre 138-137 a.C. e que deve ter assentado as suas bases militaresjunto a Moron, algures a norte de Santarém; e quanto à conquista (de Abrantes) pelo nosso rei Fundador, não tanto pessoalmente mas por intermédio de combatentes seus ou em seu nome,  não será inteiramente de excluir. porque todo este território da linha do Tejo foi pasto de algaras e  fossados quase contínuos no âmbito da chamada Reconquista, o que não teria decerto acontecido se fosse um deserto total.
    Neste mar de incertezas, há uma ciência que nos pode servir de excelente auxiliar: a Arqueologia. Vejamos, pois, em resumo, o que de concreto ela nos revela.

* Abrantes pré-romana: 
    De entre o vário espólio recolhido no Castelo conta-se um famigerado "machado de calaíte verde", encontrado em 1969 no meio do entulho removido de um fosso, situado no interior do chamado Palácio dos Governadores (antiga "messe"), durante uma campanha de restauro levada a cabo pela Direcção-Geral dos Edificios e Monumentos Nacionais. Esse precioso objecto foi levado em Junho de 1986 para o Departamento de Arqueologia do então IPPC, a funcionar no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia (Belém, Lisboa), pela arqueóloga Dra Ana Isabel Santos, ao tempo membro da Comissão Reorganizadora do Museu D. Lopo de Almeida (que eu também integrava), para estudo e desenho, não tendo até ao momento regressado, ao que julgo saber. Ora, tanto quanto foi averiguado, aquela peça, para a qual não se conhecia paralelo nacional, poderá datar da Idade do Bronze Antigo, rondando 2000 a. C. (antes de Cristo).
    Mas há (ou havia) mais, desses tempos: - Dois machados de pedra polida, tendo um deles sido encontrado à profundidade de 1 ,60 m, em 24.10.1944, quando se procedia à abertura de caboucos para um novo parque militar, e o outro um pouco adiante da antiga carreira de tiro, igualmente no decurso de obras militares (isto segundo Bairrão Oleiro, 1951); - Uma taça de cerâmica, aparecida no interior da torre de menagem, aquando dos preparativos para a implantação do depósito de água da cidade, por volta de 1940, e que também foi levada em 1986 pela Dra Ana Isabel Santos, para estudo e desenho [cremos que seria a esta peça que a Dra Maria Amélia Horta Pereira se quis referir num Simpósio de Mação (4.3.1988), quando aí apresentou «Cerâmica do Bronze Final na Fortaleza de Abrantes»]; - Uma xorca de bronze, citada pela mesma arqueóloga (1985), cujo paradeiro desconheço, peça datável de época aproximada (Bronze Final).
    Ajuntar a estes elementos, poderemos citar o grande pioneiro e erudito José Leite de Vasconcelos, que em 1915 assinalou «Materiais indeterminados do Eneolítico e da Idade do Bronze», referindo-se a Abrantes mas sem mais pormenores; e aduzir o aparecimento de cerâmicas brunidas e espatuladas, que foram por nós observadas na base do torreão Sul, onde se recolheram ainda fragmentos metálicos, a par de resíduos ósseos no mesmo contexto. Consideráveis estruturas de argila batida e compactada, associadas a cerâmica típica do Bronze Final / Idade do Ferro, foram observadas também junto à base do torreão leste, nas traseiras da igreja, aquando do último desmoronamento da muralha. Ademais, detemos notícias de outros achados relacionáveis, que por prudência não revelamos sem obter a devida e competente confirmação5.
    E a História do morro acastelado não mais parou de se escrever, conquanto seja necessário advertir que nunca, até hoje, se fizeram ali prospecções sistemáticas e alargadas; pelo que é bem possível que todo aquele espaço, privilegiado pela natureza e estrategicamente implantado, nos reserve bastantes surpresas... «Sempre que com qualquer finalidade se escava no castelo e até mesmo nos fossos vem à superficie qualquer surpresa»,já escrevia em 1956 Diogo Oleiro. «Escave-se o Castelo — costumava dizer também seu filho, o grande arqueólogo João Manuel Bairrão Oleiro, injustamente esquecido —, e teremos ganho séculos de esclarecimento!».
    Por conseguinte, mesmo sem conhecermos o que jaz oculto no ventre da terra-mãe, há muita história mais que podejá ser contada; basta que para isso juntemos as peças conseguidas do puzzle; e queiramos ver, e saber mais —porque tem havido quem não queira, menosprezando tudo o que vem da Arqueologia e fazendo crer que nada disto tem interesse... Continuemos então o nosso esboço de inventariação.

* Da Abrantes romana:
- A graciosa estátua romana acéfala, encontrada nos primórdios do século XX no interior da igreja, deitada na horizontal com o dorso para baixo a 1 m de profundidade, eventualmente datável do governo do imperador Adriano (podendo correlacionar-se com uma outra estátua, mais imponente, encontrada perto em 1961 , na margem esquerda do Tejo).
- Uma árula anepígrafa romana, recolhida na década de 50 no exterior do castelo pelo guarda do Museu, junto à muralha poente, exemplar esse bastante grosseiro e de arestas boleadas, já publicada.   - Ara a Jupiter: Embora pairem algumas dúvidas quanto à sua origem, é de presumir que seja originária destas bandas. É de mármore branco e apresenta-se com alguns problemas de leitura, mormente na 2.a linha, que parece ter sido apagada a propósito e de longa data; também a 3.a e última linha denota especificidade, já que nela se lê claramente «VOLVM» (em latim «quero», supostamente «quero dedicar este monumento ao deus...»), em vez do esperado VOTVM(«Voto a Júpiter Optimo Máximo»). Trata-se, em boa verdade, de uma epígrafe pouco usual, mas fidedigna, e daí o seu acrescido interesse; isto para além de assinalar em Abrantes, pela 1.a vez na cidade e pela 2.a no concelho (em Alvega), o culto a esta divindade máxima do panteão romano6.

Ara a Júpiter e estátua romana

- Uma placa de mármore branco, paralelepipédica (113 x 40 x 15 cm), com inscrição latina muito sumida, que serviu posteriormente de degrau ou soleira de porta, no exterior do castelo, sendo esta a razão por que se apresenta muito desgastada e praticamente ilegível, ainda inédita.
- Cerâmica de construção em vários sítios, designadamente fragmentos de tegulae, imbrices e lateres (incluindo elementos do fuste de uma coluna, da qual se encontraram sete tijolos triangulares, todos estes na escarpa norte).
- Mós manuárias, sendo uma delas volante e outra dormente, esta encontrada aquando do desaterro da "porta da traição".
- Moedas múltiplas, algumas já referenciadas desde os séculos XVI-XVII como "medalhas" (seg.º Morato, 1860), outras aparecidas ao longo do séc. XX, sendo duas de Calígula (anos 37-41) e uma de Galieno (253-268), encontradas em antigas escavações num adarve do castelo por detrás da igreja-museu, e outras indeterminadas, achadas no exterior, em poder de particulares [«nos fossos do castelo e na encosta leste até à calçada velha de S. José» (seg.0 Diogo Oleiro, 1952)]; mas há muitas mais e importantes, ainda não publicadas, designadamente denários republicanos (!)...
- Descendo o castelo até ao rio, na margem direita do Tejo, existe um importante arqueossítio, que se estende do Lopo a Cousa Bela (topónimo sugestivíssimo), com múltiplos vestígios materiais que vêm da Idade do Bronze à Idade Média... Galgando o rio, outra estação ainda por estudar, onde apareceu a estátua romana maior do Museu, com um fragmento de inscrição ao lado. E um pouco mais além, já na freguesia de Alferrarede, outras marcas da romanidade de significativa importância (Vide Carta Arqueológica do Concelho...).
    Por tudo isto, Abrantes e a sua fortaleza têm vindo a ganhar um crescente protagonismo no quadro da arqueologia romana; de tal modo que já se questiona entre alguns estudiosos locais se todas as quatro inscrições citadas por Piedade/Morato serão inteiramente falsas, e se Aritium Vetus, até aqui localizada quase unanimemente em Alvega, não poderá ter sido no "cabeço" de Abrantes: assim se têm vindo a interrogar os nossos parceiros de trabalho Alvaro Batista, Filomena Gaspar e Carlos Batata7 E, em boa verdade, porque não admitir, pelo menos por uma vez, como hipótese de trabalho, que a placa com o famoso Juramento dos Aricienses, encontrada numa ribeira do limite leste do concelho de Abrantes (Represa-Lampreia?), tivesse lá sido colocada porque por aí se definiria uma fronteira e se iniciava a navegação plena do Tejo? Essa fronteira era nos primórdios da nacionalidade o limite de Guidintesta e dos Privilégios de Belver, e ainda hoje funciona como limite de concelhos, de distritos e de províncias. Ora, não seria também por aí que nos tempos romanos se entrava em pleno território ariciense, com sede no velho ópido de Abrantes?8
   
