Evolução das fronteiras de ABRANTES ao longo dos tempos.
Particular referência a Sardoal e Constância.
Nos 125 anos do Foral de Abrantes
 
    As circunscrições ou comunidades municipais são hoje realidades basilares da nossa tessitura nacional, com uma estrutura identitária, forjada em valores diversos, ao longo de séculos de História, Factores históricos, geográficos, étnicos, religiosos, políticos, sociais, culturais, poderão ter estado na sua origem; mas, com a passagem do tempo, todos esses valores de per si se foram sedimentando num todo, numa complexa teia ou genealogia de interrelações, que hoje se pode caracterizar num modelo simbólico a que alguém recentemente chamou, com bastante propriedade, «uma Cultura concelhia — Cultura de vizinhança» 1.
    «Cultura de vizinhança», no âmbito da «Cultura concelhia» — adianta o autor da referida proposta — é «aquela que se forma desenvolve, e deve proteger-se e conservar-se, no território geográfico e cultural da divisão administrativa aqui considerada, o Concelho, autarquia da comunidade residente na circunscrição municipal». E assim sendo, parece-me ser de toda a vantagem procurar descobrir as raízes, a razão de ser de cada concelho, como se formou, como evoluiu, para que melhor saibamos compreendê-lo, continuá-lo, desenvolvê-lo. Assim procederei relativamente a Abrantes, o concelho onde me fixei há mais de 35 anos e relancei as minhas raízes.
    Com os seus 700 km2, beneficiando de um bom enquadramento posicional no conjunto do território português em geral e do Médio Tejo em particular — tendo a Beira a Norte, o Alentejo a Sul e Leste e a Estremadura-Ribatejo para Oes-sudoeste —, pode hoje considerar-se um concelho de charneira, bem dimensionado (mesmo até superior à média), equilibrado e consentâneo com as actuais realidades adminisfrativas, não levantando a definição dos seus limites já quaisquer diferendos, suponho...
    A fixação dos contornos exactos, de todas as linhas fronteiriças, foi no entanto bastante demorada, por vezes até algo conflituosa, e não terminou senão há pouco mais de um século. Contribuir com algumas achegas a esse processo, porventura desconhecidas ou de carácter subsidiário, para o aclaramento ou o simples registo da História, como aliás esta Revista já experimentou em número recente 2, é o único objectivo deste texto.
    Abrantes começou por ter uma área concelhia, ou 'termo", como então se designava, de enormes dimensões. No ano de 1173 —a referência mais antiga que se lhe conhece —o "castelo" de Abrantes [castelum de Ablantes] com o seu termo foi doado por D. Afonso Henriques à ordem militar de Santiago, para melhor defesa da linha do Tejo, apresentando os seguintes limites territoriais:
«(...) Pelo Zêzere, onde entra no Tejo, seguindo pela margem (direita) do Tejo até ao termo da Idanha; e além do Tejo pela cumeada sobranceira à vinha dos freires (da Ordem) do Templo 3, e daí como vai por aquela cumeada sobranceira à mata de Alcolobra até meter no arracefe, no Almegião 4, até à Ponte de Sor (quomodofert in arrace/ in Almegion, ad pontem de Soor), e daí como corre o rio Sor para montante até à cabeça de Algude (Alagoa?), e daí às cortaduras (da serra) de Marvão (ad taliadas de Marvan), conforme vertem no Sever, e torna (por este rio) ao Tejo»5 .
    Era, efectivamente, um extenso território este, mas de muito reduzida densidade populacional devido às guerras da Reconquista. Na margem direita do Tejo, resultara do desmembramento do termo da velha Idanha (Egitania) e abrangia grosso modo os actuais concelhos de Constância, Abrantes, Sardoal e Mação, enquanto na margem esquerda alastrava até à fronteira castelhana, englobando, para além de Constância Sul, Abrantes e Gavião, os actuais concelhos de Ponte de Sor (parte), Nisa, Castelo de Vide e Marvão (parte).
    Por quanto tempo se mantiveram estes limites?
   Ao certo não poderemos sabê-lo. Tanto o foral (de 1179) como as suas sucessivas confirmações régias não comportam quaisquer referências a marcas delimitatórias do concelho, talvez porque previssem desde logo uma circunscrição territorial flexível e importasse mais a administração da justiça e a cobrança de impostos do que a organização municipal. Porém, parece óbvio que aquele termo não podia durar muitos anos. A própria concessão do foral afonsino em Dezembro de 1179 — há portanto 125 anos — é já por si um indício de que o anterior termo deve ter sido modificado por essa altura, já que os Espatários não defenderam devidamente o território concessionado e permitiram até, nesse ano, uma incursão almóada sobre o florescente burgo abrantino.
   Não pode estranhar-se, pois, que em 1194 tenham sido doadas aos Hospitalários as terras de Guidintesta, para que nelas levantassem um castelo — que veio a ser o de Belver — e através deste reforçassem a linha defensiva do Tejo, ao mesmo tempo que se promovia o repovoamento das terras do interior norte (especialmente a área de Mação) e alto-alentejanas. O "privilégio de Belver" é, assim, da maior importância para o concelho de Abrantes, porque é o primeiro texto conhecido a definir com alguma precisão os primeiros limites do território abrantino entre o Tejo e o Zêzere. Por ele se verifica também que grande parte do vasto domínio a Sul do Tejo, que pertencera a Abrantes, passara aos freires do Hospital, criando-se assim uma nova fronteira. Eis o texto:

