Tramagal - 24 de Junho de 1754

Joaquim Candeias da Silva*

 

    Um território como o do Tramagal, com excelentes condições à ocupação humana na margem esquerda do Tejo, tinha forçosamente que ter sido habitado desde os confins da História. E na verdade são já conhecidos bastantes testemunhos arqueológicos que o confirmam; de momento, encontram-se cartografados os mais diversos elementos de cultura material desde o Paleolítico Inferior, com continuidade praticamente ao longo de todas as idades do Homem1.
    É, pois, muito provável que no dealbar da nacionalidade, ou escassas décadas após, já por aqui existissem povoadores: «...uma vinha que he no tamargal...» — é uma frase que podemos ler num registo do Livro das Kalendas (aniversários de falecimentos) da Igreja de S. Vicente, remontável ao século XIII, e que sem dúvida se refere ao termo de Abrantes. Aliás, é sabido que esse mesmo 'tamargal" voltaria a ser notícia nos séculos subsequentes, entre outras razões porque aí se caçavam porcos e veados, e junto dele havia um campo «em que mais pão e vinho se colhem», por isso considerado «uma das melhores cousas de Abrantes»2.
    De onde lhe viera o nome? A explicação toponímica parece consensual: havia por ali muitas tramagas, tramagueiras ou tramazeiras (no português arcaico um tamargal). De tal modo a planta fora abundante e perdurou, que nos meados do século XVIII, depois de contínuos arroteamentos, as Memórias Paroquiais ainda descreviam assim a flora local: «(A terra) não tem arvoredos mais do que algumas moutas a que chamão tarmagueiras, e pello interior alguns olivaes».
    O lugar do Tramagal manteve-se até 1754 integrado na vintena de S. Miguel dos Penosinhos (depois fundida com a do Rio Torto, onde se encontrava sediada a paróquia) e, como todas as terras assim qualificadas, era zelado civilmente por um juiz vintaneiro ou pedâneo, de eleição anual, sujeito ao governo das justiças da vila de Abrantes3. Encontrava-se, todavia, separado do Crucifixo, que formava uma vintena autónoma4, no eclesiástico dependente da freguesia de S.ta Margarida da Coutada.

    A criação da Freguesia

    Sabia-se de há muito, pelas Memórias Paroquiais de 1758, que o lugar do Tramagal fora erecto em freguesia no ano de 1754; e que num medalhão existente na fachada da igreja paroquial alguém chegou mesmo a inscrever a data «1.4.1754». Mas hoje é-nos possível acrescentar algo mais sobre essas origens. Na primeira folha (de rosto) do 1.º Livro de Baptismos da Freguesia do Tramagal (1754-1772) lê-se, a abrir, que «Neste livro se hão-de lançar os assentos de baptismo da nova paróquia de N. a S.ra da Oliveira do Tramagal (.. .)» — este intróito de três linhas encontra-se prejudicado pela afixação posterior de uma etiqueta classificativa, mas não oferece dúvidas — «(... )  os paro/chianos estavão antes da ereção da dita novaparochia /annexos ci Igreja de S. Miguel de Rio Torto, em cujos /livros (sendo necessário) se hão de procurar os termos dos / baptismos, e matrimónios athegorafeitos, e que sefìze/rem athe a Natividadepróximafutura de S. João Baptista / em que há de ter principio esta nova parochia. Abrantes / 26 de Mayo de 1754. /
a) O Vigário geral da Ouvidoria, João Baratta Rosa» (Vide reprodução do documento nesta página).

 

Primeira folha do Livro 1 de Baptismos do Tramagal, onde se menciona o princípio desta nova paróquia e freguesia (dia de S. João Baptista de 1754).