O argumento seguinte pouca relevância terá, porque é uma resultante ou consequência, e não uma causa provada; mas não deve ser ignorado nem menosprezado, porque diz respeito à consideração da cidade moderna no contexto internacional. Abrantes, talvez por via da literatura arqueológica corrente em Dicionários e Enciclopédias, foi contactada, há anos (1988), através do Secretariado de Lisboa da União Latina [organização intemacional de vocação linguística, técnica e cultural, visando proteger a identidade cultural dos países latinos], no sentido de integrar a longa listagem das «Cidades com vestígios romanos» — recordo que Abrantes era mesmo a primeira da lista de Portugal (por ordem alfabética) — no âmbito da respectiva Associação Internacional e da Federação Internacional das Cidades Romanas...
    Ora, entra aqui, então, de novo, a problemática de Tubucci (variante Tacubis).
    É esta uma velha e arrastada questão. Que a povoação romana existiu, não podem restar dúvidas. Ficava na Via XV do Itinerário de Antonino Pio — a rota alternativa mais periférica de Lisboa para Mérida —, 30 a 32 mil passos ou milhas de Scallabis (Santarém) para NE, distância que corresponderia a menos de 50 km. Seria uma espécie de entroncamento de caminhos, ou estação de muda, na orla do Tejo, e se aquele intervalo foi dado correctamente, localizar-se-ia uns 15-20 km a jusante de Abrantes. Já noutro estudo apontei André de Resende (t 1573), reconhecido autor de muitas falsificações de epígrafes "romanas" para sobrelevar o passado de Evora, como o presumível responsável pela identidade Tubucci / Abrantes... Na sequência dele, outros como Fr. Bernardo de Brito (1569-1617), o nosso Fr. João da Piedade (1564-1628), Manuel Faria e Sousa (1590-1649), P.e Jorge Cardoso (1606-1669), P.e Luís Cardoso (t 1769), Manuel Morato (1811-1886), acolheram e divulgaram a conjectura. Morato, baseado em Brito e sucedâneos, chegou a aduzir como contraprova uma lápide da serra de Sintra onde se aludia a Tubucci, e que hoje é dada também como falsificada (seg.0 José Manuel Garcia, em estudo a publicar)...
    No século XIX um grande arqueólogo (Emílio Hübner) chegou a afirmar que era «impossível determinar o local de Tubucci». Mas não têm faltado propostas para ela... Mário Saa localizou-a emAlvega. Jorge de Alarcão, nos seus múltiplos estudos sobre o Portugal Romano, tem-na colocado preferencialmente na margem esquerda do Tejo [«näo longe do Tramagal», ou mesmo no Casal do Carvalhal-Alcolobra]. Já Vasco Mantas tem-na puxado mais para Constância Sul; e Alvaro Batista, no seujá citado trabalho, afirma que se deverá encontrar em um destes locais: Tancos, Pedreira (Rio de Moinhos) ou ... Castelo de Abrantes, (pp. 175 e 195). O Prof. Alarcão, no seu trabalho mais. recente, em que voltou a abordar esta questão — «Houve povoação romana em Abrantes?» —  revelou-se taxativo: «A identificação de Abrantes com a povoação de Tubucci referida no Itinerário de Antonino não pode ser sustentada, apesar da tradição literária nesse sentido» (Alarcão, 2004, p. 197).
    E, já agora, qual seria o significado do vocábulo —na forma mais conhecida Tubucci, ou noutra semelhante Tacubis? Schulten vislumbrou na sua origem o prefixo líbio Ta-; Vasco Mantas preferiu a esse prefixo o radical de Tacos >Tagos >Tejo9... A ser assim, talvez a localização na zona de Tancos / Arripiado pudesse ser uma boa hipótese, pois não têm faltado notícias de indícios romanos por ali, desde o século XVI pelo menos10. Mas, certezas, uma vez mais, não as temos. Procurando paralelos do nome noutras panes, encontramo-los em Itália, portanto bem longe do Tejo: Já existia, por exemplo, no ano de 1210, na República de Génova a família patrícia "Tabucco" (variantes Tabucchi, Trabucco, Trabucchi), de origem Piemontesa. E também é bem conhecido em Portugal o escritor e professor de origem italiana Antonio Tabucchi (n. Pisa, 1943)... Ora, ninguém acreditará que o nome fosse importado de... Abrantes.

* Abrantes pós-romana   
    Conhecem-se já vestígios visigóticos em vários lugares da área de Abrantes: Qta da Légua-Amoreira e Pedreira (Rio de Moinhos), Fonte do Sapo (Mouriscas), Aneirão (Alvega), eventualmente também no Moinho do Meio (cemitério de S. Miguel do Rio Torto), na Favaqueira e Vale de Zebrinho (S. Facundo), Qta do Morgado/S.ra da Guia (Concavada)...
    Do castelo, têm sido apontadas duas sepulturas protomedievais (?), com fragmentos cerâmicos (ímbrices?), exumadas em escavações feitas num adarve do castelo por detrás da igreja-Museu, por Diogo Oleiro. Reconheço que é pouco. Mas não esqueçamos a subliminaridade das pesquisas e mesmo a pouca atenção que vinha sendo dada a este período histórico-arqueológico. E provável que algumas das cerâmicas ditas tardo-romanas ou já medievais do tipo imbrex, encontradas em arqueossítios ditos romanos, como este, ou na necrópole de Cousa Bela (cf. jornal abrantino A Nova, de 24.3.1889), possam afinal ter-se estendido até ao moçárabe...

* Houve também uma Abrantes islâmica? Vamos por partes.

    O enquadramento regional
    Abrantes faz parte de um conjunto territorial, relativamente homogéneo, o Centro de Portugal, a vasta região que grosso modo medeia entre o Mondego e o Tejo (mas incorporando uma larga faixa para alem deste), e dentro dela o Norte Ribatejano que integra a Bacia do Medio Tejo... E este conjunto tem uma historia, que em principio terá diferenças nos pormenores mas que globalmente será assemelhável e comparável.

Mapa de ocupação árabe no território português

    Alguém já pretendeu "ver" o primitivo território abrantino como fazendo parte de uma vasta superfície desértica que viria desde o Douro (ou das Astúrias?), completamente ermada e sem o mais leve sussurro de humanos entre o seculo VIII e meados do XII ! !!... Parece-me mais urn problema de "miopia arqueográfica" do que uma tese, enquadrável naquela velha e distorcida questão do ermamento, que fez as delicias de certa historiografia oitocentista e que paulatinamente foi perdendo sentido.
    Ora, sem querer entrar em grandes análises, porque o espaço é curto, vejamos sucintamente o que se conhece das mais importantes vilas/cidades medievais das proximidades, em termos comparativos, desde Tomar, passando por Torres Novas, Ourém, Leiria, Sertã, até Castelo Branco e Idanha-a-Velha.