«Esta herdade [de Guidintesta] é circundada por estes termos: Acima do Tejo divide com o território do castelo [concelho] de ABRANTES (castel/o de Ab/antes) pela cumeada do Rosmaninhal (cummariam de Rosmarinal), como defluem as águas da ribeira de Eiras (rivulum de Areis), e daí sobe ao cume do Bando Maior (ad rostrum de Bando maiore) e daí ao cabeço da Amêndoa (ad caput de Amendoa), pela via mourisca directamente ao Zêzere, ao porto de Tomar (ou Tamolha?) (adportum de Thomalia)6. Além do Tejo (margem esquerda), entra no sítio em que havia uma exploração aurífera (per aurarium) onde extraíram cal e por onde as águas vertem para (a ribeira de) Alvega (ad Alvegam)7, por uma parte, e pela outra para o vale de Gavião; daqui segue pela Margem Fanzira até ao cimo da Melriça (ad rostrum de Merliza. hoje serra da Penha?) e daí, por Vide (per Vitem), ao porto / foz do Sever, contornando pelo Tejo até ao porto / foz do Enxarrique (Porto do Tejo, Ródão)»8.

 

 

 

    Esse era um tempo em que as fronteiras sofriam constantes oscilações de traçado, em virtude das lutas de reconquista além-Tejo e do jogo de interesses das ordens militares, pelo que não será de estranhar que o concelho de Abrantes, dada a sua posição de charneira, demorasse a estabilizar. Pelo diploma acabado de citar verifica-se, no entanto, que as confrontações a Norte do Tejo poucas alterações sofriam. É certo que Amêndoa e Mação foram durante algum tempo objecto de demanda entre a Coroa e a Ordem dos Hospitalários (= Malta), mas a verdade é que as duas vilas, tal como Ponte de Sor e a aldeia de Longomel, foram declaradas termo de Abrantes por uma sentença de D. Afonso IV (20.8.1346), no contexto da dita Ordem, após diversas inquirições que deram sempre razão à Coroa9; pelo que aquelas duas vilas — tal como diversos outros lugares do actual concelho de Mação — foram permanecendo ligadas a Abrantes por diversos laços e por vários séculos10.
    Mais complexa parece ter sido a evolução verificada a Sul do Tejo. Perdida a extensa faixa da margem esquerda do Tejo desde a ribeira de Alvega/Lampreia ao Sever, o concelho de Abrantes viria a estender-se mais para o interior Sul, além do Sor e da ribeira de Seda: Margem & Longomel, Chancelaria, Ponte de Sor e Alter do Chão, antes de terem os seus alfozes próprios, foram seguramente territórios sob jurisdição abrantina. Não sabemos exactamente desde ou até quando, mas eram-no na primeira metade do século XIII. Quanto ao lugar de Alter do Chão, terá sido desmembrado de Abrantes em 1249 (foral de Afonso III) ou já antes em 1232 (1.a carta de foral dada pelo bispo egitaniense)11 ; mas em 1384, por carta