    Aliás, é de salientar o preciosismo do responsável regional pelos assuntos diocesanos, o vigário-geral da ouvidoria de Abrantes, que não se limitou a assinalar o dia de S. João de 1754 como entrada em vigor da nova paróquia / freguesia, mas quis acrescentar que era o dia da «natividade» do Precursor de Cristo; isto porque é nesse dia que o calendário litúrgico comemora o seu nascimento, enquanto a memória do seu martírio se situa em 29 de Agosto. E para que não restassem dúvidas, idêntico aviso ficou lavrado na 1.ª folha do Livro de Casamentos e Obitos (Mistos 1): «Há-de servir este livro para nele se lançarem os matrimónios e óbitos (...) — repetiu-se aqui a afixação da etiqueta identificativa que veio ocultar parte do texto — «(.. s) que sucederem athe / dia de S. João Baptista próximo futuro, em que há de / ter principio esta nova parochia do Tramagal. / Vay numerado, e rubricado por mim com minha costu/mada rubrica. Abrantes, 26 de Mayo de 1754. / a) O Vigário geral da Ouvidoria, João Baratta   Rosa» (Ver reprodução na pág. seguinte).
    Já tínhamos anteriormente anotado a existência destas escrituras oficiosas, que à falta de outras mais solenes ou oficiais podem bem servir de certidão de nascimento do Tramagal como freguesia5; mas elas aqui ficam agora em pública forma, para a história desta comunidade ou, como agora se diz, «para memória futura», e até mesmo como exercício pedagógico para uma melhor compreensão do tempo histórico6... Fica, por consequência, devidamente comprovada e documentada a verdadeira data do começo ou implantação desta importante freguesia do concelho de Abrantes, hoje vila, progressiva e próspera. Todavia, em História como noutras ciências, resolvida uma questão, várias outras se poderão colocar de seguida: Por exemplo, como e em que circunstâncias se deu a criação? A quem se deveu tal honra, se é possível individualizar contributos ou influências pessoais? E que interferência tiveram as populações locais?
    Pois bem, reinava ao tempo D. José (1750-1777), tendo por seu Secretário de Estado o poderoso Marquês de Pombal, enquanto no sólio episcopal se sentava D. Bernardo António de Melo Osório (17431772). Porém, nenhum diploma nos chegou de tão ilustres senhores. E é assim que, não se conhecendo qualquer documentação emanada do poder central, nem da sede diocesana, nem tão-pouco dos poderes intermédios (para além da nota atrás citada), em nosso entender se poderá com justeza atribuir uma parte significativa da honra de fundador efectivo da paróquia e freguesia do Tramagal ao seu primeiro pároco, o P.e Luís António Ferreira Bairrão, que até era natural destas partes.

 

Primeira folha do Livro 1 de Mistos - Casamentos e Óbitos, onde igualmente se menciona o princípio da nova paróquia do Tramagal, dia  de S. João Baptista de 1754.

   Com efeito, sabemos agora pela documentação recolhida que, tanto de facto como de direito, ele exerceu inteiramente a sua missão com todas as suas capacidades e energias até que a saúde lho permitiu, princípios, de 1803, ou seja, ao longo de quase cinquenta anos. Meio século!.. Poderia ter mudado de paróquia, por opção ou promoção, porque era cura movível, da apresentação anual do vigário de S. Vicente de Abrantes. Mas ficou. Para toda a vida. Ao contrário dos párocos seguintes e do que era habitual7


Imagem de N. a S.ra da Oliveira padroeira do Tramagal

 

Procurámos indagar também nos Livros de Actas da Câmara de Abrantes alguma referência do poder político-administrativo à separação ocorrida, algum contributo das vereações no sentido de abrir caminho à novel circunscrição territorial... Mas, estranhamente, nem uma linha, nunca ao longo do ano de 1754 0 nome do Tramagal vem mencionado; talvez porque a alçada sobre a nova freguesia fosse mais do foro eclesiástico. Em todo o caso, não deixa de ser um tanto misterioso este total silenciamento. Assim, perante o 1município, deve o lugar do Tramagal ter continuado por mais algum tempo ligado à freguesia de S. Miguel, que em 23.4.1754 tinha feito eleger os seus mamposteiros pequenos, tal como Santa Margarida da Coutada, e em 18.9.1754 ainda elegeu o seu juiz de 1vintena, o alfaiate Alvaro Pereira; isto talvez devido a algum impasse burocrático derivado da nova delimitação territorial, tanto que na posse do dito juiz micaelense se justifica a sua eleição «por, esta freguesia ser grande e dilatada». O primeiro termo de eleição a de um juiz para a freguesia do Tramagal só veio a ter lugar nos começos de 1755, com a posse em Câmara a 29.1.1755. Recaiu então a escolha na pessoa de Manuel Alvares Orvalho.
Por conseguinte, embora seja de admitir que para o desfecho da "criação" tenham convergido múltiplas vontades e interesses, mantemos a convicção de que o papel da hierarquia católica (e em particular do primeiro cura) foi decisivo. Ele não foi, seguramente, um mero agente passivo, com o papel de simples "disponível para o exercício do cargo", mas parece-nos antes ter sido alguém que, interpretando um sentimento colectivo, se terá disposto a servir de impulsionador. A Câmara apenas terá ido a reboque dos acontecimentos. E para que conste, aqui deixamos os nomes dos oficiais que então compunham o executivo municipal: Capitão Pedro Grandio Lamim, vereador mais velho e que pela Ordenação devia desempenhar também a função de Presidente do Senado e da Câmara; Bernardo Nogueira de Brito e Vasconcelos, vereador "do meio" e que acabou por fazer aquelas funções grande parte do ano, na ausência do anterior; Luís António Cordeiro de Sousa Serpa Frade e Almeida, vereador mais moço; António Cardoso de Amorim Pereira, chamado a vereador substituto; Manuel Soares Mendes, procurador do concelho; o escrivão da Câmara, Joaquim António Pimenta de Mendanha de Souto Maior; e os dois "mesteres da Mesa" (procuradores do povo), Manuel Rodrigues Açafate e Luís de Bastos8