    - Tomar:
    Segundo os mais recentes testemunhos da investigação histórica, «Antes de iniciada a romanização já existia na margem esquerda do rio [Nabão] uma povoação da 2.a Idade do Ferro, provavelmente de natureza céltica, assinalada (sob o Forum) pelos achados de cerâmica indígena e de duas fibulas anulares hispânicas datáveis do séc. IV a. C.. Os dominadores adaptaram, supõe-se, o topónimo do oppidum pré-romano, Sellium ou Seilium, tornando-o, porventura entre 16 e 13 a.C., uma das 34 civitates estipendiárias criadas pelo Imperador Augusto, estatuto político-administrativo que o Forum denota». Isto nos informa, já no presente ano de 2006, Manuel Joaquim Gandra, in «Tomar, capital do Mistério» (cap. VII do seu livro O Projecto Templário e o Evangelho Português, ed. Esquilo, p. 195). E o mesmo autor, depois de discorrer sobre a antiga urbe e sempre suportado por extensa bibliografia, acrescenta um aspecto que pode de certo modo lembrar Abrantes: «O ponto estratégico de vigia e defesa situar-se-ia na colina do Castelo, oppidum calcolítico transformado pelos romanos em acampamento ou fortificação, conforme cabalmente têm vindo a revelar as diversas sondagens realizadas, desde 1985, nas fundações dos Paços do Infante» (p. 196). Mas o mais importante para o presente estudo é o que vem a seguir:
    «A unificação política (em 585) e religiosa (em 589) da Península por Leovigildo, após a turbulência   provocada pelas invasões bárbaras, trouxe alguma tranquilidade à cidade que passara a albergar uma   comunidade paleocristã de indubitável importância, a aquilatar pelos vestígios materiais subsistentes. Em pleno século VII, a Divisão de Vamba (672-680) regista o burgo como paróquia da diocese conimbricense (...) apos o que se tornam parcos os informes disponíveis.
    Da presença muçulmana pouco se conhece, além de alguns topónimos e supostos usos e costumes  vagamente rastreáveis. E apesar de as fontes históricas não permitirem determinar sem margem para hesitações  a existência de um recinto amuralhado na colina do castelo, a própria fortaleza ostenta ainda hoje troços de  muralha da primeira cinta, elementos estruturais e vestígios ornamentais de origem islâmica, creditados ao  período Califal (séc. IX-X). [Vestígios materiais exumados dos Paços do Infante demonstraram a ocupação da colina por populações anteriores ao castelo templário, designadamente indígenas (cerâmica), romanas (moedas,   etc.), romano-germânicas (materiais cerâmicos, vítreos e metálicos, troços de muralha e pavimentos dos séc. VI-VII) e muçulmanas .com cerâmicas comuns, vidrada e esmaltada, e fragmentos de vidro, rede de saneamento,  paredes de alvenaria, pavimentos de terra batida e em tijoleira, etc, correspondentes a um núcleo habitacional — castelo/residência, situado sensivelmente a poente da actual alcáçova) — Sobre isto, cfr. sobretudo Salete da Ponte e Judite Miranda, «Castelo Templário e Convento de Cristo: ocupação paleocristã e muçulmana», in Al-madan,s.2, n.0 7, out. 1998, pp. 175-177].
    De resto, não é plausível a opinião de Herculano, segundo a qual o confronto entre cristãos e muçulmanos,  ocorrido em Tomar, em 1137, só poderia ter tido lugar em terreno aberto, pelo simples motivo de, sem qualquer  fundamento credível, o autor antes ter suposto Inexistente no local um castelo, de cuja evidência as sondagens  arqueológicas supracitadas não permitem doravante continuar a desdenhar.» (pp. 196-198).
    Ficamos, pois, cientes de que houve na vizinha Tomar um lugar central, com carácter protourbano e urbano — Sellium, depois Selio ou Sêlho, que evoluiu para Tomar, Também a lenda do  martírio de Santa Iria, cujo culto se propagou na época moçárabe, induz a pensar essa continuidade  (notar na lenda a forte ligação de Tomar/Nabão ao Zêzere e deste ao Tejo e a Santarém...). Perante isto, outro investigador, Manuel Sílvio Alves Conde, autor de Tomar Medieval — O espaço e os homens (1996), foi levado a admitir: «Poder-se-ia mesmo ter verificado uma evolução do lugar  central da região tomarense, agora moçarabizada, num sentido que diríamos pré-urbano [face à posterior vila e cidade]. Talvez o lugar central fosse já a colina da margem direita, mais defensável e de melhor vigilância sobre a rede viária». Também J. M. Santos Simões, em Tomar e a sua judiaria,  emitira já (em 1943) juízo semelhante: «Deveriam existir nestas margens do Nabão uma ou mais  povoações (...) seriam estas povoações habitadas por população árabe ou moçárabe (...) Na colina já existiria uma atalaia (...) uma medina com a sua cásba no alto». «Justificar-se-ia, assim,  acrescentou Alves Conde — a designação de Almedina [já referida no foral de 1 162], dada à principal porta da povoação intra-muros, pela qual se fazia a ligação à parte baixa da vila» 11.
    Por conseguinte, creio que não será mais possível falar em ermamento total da área tomarense e da margem direita do Zêzere nos séculos VII a XII, e muito menos como argumento para igual ermamento da área abrantina no mesmo período...

    - Torres Novas:
    Embora o passado desta vila/cidade, tal como Abrantes, permaneça ainda envolto em lendas e os levantamentos arqueológicos efectuados não revelem por enquanto especiais resultados no tocante  ao período pós-romano e alto-medieval, o seu castelo é geralmente apontado como uma reedificação de estruturas defensivas anteriores à Reconquista. Na toponímia local persistem nomes como Almonda (de enorme riqueza pré e proto-histórica, e também romana, ao longo das margens do rio e ribeiras  adjacentes), Alcoruchel, AlcorrioI, Alvorão, Arrife do Alqueidão, Assentis (este já em 1141), Castelo  Velho (em Riachos e na Serra d'Aire), Cabeço das Pias, etc.12

    - Ourém:
    Com povoamento também de épocas remotas, já existia antes da nacionalidade. Na toponímia encontramos termos como: Urqueira, Castro de Formigais (romanizado), Castelejo (Rio de Couros), Castelo de Caxarias, Espite (de castelo), Coinas (Atouguia), Alburitel, Alcobaça (outra), Aljustrel, Alvega, Alveijar, Alqueidão, Mourão, Porto Velho, Seiça (já em 1143), Aire e Alvaiázere (serras de), e... Fátima [donzela moura que, segundo a lenda, casou com o cavaleiro cristão Gonçalo Ermiges (ou Henriques), do séquito de D. Afonso Henriques, a qual depois se baptizou e tomou o nome de Oureana... donde a tradição pretende que adveio o topónimo Ourém] 13