régia de 5 de Novembro, ainda era dada uma sentença para que o dito lugar fosse do termo de Abrantes com todas as jurisdições e que os homens-bons de Abrantes fossem dele tomar conta12 . Margem e Chancelaria foram integrados no ducado de Bragança na primeira metade do século XV13 . Ponte de Sor, conquanto já tivesse benefícios de D. Dinis e D. Fernando, foi elevado a vila e concelho por D. Manuel em 29.8.1514 (foral novo). Em reconhecimento dessa antiga sujeição, as ditas vilas ficaram obrigadas a pagar à Câmara de Abrantes um tributo anual, de que só vieram a libertar-se com o advento do Liberalismo, no século XIX — Ponte de Sor pagava "400 réis em dinheiro de contado" mais "180 réis de outro foro" atinente ao mesmo reconhecimento, Alter do Chão pagava 160 réis e Chancelaria 18014.
   
Adentro do domínio dos Hospitalários e do priorado do Crato ficaram, portanto e por muito tempo, Belver e o lugar do Gavião. Este só a partir de 23.11.1519 se constituiu em vila, já com novo estatuto (foral), embora ainda sem ser cabeça de concelho15... Restava para Sudoeste o gigantesco concelho de Santarém, com o qual Abrantes confinava desde tempos ancestrais16, pertencendo-lhe o lugar da Chamusca. Este só veio a autonomizar-se em 1561 , juntamente com Ulme, mercê de uma carta régia de 18 de Novembro desse ano que elevou os dois lugares a vilas, apesar da protestação vigorosa da antiga sede concelhia17.
Em síntese, foi pelos fins do século XV / princípios do XVI que o modelo concelhio começou a impor-se definitivamente em P01tugal, como unidade administrativa ejudicial, falando alguns autores mesmo de uma "universalização do modelo" e de um "processo de municipalização do território"18. Só no período de 1495 a 1545 foram criados, pelo menos, 16 novas vilas, das quais 15 se constituíram em novos municípios, se bem que os limites de alguns concelhos não tivessem sido logo fixados. De entre os motivos da elevação, destacam-se dois: a pedido dos moradores nesses lugares, que invocavam as vantagens advenientes; e a pedido de certas casas fidalgas, em resultado da concessão da terra em senhorio. Como exemplo deste segundo motivo temos o caso da Chamusca; do primeiro, o mais frequente, temos Sardoal (em 1531) e Punhete/Constância (quarenta anos depois), se bem que com algumas pequenas diferenças (maior empenho do rei, que invoca motuproprio, e alguma intromissão dos donatários, no caso do Sardoal).
  Pela sua pertinência, porque se trata dos dois concelhos mais avizinhados de Abrantes (se assim se pode dizer), historicamente com muitas afinidades e relações, vale a pena debruçarmo-nos mais demoradamente sobre eles.