    O primeiro pároco — P.e Luís António Ferreira Bairrão — quem foi ele afinal? 
    Filho segundo do 2.º matrimónio de António Ferreira Bairrão e do 1.º de Catarina Esteves, nasceu aos 20 dias de Março de 1719, no Crucifixo, freguesia de S.ta Margarida da Coutada, onde residiam seus pais, e foi baptizado na respectiva paroquial de S.ta Margarida a 10 de Abril, pelo cura João Pereira Duarte. Eram seus avós paternos Manuel Fernandes (ou Ferreira?) Bayrram, de Abrantes, e Isabel Fernandes, de Montalvo, também moradores no Crucifixo, e maternos Manuel Estevens e Maria Dias, naturais de S. Miguel do Rio Torto. Teve então por padrinhos o juiz dos órfãos de Abrantes e a mulher deste (Liv. B.2 de S.ta Margarida, fl. 123 v.).

Tramagal, casa da Família Bairrão: O Sr. Eng.o Luís Bairrão é o actual continuador de uma das mais antigas famílias tramagalenses - a do 1.ºpároco e presumível fundador da freguesia.

   Que estudos terá seguido, não sabemos ao certo. Consultada a Câmara Eclesiástica de Castelo Branco, apenas ali encontramos o processo de habilitações e ordens de um seu sobrinho-neto homónimo e com o qual não deve ser Confundido9. Concluídos aqueles, recebeu os necessários despachos e foi ordenado sacerdote em 1746. Presumimos que tenha então sido colocado numa paróquia da área de Abrantes; e, decorridos oito anos, uma vez comprovada a sua capacidade e competência, foi ele o escolhido pela cúria diocesana, decerto sob proposta do vigário-geral da Ouvidoria de Abrantes e com a concordância do interessado, para ir instalar a nova freguesia10. Acabaria por ficar durante 50 anos...
    Viria a falecerjá idoso, a 15 de Novembro de 1804, com o sacramento da penitência e extremaunção, «por não dar lugar a moléstia para mais», sem disposição testamentária, e foi sepultado dentro da (sua) igreja de N a S.ra da Oliveira, aonde era também "freguês", com missa de corpo presente e encomendação pelo novo cura, P.e Manuel Jorge. Por conseguinte, contava 85 anos de idade e 58 de vida sacerdotal.
    Do que foi o seu tão longo magistério, todos os indicadores de que dispomos apontam no sentido de ter sido um cura extremamente devotado à sua paróquia, cuidadoso em tudo que fazia, com registos sempre pontuais, muito bem elaborados e de boa caligrafia. Num tempo em que tanto a Inquisição como os visitadores diocesanos tudo controlavam, não detectámos nos livros paroquiais nenhuma repreensão. Ademais, também as respostas que deu ao inquérito pombalino de 1758 (vulgo "memórias paroquiais") se podem considerar modelares.
    Nada de concreto conseguimos apurar quanto à identidade do 1.º juiz pedâneo do Tramagal — Manuel Alvares havia vários (identificámos dez em cerca de 50 anos) e a família Orvalho dispersavase entre o Tramagal e S. Miguel. Havia mesmo um Manuel Álvares, nascido no Tramagal a 1.2.1697 e casado em 14.5.1732 com Maria Alvares da Silva, o qual viria a entrar na família Bairrão pelo casamento de uma filha (Caetana Josefa) com António Ferreira Esteves Bairrão (nascido em 1743, sobrinho do P.e Luís António Bairrão e pai do outro sacerdote homónimo)... mas nunca lhe vimos atribuído o apelido Orvalho11. Já quanto ao vigário-geral da Ouvidoria de Abrantes, Rev.0 Dr. João Barata Rosa, que nos parece ter tido igualmente alguma quota parte de responsabilidade na criação da freguesia, apura-se que era natural de Abrantes, que fora ordenado presbítero em 1748 e que foi depois cónego prebendado na sé da Guarda e seu provisor, juiz das habilitações, patrimónios, casamentos, etc. (era-o ainda em 1780).
    Fosse como fosse, e não obstante alguma nebulosidade que paira no processo de criação da freguesia, pressente-se que era forte e complexa a teia de relações do poder local que envolvia o primeiro pároco do Tramagal. Natural destes sítios e com inevitáveis interesses familiares neles, também patrimoniais, ele terá tentado criar—e criou — aqui um pólo de desenvolvimento que servisse de eixo intermédio entre dois velhos núcleos paroquiais existentes na margem sul do Tejo, Santa Margarida da Coutada e S. Miguel do Rio Torto; e isto sem esquecer que do outro lado estavam núcleos da maior importância como Rio de Moinhos, ou mesmo Abrantes e Punhete/Constância.