    - Leiria:
    Nasceu esta vila medieva, hoje cidade e capital de distrito, a partir de Collipo, importante povoado romano (oppidum já citado por Plínio e capital de civitas, de matriz túrdula ou turdetana). Segundo nos informa o arqueólogo Carlos Batata, foram ali identificados já, no sítio do actual castelo, indubitáveis vestígios das Idades do Bronze e do Ferro. Sabe-se também que foram recuperadas do interior do castelo diversas e importantes lápides romanas, embora estas possam ter sido deslocadas das redondezas... Sabe-se também que nos séc. XI-XII havia uma mesquita e um bairro da Mouraria. Uma publicação oficial sobre os Castelos Medievais de Portugal, DGEMN, 1949, di-lo «reconstruído por D. Afonso Henriques, depois de conquistado aos mouros» (1135), e o actual site do mesmo organismo [www.monumentos.pt/] informa que é da I .a metade do século XII a construção do recinto muralhado, aproveitando possivelmente alcáçova pré-existente...
Apesar disso, há quem venha ultimamente afirmando que Leiria só foi fundada em 1135 e que o seu castelo é obra desse ano «afundamentis». Há de facto um texto da Crónica dos Godos (c. 11 85), que fala de um lugar de vasta solidão («loco vastae solitudinis in confinio Sanctarem et Colimbrie positum»), onde Afonso Henriques começou a edificar o castelo («cepit edificare castelum Leirene»)... Mas desde quando era lugar deserto? (...podia sê-lo apenas de alguma recente investida guerreira!). E quem nos garante que nesse local, entre Santarém e Coimbra, não havia mesmo ninguém? (...podia o autor da frase exagerar, para sobrevalorizar a acção afonsina, e querer dizer apenas que era uma zona antes pouco habitada!). Para tal, bem podia aproveitar-se um espaço já antes povoado... Por outro lado, se aquela Crónica diz aquilo, há Anais e códices de Santa Cruz de Coimbra que afirmam ter Afonso Henriques filhado o castelo aos Sarracenos (mouros), e isso mesmo afirmam todos os cronistas desde Fernão Lopes, a Duarte Galvão e Acenheiro.
    Aguardemos, pois, para essa cidade e seu castelo, por novas pesquisas... pois quer-nos parecer que a Arqueologia não deu ainda cabal resposta à "lacuna" visigótica e moçárabe...

    - Sertã:
    Aqui apareceram já, no ponto mais adequado ao início e desenvolvimento do povoado medieval — o seu castelo —s inequívocos testemunhos árabes: «...um grupo de cerâmicas árabes que não deixa margens para dúvidas», datáveis dos séculos X-XI (Carlos Batata, Carta Arqueológica do Concelho da Sertã, 1998, pp. 74-77, e artigo «Castelo da Sertã é de origem árabe», in A Comarca da Sertã, de 26.12.1997).

    - Castelo Branco e Idanha-a-Velha:
    É hoje fora de dúvida que houve no sítio do castelo de Castelo Branco e nas suas proximidades, envolvendo o triângulo de Mércules (área conjunta que nos primórdios da nacionalidade se designaria por Cardosa), povoamento de longa data, desde o Bronze Final... A historiografia mais recente, porém, ainda se divide quanto à sua fundação: situam-na uns «a plena luz, nos alvores da nacionalidade», com origem «numa pequena povoação chamada Moncarche —palavra de raiz latina,  arabizada, a significar "Monte Castro", natural reduto de cristãos [moçárabes] que se mantiveram  na sua fé sob o domínio sarraceno» (AL. Pires Nunes); presumem-lhe outros uma origem castreja (luso-romana) com influência islâmica pré-nacional (João H. Ribeiro, com base nas escavações por si promovidas no interior da estrutura castelar de 1979 a 1984 e em que o autor diz ter achado  «diversos vestígios de cerâmica romana em contexto fechado» e... «ceramicas islâmicas», «testemunho  islâmico inconfundível» Mas, a meu ver, o núcleo urbano regional com maior influência sobre Abrantes terá sido Idanha-a-Velha, a Civitas Igaeditanorum. Próspero município romano, foi depois Egitania, provável berço do 30.0 rei visigodo Flávio Vamba (672-680), capital de bispado com sua basílica-catedral e  sede de kura muçulmana (Antaniya) com sua mesquita até à Reconquista, que fez dela novamente sede de diocese até 1199. E de tal modo foi importante para Abrantes esta antiga cidade portuguesa que, apesar de a sede de diocese ter sido transferida para a distante Guarda (nova Egitânia), a jurisdição episcopal sobre o território abrantino continuou até quase aos nossos dias. Para além disso, não podemos esquecer que os mais antigos limites do castelo (ou termo) de Abrantes corriam,  a Norte, «desde o Zêzere onde entra no Tejo (...) até ao termo da Idanha» 15
   
Em suma, parece que a vasta região central dita ermada sob o domínio islâmico, afinal, não era assim tão erma e nem os mouros eram assim tão repelentes e destruidores como alguns os pintam!. Contudo, não pode negar-se que a corelação de forças na vasta região entre Mondego e Tejo,  tenha passado por uma fase de grande instabilidade na primeira metade do século XII. Sabe-se que Leiria, por exemplo, foi (re)tomada pelos mouros em 1137, reconquistada pelos cristãos em 1139 (mesmo ano da batalha de Ourique), reavida pelos mouros em 1141 e novamente reconquistada em 1145. Em Tomar, sabe-se terem os cristãos sofrido igualmente duro revés em 1137, tendo Afonso Henriques depois contra-atacado e chegado até Torres Novas.
    O ano de 1147, data da conquista de Santarém, deve ter sido o ano da fixação da Linha do Tejo. Só depois disso se terá avançado para Sul, para terras como Alpiarça, Almeirim, Coruche (Quluy ou Akelych) 16, etc.

    E em Abrantes?
    Já existiria povoação com este nome ou semelhante sob o domínio muçulmano? Afinal, houve ou  não, também por aqui, povoamento mourisco? Ou será que o castelo e toda a sua jurisdição esteve morto esses séculos todos?
    Vejamos o que a Arqueologia tem para nos dizer.
    Até agora apareceram, no Castelo e imediações, os seguintes indícios:
    - Um fragmento cerâmico de características islâmicas (de superficie exterior alaranjada, sobre o qual se aplicou uma decoração pintada a branco, bandas horizontais e verticais aparentemente definindo um espaço em que se inscreve uma retícula oblíqua, e que poderá ser de época califal — séc. X); foi encontrado na capela-mor da igreja, nas mini escavações de 1986, por mim solicitadas [cfr. Susana   Coreiaet alii, Arqueologia, n.0 18, 1988, p. 174—É de notar que a reduzidíssima área escavada (c. 2 x 3) não era de molde a permitir grandes ilações: ao abrir-se a sepultura 08, foi-se até à rocha, para ganhar profundidade e caixa consistente, não podendo por isso esperar-se que existissem ali camadas de eras anteriores; se algum resíduo havia, foi revolvido no século XIII, como terá sido o caso deste fragmento, surgido num nível de remeximento].
    - Fragmentos de cerâmicas pintadas, recolhidas recentemente numa sondagem realizada na explanada exterior do Castelo (espaço do antigo Heliporto) e «indubitavelmente islâmicas», segundo informação da Dra Filomena Gaspar, a quem muito agradecemos [notícia da intervenção na Gazeta do Tejo de 7.7.2005; amostragem de materiais no Museu D. Lopo de Almeida, Setembro-Outubro de 2006, integrada na Exposição "Abrantes Islâmica"];

Fragmentos cerâmicos da exposição " Abrantes Islâmica", patente ao público no Museu D. Lopo de Almeida, desde 22.09.2006