 

Sardoal

    Tem-se dito que a fundação do concelho remontará aos começos do século XIV, alegando como justificação que a esse tempo o lugar já tinha juízes e procurador do concelho. Salvo erro ou omissão, não me parece uma interpretação correcta. Por essa altura um "lugar", podendo embora eleger juízes e procurador (mas não vereadores nem escrivães, que esses sim se constituíam em câmara e a esse tempo já começavam a aparecer), tinha obviamente uma categoria inferior à de uma "vila" e, em princípio, só esta podia aspirar a formar um verdadeiro concelho. A expressão "procurador do concelho" pode, por isso, induzir em equívoco, dependendo do contexto. No caso, exprimiria mais a ideia de colectivo, "que pertencia à população", que não era privado. Aliás, era frequente os lugares de maior dimensão terem dois juízes, feitos pelas câmaras, e um procurador eleito cada ano pelo povo, e disporem até de uma casa do concelho (que serviria de audiência), de um curral do concelho (para os gados), caminhos e rendas do concelho. Mas tudo isso dependia da sede concelhia, da vila ou cidade.
    De mais a mais, se o Sardoal fosse concelho por esses tempos, teria tido certamente os seus instrumentos de autonomia e poder: a sua carta de foral ou alforria, o seu pelourinho, o seu selo e armas municipais. E a verdade é que nada, rigorosamente nada disso se lhe conhece, em chancelaria alguma. Tê-los-ia recebido da rainha Santa Isabel, como pretendem alguns, com base numa simples carta que a mesma passou aos moradores do lugar, em 11.1.1313? Não me parece crível. O documento parece reportar-se simplesmente a uma questão de trânsito, da estrada da Beira para Abrantes e Punhete. Não se lhe conhece outro; somente do marido, D. Dinis. De facto, a Rainha Santa era donatária do Sardoal, mas por lhe ter sido dada pelo rei (em arras propter nuptias) a jurisdição de Abrantes e o padroado das suas igrejas, e como o era de outras vilas, sem que no entanto isso tenha implicado necessariamente a concessão de um foral, a separar terras e fazer concelho. Portanto, sem outras provas, nào vale a pena alimentar conjecturas e incertezas.


Pelourinho do Sardoal

   Isto não significa, todavia, que o Sardoal não fosse terra muito antiga, importante e populosa. Como prolongamento de Abrantes e sua zona de contacto, teve obviamente o seu relevo e o seu papel activo, conforme têm revelado, entre outros indícios, os levantamentos arqueológicos empreendidos. Sabemos mais que, pelos começos do século XVI, registava um invulgar crescimento demográfico, o que lhe permitia também grande desenvolvimento económico, motivos que o rei D. Manuel considerou suficientes para lhe conceder uma mercê preciosa ( 1507): a jurisdição do crime, que era retirada a Abrantes. «...Vendo nós a grande poboaçam e bemfeitorias que ha no lugar do Sardoal, e como cada dia se acrescentam, e assi ao que com a ajuda de Nosso Senhor esperamos que ao diante façam...» — diz o diploma logo a abrir (Doc. n.0 1 , em anexo). De resto, estou em crer que esta seria já, provavelmente, uma abertura para a autonomia plena, pois que já então poderia ter alguma.


Carta de D. João III, elevando o Sardoal a vila e desanexando-o de Abrantes (1531) 

    Entretanto fina-se o Venturoso. Sucede-lhe o filho, D. João III, o Piedoso, que confirma as mercês anteriores. Por volta de 1530 — dizem os elementos estatísticos então recolhidos —, contava o lugar já 500 vizinhos / fogos, correspondentes a cerca de 2000 habitantes, em que se incluíam 3 cavaleiros e 21 escudeiros... (Abrantes-vila não ia além dos 775 fogos, embora no termo atingisse 2651). Pelo que o monarca, aliás na exacta na linha do seu antecessor, não perdeu tempo a agir. E promoveu o lugar a vila e concelho, agora inteiramente autónomo, por sua carta de 22.9.1531, passada em Évora, às ordens do competente secretário Pedro de Alcáçova Carneiro. Nela o rei aduz que tomou a decisão de motu próprio e poder absoluto (livre, sem pressões), por ver o grande crescimento populacional que o lugar denotava e ainda o seu desenvolvimento (muitas benfeitorias). Mas não passa pela cabeça de ninguém que não tenha havido pedidos de moradores ou sugestões nesse sentido, embora não formalizados em requerimento. Sigamos o texto:

  «Dom Joham, etc., a quantos esta carta virem faço saber que, vendo eu o grande crecimento que (louvores a Noso Senhor) se faz na povoaçam do lugar do Sardoal, termo da Villa d'Abrantes, e como se emnobrece de fidalgos, cavaleyros, escudeiros e homees de cryaçam, e pesoas d'onra que nelle vyvem e que muy bem me poderà servir com armas e cavalos, e asy do muyto povo, pelos quaes sam feytos no dito lugar muytas bemfeytorias de muytas e de muy boas casas, e asy dentro como fora, muytas erdades de vinhas e olyvaes e outras muytas bemfeytorias, das quaes cada vez mais se faz e crecem por estas cousas, e por esperar que no dito lugar va em muyto mayor crecymento e nobreza, por o aver asy por muito meu serviço sem os moradores delle nem outrem por el les mo requererem nem pedyrem, de meu moto proprio, poder real e avsoluto, desmembro e tiro para todo o sempre o dito lugar do Sardoall do termo da dita Villa d ' Abrantes, cuyo termo ate'quy foy, e o faço por esta presente carta vylla e mando que daquy em diante se chame Villa do Sardoall e tenha a sua jurdiçam apartada por sy e sem reconhecimento algum à dita Villa d' Abrantes, e como a têm as outras Villas de meus regnos e com o termo que lhe mandey ordenar e conteudo na carta que diso mandey pasar asynada por mym e aselada do meu sello(...)»19.

     A reacção da Câmara de Abrantes, que saía coarctada no seu poderio e nos seus rendimentos, foi veemente, como aliás era de esperar, logo tratando de enviar à corte uma carta de contestação e uma representação composta de dois procuradores, João Garcês e Juzarte Soares, a requererem em justiça a anulação ou alteração do diploma (Doc. n.º 2, em anexo, de 8.11.1531). Mas os protestos terão ficado por aí. A decisão estava tomada e o mais que pode ter provocado foi um ligeiro atraso na publicação da carta de demarcação do termo, que acabou por sair a 10.8.153220

 

Constância

    A ligação desta terra a Abrantes é antiquíssima, pois, como vimos atrás, já em 1173 ficava integrada no seu limite, que partia precisamente da foz do Zêzere; e assim se deve ter mantido pelos séculos seguintes. Uma carta, que não vi, mas que aparece citada por alguns autores como sendo dos últimos dias de vida do rei D Dinis, a conceder jurisdição sobre os de Punhete, não deverá ser mais que uma confirmação de antigos privilégios. 
    Por volta de 1530 era bastante inferior ao Sardoal em população, não indo além de 311 vizinhos / fogos (pouco mais de 1200 habitantes), entre os quais se incluíam 7 escudeiros e 8 clérigos. Mas em 1570 era também já «povoação grande e honrada», com cerca de 500 vizinhos ou fogos, e tinha um estatuto de excepção, sendo o lugar comparável a algumas vilas do reino (vilas cíveis?), já com um termo próprio, corpo de câmara, com juízes, vereadores, procurador do povo e de una tantos oficiais administrativos, beneficiando, consequentemente, de alargada autonomia.
Continuava, todavia, dependente da Câmara de Abrantes em várias matérias...