Hoje, analisando o percurso feito e a Memória dos dias andados, é oportuno um balanço, que é sem dúvida positivo. Um balanço com pés no presente e projectado para o futuro, mas que não vire costas ao passado. E por isso é tempo de honrar e — porque não — também homenagear os agentes desse percurso: antes de mais o Povo anónimo do Tramagal do passado e do presente, naturalmente, como colectivo; porém, dele, ninguém poderá levar a mal que exalcemos uma figura de autêntico obreiro, até agora injustamente esquecido, o P.e Luís António Ferreira Bairrão (o primeiro deste nome). Pelo que através deste breve apontamento nos foi dado perscrutar, ele contribuiu muito para tirar o Tramagal do anonimato e colocá-lo no mapa.

 

 

E é, obviamente, tempo de comemorar. E festejar.
Parabéns, pois, e Longa Vida, Tramagal !.

 

 

Notas

 

* Professor, mestre e doutor em Letras (História) pela Universidade de Lisboa.

 

1 Vide J. Candeias Silva, Álvaro Batista e Filomena Gaspar, Carta Arqueológica do Concelho de Abrantes, em vias de publicação.
2 Cf. J. Candeias Silva e Eduardo Campos, Dicionário Etimológico e Toponimico do Concelho de Abrantes, ed, da Câmara Municipal de Abrantes, 1987, p. 134.
3 Sobre a ordem jurídico-administrativa vigente, veja-se o nosso estudo Abrantes — vila e seu termo no tempo dos Filipes, Colibri, Lisboa, 2000, p. 214.
4 Vintena, comunidade rural com mais de 20 famílias.
5 Abrantes — A vila e seu termo.... p. 226, nota 16.
6 Cf. Isabel Silva Graça, "A aprendizagem das noções cronológicas no âmbito da compreensão do tempo histórico", O Estudo da História, APH, n. 0s 12-15, vol. 1, 1994, pp. 357-367.
7 Substituiu-o transitoriamente o P.e Manuel Delgado Machado (Janeiro de 1803). A partir de Fevereiro desse ano veio um novo cura, Manuel Jorges até Junho de 1810. Vieram nomeados depois, sucessivamente, os P.es Manuel Lourenço (até Junho de 1811) Jerónimo Lopes de Oliveira (até Maio 1814) e António de Almeida Pimenta (que conduziu os destinos da paróquia até 1834).
8 AHA, Liv. de Actas n.0 87.
9 Chamava-se igualmente Luís António Ferreira Bairrão, nasceu a 23.8.1769s no Tramagal e foi também ordenado presbítero, em 1793 (TT-CECB, M. 1902, p.0 300). Era filho de António Ferreira Esteves Bairrão e de Caetana Josefa da Silva, e neto de António Esteves Bairrão, o irmão mais velho do 1.0 pároco tramagalense (n. 17.5.1717).
10 Nada consta em seu nome, tanto nas Chancelarias régias como no Registo Geral de Mercês. A aposição da sua última assinatura em assentos paroquiais regista-se a 2.1.1803, devendo ter adoecido por essa altura.
11 Este Manuel Alvares teve por padrinho de baptismo o conhecido P.e Marcos Lourenço, influente sacerdote local que veio a ser O fundador da capela de S. Caetano do Crucifixo. Falecido em 1699 e nesta sua capela sepultado, ele seria já antes também aparentado à família Bairrão pelo costado paterno (Vicente Ferreira era o nome de seu pai). Por sua morte levantou-se um intrincado processo sobre a posse da ermida, que correu seus trâmites no foro eclesiástico entre 1707 e 1710, e que ainda hoje se encontra em poder da mesma família Bairrão, sua herdeira. Sobre a capela, veja-se nosso artigo pub. no Boletim da ADEPRÁ, n.0 5, Dez. 1982, e no Notícias de Abrantes de 11.3.1983).

 

 Artigo publicado na revista Zahara nº3 - maio 2004