    - Fragmentos de cerâmicas pintadas, recolhidas mais recentemente numa escavação de emergência no Largo da Ferraria, num contexto onde também apareceram silos, tudo atribuível ao mesmo período (islâmico), séculos X-XI; isto segundo informação da mesma arqueóloga, confirmada pela mesma Exposição atrás citada.
    Haveria no interior do Castelo, ou sob os fundamentos da igreja de S. Vicente, uma mesquita, conforme reza a tradição? Ter-se-ia Abrantes, por esse tempo, chamado Libia como pretendem certos autores antigos? Não é possível atestá-lo, pelo menos por enquanto.
    Depois... naturalmente que veio o templo cristão, da invocação de S.ta Maria do Castelo, com a respectiva necrópole no seu interior — escavação parcial em 1986, prolongada depois também ao exterior17. Dela nos chegaram, pelo menos, duas cabeceiras medievais de sepultura, que se guardam no Museu18 .
    E na Toponímia, o que ficou? Não é abundante a listagem, mas alguns vocábulos persistem com alguma conotação arábica: Alcamim, Alconchel, A (fanzira, Alferrarede, Almuinha,AIvega, Arcez, Mouriscas; outros constam mesmo da mais remota documentação medieva, como Alcolobra [de al+colubra ou colobriga Almeijão [esta resultante, segundo uns de Meigion ou Meison, a partir do étimo romano mansio = estalagem, albergue, ou segundo outros do árabe al-meg = vau, numa velha estrada que ligaria Tancos-Arrepiado (ou outro porto do Ozêzere, Pai de Pele ou Punhete?) a Ponte de Sor], Arrecç/è [de al-rasif, estrada —Ver citação adiante]), e o próprio Ozezar [a partir do árabe od? (rio) +??]...
    Ainda assim, têm alguns contraditado: «Mas, Abrantes não vem mencionada em nenhuma das crónicas árabes!»... Mas será isso prova de que não existia? Há alguns povoados que não são citados nessas fontes e contudo sabemos que existiam... Bem poderia Abrantes ser uma pequena povoação, que por força das frequentes lutas entre cristãos e mouros tivesse ficado quase despovoada ou mesmo temporariamente despovoada, como aconteceu com muitas outras terras naqueles tempos de incerteza.
    Agora, do que não podem restar dúvidas, após as recentes revelações trazidas pelas sondagens arqueológicas, é que houve efectiva presença de populações islâmicas no morro do Castelo e à volta dele, antes de Afonso Henriques.

    Abrantes na documentação escrita/medieva 
    A primeira referência toponímica, conquanto algo duvidosa, vem grafada num documento de 1153. Trata-se da carta de venda de uma herdade situada algures "em vila de Aiantes" (ou Alantes Ablantes?), feita por um Martinho Moniz e sua mulher Emezinda Maftins a D. Teotónio, prior de Santa Cruz de Coimbra19. É fora de dúvida que o mosteiro de S.ta Cruz possuiu, desde muito cedo, bens em Abrantes; mas uma impertinente dobragem do pergaminho, coincidindo precisamente sobre a segunda letra daquela palavra, impede uma leitura definitiva. Mas vila... que outra vila desse nome haveria naquela data?.
    Afora isso, é do ano de 1173 o documento mais antigo que se lhe conhece — a tão citada carta de doação do castelo de Abrantes [castelum de Ablantes] com seus termos, por D. Afonso Henriques, à Ordem de Santiago (Documentos Medievais Portugueses = DMP, p. 417). E nunca será demais  notar, nela, a vastidão do território ou termo:
    "(...) Pelo Zêzere, onde entra no Tejo, seguindo pela margem (direita) do Tejo até ao termo da Idanha; e além do Tejo pela cumeada sobranceira à vinha dos freires do Templo, e daí como vai por aquela cumeada sobranceira à mata de Alcolobra até meter no Arracetè, no Almegião, até à Ponte de Sor 20, e daí como corre o rio Sor para montante até à cabeça de Algude, e daí às cortaduras de Marvão, conforme vertem no Sever, e torna ao Tejo".
    Era, na verdade, um extenso território este, que resultava do desmembramento, na margem direita do Tejo, do termo da velha Idanha [Egitania >Antaniya - sede da importante kura (distrito muçulmano em que Abrantes se integrava)], que abrangia grosso modo os actuais concelhos de Constância, Abrantes, Sardoal e Mação, e, na margem esquerda, alastrava até à fronteira castelhana,  englobando, para além de Constância Sul, Abrantes e Gavião, os actuais concelhos de Ponte de Sor (parte), Nisa, Castelo de Vide e talvez Marvão.
    Ora, pode perguntar-se: como seria possível uma povoação acabada de fundar, ou com pouco  mais de 20 anos, tivesse um domínio tão extenso, a limitar e ombrear com os termos da velha cidade  de Idanha, de Tomar (Sellium/Seilio) e de Santarém (a velha sede do conventus escalabitano e cidade de Xantarin)? A própria concessão do foral afonsino em 1179 (não por acaso no mesmo  ano dos forais de Lisboa e Coimbra!), é por si outro indício da importância de Abrantes. E se com isto tivermos em conta a forte incursão almóada sobre o mesmo burgo... há que convir que Abrantes não era uma povoação qualquer...
    O texto medievo seguinte refere-se ao importante e rendoso caneiro de pescaria do Tejo, doado por D. Afonso Henriques — eventualmente por ter sido ele o conquistador [como admite Almeida Fernandes] — aos monges de Lorvão, talvez por volta de 1150, e depois renovado em Maio de 1176 ao abade D. João, do mesmo modo que o tinham possuído os abades anteriores («canale de Avlantes cum suis terminis quomodo eum tenuerunt omnes antecessores vestri, monasterio laurbanensi et vobis Iohanni eiusdem monasterii abbati» (DMP, doc. 331, p. 432).
    Seguem-se-lhe: uma referência de Outubro- 1176, num testamento de uma D. Queixaperra, pelo qual esta senhora doou ao mosteiro de Lorvão umas casas que possuía em Ablantes, na freguesia de S. João, e uma vinha na Pucariça (Rio de Moinhos?); outra referência numa carta de venda da mesma data, a umas casas situadas no «castelo de Ablantes», feita por um Mendo Guedaz ao mesmo mosteiro de Lorvão; outra, do ano 1178, a um território abrantino (Martinchel) que de algum tempo atrás estava sob o domínio administrativo de Santa Cruz de Coimbra, onde existiam uns caneiros de pesca no Zêzere (...et suis canariis quae habemus in flumine de Ozezar in loco qui dicitur Martimchel...); e uma outra, de Fevereiro-1179, ao legado de 22 mil maravedis no testamento do Rei, depositados no mosteiro de S.ta Cruz de Coimbra, para deles serem distribuídos mil pelos pobres de diversas vilas desta região, e entre elas Abrantes [«...pauperibus qui sunt Sanctaren, et in Coluchi, Avlantes, Tomar, Turres Novas, Ouren, Leirena et in Palumbar (Pombal), mille ms...» (DMP, p. 436)], demonstrando assim que esta povoação à beira-Tejo não era uma terra qualquer, nem de fresca data: teria gente de todos os estratos sociais, ricos, remediados e... pobres.
    Só depois de tudo isso nos chega, em Dezembro de 1179 e em circunstâncias bem definidas (lembrar o cerco e destruição provocados pelo célebre Ibn lacub, filho do miramolim de Marrocos, dois meses antes), o documento referencial por excelência da vila e concelho: o Foral, a mandar restaurare Ablantes atque populare (DMP, doc. 340, p. 451). A referir o nome da vila, vêm posteriormente outros documentos, como o foral de Palmela, de Março de 1 185, com a particularidade de aí se grafar Albantes (decerto um lapso do escriba). Ainda do século XII vem o topónimo referido na Crónica dos Godos, uma vez mais sob a designação arcaica «Ablantes». E as citações podiam continuar (pelo menos mais umas duas dezenas), e quase invariavelmente...
    Donde, uma dedução me parece e se impõe como óbvia: Abrantes já devia existir antes das campanhas afonsinas na região entre 1 137 e 1147. Quanto à origem do topónimo, crêem uns que derivou de Aurantes ou de um suposto «aurum ante», pelo muito (?) ouro colhido nas areias do Tejo; outros que derivou de «ablad-antes» (imaginada disputa com os de Torres Novas numas cortes), de Abranches (cidade de tribo celta do Reno), ou de um qualquer étimo com base em Abraham... Mas, conforme já afirmei noutras ocasiões, o seu processo filológico, que — teremos de reconhecer — ainda continua algo misterioso, só tem, a meu ver, uma matriz possível e essa é ABLANTES, a sua mais antiga designação documental, que consta de tantos textos do século XII. Sobre ela escreveu um dia Alfredo Pimenta, opinando que derivaria do primitivo castelhano a significar «ao largo, vasto horizonte e comandamento em todas as alturas vizinhas». Será uma pista. Entre outras...
    Mas repito aqui a objecção de há pouco: Não vem a tema, com esse ou nome parecido, mencionada nas crónicas godas ou árabes? Até agora, nada se encontrou, é certo. Mas a história não é apenas a documentação escrita... Há a documentação arqueológica. toponímica... e etnográfica (como a Lenda de Zahara). .. E existe também a nossa capacidade de reflexão e análise prospectiva — Não confundir com invenção, especulação ou combate ideológico!. .. O que não invalida que concedamos a D. Afonso Henriques um relevante papel no repovoamento da vila (ou até "refundação", se quiserem)... Isto mesmo afirmou, por outras palavras, o medievalista autor do interessante artigo da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira:
    «Não é rejeitável que Abrantes (pelo próprio topónimo. que é sem dúvida alguma pré-nacional, Avlantes ou Aulantes no século XII), atentas as circunstâncias históricas gerais enunciadas, constituísse, já em tempo dos Mouros, uma localidade povoada e fortificada; mas o que deve considerar-se é que o seu principal repovoamento e fortificação foi obra de D. Afonso Henriques, posterior à tomada aos Mouros (em 1148 ou data vizinha)...
    E volto à velha questão (conforme já há anos escrevi), no auge de uma polémica sobre a fundação de Abrantes:
    «Será isto, então, suficiente para presumirmos uma maior ou menor continuidade da ocupação do morro do Castelo desde os tempos pré-históricos até aos nossos dias?
    Os distintos arqueólogos Dr. João Manuel Bairrão Oleiro (em «A propósito de alguns materiais arqueológicos recolhidos no Castelo de Abrantes», in Vida Ribatejana, Jan,0 1951) e Dr.a Maria Amélia Horta Pereira (nas Actas das IJornadas Arqueológicas, vol. II, Lisboa, 1969, p. 261 , e numa entrevista ao semanário Noticias de Abrantes de 25.1.1985) garantem-nos que sim. O primeiro dos trabalhos citados teve mesmo como fim «realçar a continuidade da ocupação do morro, tendo como base apenas os testemunhos arqueológicos».
    Houve quem, entretanto, reagisse a esse entendimento [E. Campos, 1984] por considerar insuficientes os  dados da Arqueologia e pelo facto de o foral dado a Abrantes em 1179 ser do tipo dos "perfeitos", daí  concluindo que toda esta região era território ermado em tempo da Reconquista. A esta observação respondeu já o Prof. Borges Coelho, um dos nossos melhores arabistas e medievalistas: «Mas deixemo-nos disso. Desde o século XII que aparecem concelhos perfeitos, centrados em regiões anteriormente muçulmanos: Lisboa, Coimbra, Abrantes, Evora, etc.» (in História e Critica, n.o 12, Maio de 1985, p. 7).
    Seja como for, não há dúvida que os elementos de prova de uma ou outra tese são ainda escassos, pelo que deveremos aguardar serenamente os resultados da única via científica capaz de no-los dar: a Arqueologia.»
    Isto deixei escrito num folheto editado a 18.5.1986 pelo Museu D. Lopo de Almeida, de que  então era co-responsável. De então para cá, na falta de uma intervenção arqueológica de fundo mas em face da evolução das investigações pontuais, minimamente sob o ponto de vista científico, mais alicercei em mim a convicção que sempre tive e manifestei.
    Também me parece que ia nesse sentido o pensamento da historiadora que até hoje melhor estudou o passado medieval de Abrantes — a Prof.a Hermínia Vasconcelos Vilar, in Abrantes  Medieval (séculos XIV-XV), pp. 10-11. Embora não querendo meter mãos a fundo na questão das origens de Abrantes (pré-existência ou não de uma comunidade permanente, questão que considerou como «algo aleatório e passível de diferentes interpretações consoante os pressupostos ideológicos subjacentes»), acabou por rematar, depois de se referir concretamente à conquista da povoação em 1147 por Afonso Henriques, no mesmo ano de Lisboa e Santarém:
    «Neste contexto, mais lógica nos parece a possível sobrevivência de comunidades rurais na zona, apesar das vicissitudes primeiro do domínio muçulmano e depois da reconquista, ainda que não formalizadas, provavelmente, em núcleos humanos de grande dimensão. O foral de 1 179 define um quadro mais completo do que o simples desejo de povoar Abrantes. Do seu conteúdo extraem-se regras de sociabilidade entre vizinhos, elementos da estrutura social vigente com referência a cavaleiros, peões, hortelãos, quarteiros e solarengos, principais produções agrícolas e actividades dominantes».
    Se Abrantes aparece com nome próprio logo em meados do século XII ou pouco depois, com castelo, com caneiro, objecto de grandes doações, com amplíssimo território, só comparável a Idanha e Santarém... é porque já devia existir antes. Tomar (Sélio, Sêlho ou Cera), por maioria de razão, também existiria, porque há provas dessa povoação muito antes da reedificação do seu castelo em 1160; Torres Novas existia antes do foral de 1190 (veja-se o testamento do nosso primeiro rei); Almourol revelou já vestígios anteriores a 1171 , tal como o castelo do Zêzere junto a Constância; e por aí fora.
    E mesmo em Abrantes, em 1173 já havia a paróquia de S. João (confirmada documentalmente), e decerto também as de S. Vicente e Santa Maria (pela tradição e arqueologia), sendo possível até que mais igrejas existissem, como as de S. Pedro, S. Tiago e da Senhora da Ribeira... De resto, não é crível nem admissível que tanta vida brotasse tão repentinamente e tão espontaneamente por toda a região, como que se de uma explosão demográfica se tratasse, ou então de um alguma miraculosa intervenção divina...

     A concluir
    Enfim, resumindo e concluindo, e pelo pouco que fica dito, compreenderá o leitor que, relativamente às origens, não posso concordar— nunca pude! — com ideias preconceituosas tendentes a fazer de Abrantes um produto puro e acabado da chamada Reconquista Cristã, ou seja da vontade única e da acção estratégica de um único homem, Afonso Henriques, que a teria fundado ex nihilo (do nada)... Como se não tivesse havido antes um elo milenar de ligação, um fio condutor de múltiplas gerações anteriores.
    É certo que ninguém de bom senso poderá negar o importante papel do rei Fundador da nacionalidade; ou de seu filho, Sancho I, que até ficou cognominado de Povoador e também terá tido o seu relevo nesta região... Poderão alguns levantar algumas reservas ao período imediatamente anterior, o ainda mal conhecido domínio mouro (a que alguémjá denominou, para esta região, como uma espécie de "domínio árabe sem árabes"), em virtude da falta — até há pouco — de vestígios materiais e civilizacionais fortes e inquestionáveis. Poderemos ainda ser levados a admitir que a vila tenha sido um caso de "duplo nascimento" ou dum "renascimento" (conforme já se admitiu para Leiria, com Afonso Henriques, e Tomar com Gualdim Pais)...
    Mas, de tudo o que fica dito — e até do próprio contexto da Lenda — creio poder induzir que Abrantes, pesem embora as incertezas que o nome ainda suscita, será anterior aos afonsinos. Mais. A sua história não se poderá escrever sem a incorporação nela do Castelo, seu monumento primeiro e polarizador, sem mesmo começar por ele, e esmiuçá-lo... Ele é o seu monumento primacial, diremos até que fundacional e nuclear, porque nele começou a existir o núcleo urbano; primeiro como povoado das Idades do Bronze e do Fero, mais tarde como oppidum ou fortalatium romano e pós-romano, eventualmente como alcácer ou atalaia muçulmana, até castelo da "reconquista" e da estratégia  afonsina da linha do Tejo, génese do burgo e vila medieval, matriz da cidade moderna.
    E, assim sendo, a publicação que despoletou este artigo — A Lenda de Abrantes ou a história de Zahara — e como frequentemente acontece neste tipo de literatura oral/tradicional (a que alguém já chamou "poetização de sucessos autênticos"), é preciosa, porque pode trazer-nos no seu íntimo   alguns laivos de autenticidade, de identidade... e da verdade histórica que almejamos.

Bibliografia Principal
ALARCÃO, Jorge de, "Notas de Arqueologia, epigrafia e toponímia — II", Revista Portuguesa de Arqueologia, 7, n.0 2, 2004.
BRAZÃO, Fernanda (investigação, recolha e textos de), Lendas Portuguesas; vol. 4, ed. Amigos do Livro e Multilar, Lisboa, 1982 e 1988.
CAMPOS, Eduardo, Notas Históricas sobre a Fundação de Abrantes, ed. Câmara Municipal de Abrantes, 1984 (3.a ed. 1995).
CORREIA, Susana, et Alii, «Intervenção arqueológica em Santa Maria do Castelo, Abrantes», Arqueologia, n. 0 18, 1988, pp. 167-174.
Documentos Medievais Portugueses — Documentos Régios (dir. de Rui de Azevedo), vol. I, t. I, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1958.
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (artigo não assinado, mas atribuível ao medievalista A. de Almeida Fernandes), Lisboa, s/d, pp. 483-487.
MORATO, Manuel António, Memória Histórica da Notável vila de Abrantes, ed. C. M. Abrantes,  1981.
OLEIRO, Diogo, «Abrantes —Notas históricas», in Abrantes Cidade Florida, Abrantes, s/d (1952?),  pp. 5-60.
SILVA, Joaquim Candeias, «Epigrafia romana de Abrantes — Quatro textos em questão», Trebaruna, Castelo Branco, 1981, pp. 9-24.
SILVA, Joaquim Candeias e CAMPOS, Eduardo, Dicionário Toponímico e Etimológico do  Concelho de Abrantes, ed. C. M. Abrantes, 1987.
SILVA, Joaquim Candeias, BATISTA, Álvaro e GASPAR, Filomena, Carta Arqueológica do  Concelho de Abrantes, ed. C. M. Abrantes (no prelo).
TORRES, Cláudio, «O Garb-Al-Andaluz», in História de Portugal (dir. José Mafioso), Estampa, pp. 361-437, Lisboa, 1993.
VILAR, Hermínia Vasconcelos, Abrantes Medieval (séculos XIV-XV), ed. C. M. Abrantes, 1988.

Notas

* Membro da Academia Portuguesa de História e do CEHLA.

1 Anote-se que Lenda difere substancialmente de outros géneros similares, como mito, conto, fábula. romance, ou història. Na definição de Van Gennep, geralmente aceite, trata-se de «uma narrativa cujo local se indica com precisão, cujos personagens são indivíduos determinados, cujos actos têm um fundamento que parece histórico e são de qualidade heróica». Em relação ao mito, ela distingue-se pelo significado do conteúdo, pela essência dos personagens e pela localização temporal dos mesmos (a lenda situa-se tão-só entre humanos e raramente vai além dos começos da era cristã, enquanto o mito se estende pela pré-história e vai muito além da normalidade humana). No plano da valorização, sobretudo para a história-ciência, a lenda vale sobretudo pelo tema e não tanto pela forma como é contada.
2 D. Frei João (Pinto) da Piedade, nasceu em Abrantes entre 1563-1564. Ingressado na Ordem de S, Domingos, viria a ser apresentado como bispo da China (Macau) em 30.8.1604, passando nessa qualidade a pertencer também ao Conselho dos Reis de Portugal. Segundo uma Sumária relação do que obraram os religiosos da Ordem dos Pregadores, guardada na Biblioteca Nacional, «passou à India em companhia do rev- Padre Fr. Jerónimo de S. Tomás, e leu muitos anos Teologia no convento de S. Tomás, onde foi prior, e depois no de S. Domingos pelos anos de 1600 E depois de assistir na Congregação dezasseis anos, tornou para Portugal; e estando recolhido no convento de S. Paulo de Almada, foi dele bem contra sua vontade e, obrigado da obediência dos prelados, tirado para bispo da China, por nomeação de el-rei Dom Filipe 2.0 de Portugal. E partindo para esta sua igreja, chegou a Goa a tempo que o vice-rei D. Martim Afonso de Castro ia a socorrer Malaca, que os Holandeses tinham cercada, e em sua companhia se embarcou com outros religiosos da Ordem que iam na mesma armada, onde foi muito o que trabalhou na cura dos enfermos. Regressado ao reino e à sua terra natal, nesta passou os últimos anos da sua vida, estando a sua presença atestada como padrinho em dois registos de baptismo em 1623 (S. João). Faleceu em Abrantes, a 28.6.1628, contando então 64 anos, em casa de sua irmã Maria Pinta, que vivia na Rua da Fonte (hoje Monteiro de Lima), e foi a sepultar no Convento de S. Domingos, no antecoro da igreja (S V, M3, fl. 228 Vi). Na cerimónia das exéquias que então se fizeram por sua alma, pregou o dominicano também natural de Abrantes, Frei Pedro de São João, seu sobrinho, sermão que foi impresso (Bibl. Lusit., III, p. 271). Enquanto permaneceu em Abrantes, o bispo poderia de facto ter redigido os ditos Apontamentos acerca das antiguidades abrantinas, hoje desaparecidos. E embora sobre eles recaia a suspeição de falsidade, 0 certo é que o monógrafo Manuel Morato várias vezes afirmou tê-los visto em Évora e deles transcreveu largas passagens na sua Memória Histórica da Notável Vila de Abrantes (obra redigida de 1860 a 1865 e publicada pela Câmara de Abrantes em 1981). O texto contendo a lenda de Zahara foi entretanto aproveitado e divulgado por outros autores, designadamente Diogo Oleiro.
3 Cf. Saul António Gomes, Introdução à História do Castelo de Leiria, 1995, p. 61. Nesta lenda (que não poderia obviamente incorporar 0 "Abre-Antes"), Zara "via" o mato das cercanias leirienses a andar, levado pelos guerreiros que sorrateiramente vinham a tomar o castelo...
4 Cf., entre outros, Santos Mota, «Valor histórico-cultural do castelo de Soure», Livro do I, 0 Congresso sobre monumentos militares portugueses, 1982, pp. 166-168; Leontina Ventura, «Soure na sua História: Algumas reflexòes», sep.a de Locus, n. 0 1, 1986, pp. 3940; e Mário Jorge Barroca, «Do Castelo da Reconquista ao Castelo Românico (séc. IX a XII)», Portugalia, Porto, 1990-91, pp. 101-103.
5 Na Carta Árqueológica do Concelho de Constância, 2004, p. 165 (nota 26), Álvaro Batista avançou já alguns dados, concluindo que «É essencialmente a partir do Bronze Final que esta área vê nova modificação no âmbito do povoamento ou o seu consolidar, com O surgir de povoados baixos (excepção para o Castelo de Abrantes), cuja indústria cerâmica e metálica está bem representada». E mais adiante, já no contexto da Idade do Ferro (p. 167), realça o mesmo autor duas estações que podem indicar a existência de povoados fortificados na zona, sendo um deles o Castelo de Abrantes.
6 Foi por mim pub.a , de parceria com José d'Encarnaçäo, no «Ficheiro Epigráfico» (suplemento da Conimbriga), n. 0 67, inscrição n. 0 301, em 2001.
7 Álvaro Batista, Carta Arqueológica do concelho de Constância, pp, 175 (nota 33), 185 (nota 42) e 195 (final da nota 51); Carlos Batata, Origens de Tomar.... pp. 75 e 94, e Idade do Ferro e romanização entre os rios Zêzere, Tejo e Ocreza, dissertação de mestrado apresentada à Univ. Coimbra, 2002, em vias de publicação).
8 Tem-se escrito, e eu próprio já colaborei nisso, que o local de achamento da famosa placa (lâmina) foi a confluência da rib.a da Lampreia com o Tejo, o que não é de todo exacto. O que o detentor e divulgador da placa, Jorge Cardoso (1666), escreveu foi que ela se achou perto de Alvega e de um aqueduto que lá existia junto ao Tejo (e ainda existe), «por onde a água vinha ter à cidade, tirada com artificio de uma caudalosa ribeira que lhe fica perto, não falando doutra que vem do alto buscar o Tejo, na qual se achou no ano de 1659 uma famosa lâmina Ora, se a ribeira caudalosa e mais próxima do aqueduto parece ser a da Lampreia, já a "outra que vem do alto" e se junta àquela será a da Represa, assim chamada por nela existirem os restos de uma barragem-represa, dita romana, e que também serviria de ponte... Passaria por aí perto o limite territorial, tal como actualmente acontece. De resto, parece haver algum exagero nos testemunhos antigos acerca dos achados arqueológicos de Alvega, que hoje não se comprovam, caso dos muros argamassados em redor que acolheriam dentro 4 a 5 mil pessoas!...
9 Em várias publicações suas e já em carta pessoal, datada de Coimbra, de 29.4.1991: «Parece-me, todavia, que a leitura Tacuåb, de Ptolemeu, será mais correcta, e julgo que se relaciona com o nome do rio Tag-Tac (Tggus), com a terminação -_hjs, presente em Scallabis, Saetabis, e outros locais da periferia maritima da Península Ibérica».
10 É bem conhecido o testemunho de Fr. Claude de Bronseval, que por aqui transitou vindo de Tomar, em 1532, tendo visto colunas miliárias. Vejam-se também os achados aduzidos por Mário Saa (in Grandes Vias, I, 1957, pp. 171 e 237-241), sobretudo do Arripiado, ou por António Domingues Simões Coelho (Numária da Lusitânia, 1972, p. 53, com localização de Tubucci em Tancos). Recentemente vieram noticiados do Arripiado mais alguns achados. por via da abertura de fossas na parte ribeirinha (cf. semanário O Mirante, de 26.7.1994, p. IO). E, já agora, considere-se também o novo miliário do Crucifixo...
11 A bibliografia tomarense é vastíssima, mas permitam-me que registe aqui mais alguns estudos abonatórios, como História de Tomar, de Amorim Rosa, vol. I, Tomar, 1988 (2.a ed.); Sellium, Tomar romana, de Salete da Ponte, Tomar, 1989; «O urbanismo medieval da cidade de Tomar», de Maria João Ferreira e Teresa Duarte, Boletim Cultural, da C. M. Tomar, n.0 16, 1992, pp. 123-149.
12 Cf., entre outros, Amélia Prata, «Contribuição para o estudo das estações arqueológicas do concelho..,», Techne, n.0 3, 1997, pp.49-82; Fernando de Almeida e O, Veiga Ferreira, «Antiguidades do Concelho de Torres Novas», Arquivo Español de Árqueologia, 1958, pp. 214-217; e ainda Artur Gonçalves, Torres Novas — Subsídios para a sua história, 1935 (este a precisar de uma revisão crítica, pois aí a fundação da vila/cidade é ainda atribuída aos gregos de Ulisses, com o nome de Neupogama = Nova Torre, aos Celtas de 308 a.C. ou aos romanos — com o nome de Nova Augusta)...
13 Cf., entre outros, Ourém, Estudos e Documentos, Ourém, 1982; Emília Isabel Mayer Godinho de Mendonça, Ourém Medieval, policop., Fac. Letras de Lisboa, 1993; Carlos André e Pedro Gomes Barbosa, Ourém na História e nas Letras, C.M. Ourém, 1995;  Lívio Correia, Descrição da Vila de Ourém, C. M. Ourém, 1999.
14 É vasta a bibliografia albicastrense, podendo para este efeito destacar-se os estudos, de José Manuel Garcia, «Epigrafia e romanização de Castelo Branco», Conimbriga, vol. 18, 1979, pp. 149-167; João Henriques Ribeiro e Leonel Azevedo, Os jardins do paço episcopal de Castelo Branco, 2001; A. L. Pires Nunes, Castelo Branco, uma cidade histórica, 2002: Castelo Branco — A terra e suas memÓrias culturais..., Héstia, 2004.
15 Doação à Ordem de Santiago, de II 73. Sobre a velha Idanha, cf., entre outros, O. Veiga Ferreira, «Subsídio para a carta arqueológica da região egitaniense», Setúbal Arqueológica, n. 0 4, 1978, pp. 227-241; Martim Velho, «O arrazamento da Idanha em 1133», Estudos de Castelo Branco, 1979, pp. 45-47; Pedro Salvado, Elementos para a cronologia e para a bibliografia de Idanha-aVelha, 1988; e Cláudio Torres, «A sé catedral da Idanha», in Arqueologia Medieval, n.0 1, Porto, 1992, pp. 169-178, e Materiais, Castelo Branco, n.0 0 (v.2), 1996, pp. 45-52.
16 Cf. Margarida Ribeiro, Estudo Histórico de Coruche, 1959, p. 26 e cap. IV (Dominação árabe).
17 De uma parte da necrópole interna deram já conta Susana Correia et Alii, Relativamente ao exterior, foram observadas recentemente mais algumas campas medievais, aquando da reparação do pano da muralha Norte que desabara.
18 Dos antigos inventários arqueológicos do Museu D. Lopo faziam ainda parte diversas outras peças, de época imprecisa. cujo paradeiro actual desconhecemos, designadamente: um fragmento de pote com asa vidrado a ocre e castanho na superficie interna, encontrado nas escarpas (n.0 160); uma candeia de barro em forma de taça, com orificio na parede exterior junto do bordo e parede posterior em bico, pasta amarela grosseira, aparecida nas escavações de 1969 (n.0 de inventário 161).
19 Cf. J. H. Pires de Lima, "O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no Século XII - Alguns subsídios para o estudo das suas relaçöes com os particulares", in Congresso do Mundo Português, Lisboa, 1940, vol. II, p. 447.
20 Este arrecefe é certamente uma velha estrada que ligaria à Ponte do Sor, passando ao lado do Tamazim e Água Branca. O casal do Almegiäo deveria situar-se na zona do Tamazim (actual freguesia de Bemposta). O topónimo ainda se atestava em 1625 (Arq. Hist. Abrantes, Actas  da CM Abrantes, n.0 5, fl. 121.       

 

Artigo publicado na revista Zahara nº8 - novembro 2006