 

Pelourinho de Constância

    D. Sebastião, que nunca terá posto os seus reais pés em Abrantes, esteve nesta povoação pelo menos duas vezes: em 29.9.1569, de romagem a N.ª S.ra dos Milagres (ou dos Mártires?), de quem era devoto, e nos primeiros dias de Novembro de 1570. E é muito natural que nesta última oportunidade se tenha comprometido de alguma forma com as elites locais a escancarar as portas da independência. Os homens-bons de Punhete, lembrados do exemplo de sucesso do Sardoal, não perderam tempo a redigir o requerimento. Expõem as suas razões, invocam qualidades e méritos, também algumas dificuldades, não se esquecendo inclusive de avocar a romaria de N.ª S.ra dos Mártires21
    O monarca, no cumprimento das Ordenações do Reino, ouve então os seus conselheiros e os desembargadores da do Paço. É mandado o corregedor da comarca (de Tomar) tirar averiguações; e este conclui e informa que havia no lugar 430 vizinhos / fogos, sendo alguns dos seus moradores fidalgos da Casa Real; que havia mais 40 proprietários com foro de escudeiros, homens honrados que iam colaborando no governo da terra; muitos pescadores e oficiais dos mesteres (ofícios ditos mecânicos), e ainda um médico (físico) e três cirurgiões. Enfim, decorrido apenas meio ano, a 30 de Maio de 1571 , o «Desejado» assinava o diploma que para sempre alçou o lugar em Vila e Concelho, isento de Abrantes (Vide Doc. n.º 3 em anexo).
    Os abrantinos não terão gostado de mais esta substancial amputação de território e em tão pouco espaço de tempo, mas não consta que tenham reclamado oficialmente da régia decisão. Tê-la-ão acatado, porém não sem algumas reservas e com razões para não nutrirem especial apreço por aqueles dois monarcas (D. João III e D. Sebastião). Ao que estes devem ter retribuído da mesma forma, voltando ostensivamente as costas, pois é sabido que jamais jornadearam por cá (ao invés de todos os precedentes), apesar de terem andado perto. Que saudades lhes terão ficado de D. Manuel e de D. João II! E, a esta luz, talvez se compreenda um pouco melhor por que festejaram tanto os abrantinos a "entrada" de Filipe II e, mais tarde, também a de D. João IV...
    Entretanto, o concelho de Punhete / Constância não ficara completamente satisfeito, porque era apenas termo e concelho de si mesmo, com uma só freguesia. Santa Margarida da Coutada e Montalvo ainda eram jurisdição de Abrantes; para as bandas do Oeste ficava a barreira do rio Zêzere, como limite natural; a Sul do Tejo é que lhe pertenciam «muitas heranças de vinhas, olivais e terras de pão», mas também não era vasta a extensão, apenas uma meia légua, «menos de quarto de légua» para cada lado. Ambicionava, por isso, mais território; e este podia consegui-lo sobretudo à custa de Abrantes. Daí que tenha intentado, através de personalidades influentes, alcançá-lo.
    Diogo Soares, alcaide-mor e donatário da vila, fidalgo do Conselho d'el-rei e Secretário de Estado, foi a pessoa melhor colocada22 . Embora já perto da Restauração (25.8.1640), ele acabou por conseguir de Filipe IV (III de Portugal), de uma só vez, a anexação ao seu termo das freguesias de S.ta Maria da Amoreira23, S.ta Margarida24 e Martinchel, todas de Abrantes, mais algumas faixas de terreno nas duas margens do Tejo — na direita, para o lado de Tancos, um corredor até às imediações do castelo de Almourol e na esquerda uma légua pela charneca adentro junto a Santa Margarida, retirada a Santarém (Doc. n.º 4, em anexo).
    Mas, estou em crer que o alvará régio não terá surtido efeito, porventura devido à revolução nacional do 1º de Dezembro de 1640, porque as ditas freguesias de Abrantes voltaram todas à origem. Seriam desanexadas de novo por decreto de 6.11.1636, uma vez mais num conturbado processo reformista, mas desta vez Santa Margarida e Montalvo separar-se-iam para sempre (a reclamação de Martinchel foi deferida e a freguesia reintegrada em Abrantes).

 

Concluindo...

    Foi Gama Barros quem disse que a história deste país se podia identificar com a história das instituições municipais. Tal afirmação do insigne historiador, embora à primeira vista redutora e simplista, encerra no entanto alguma justeza e pertinência. Porque, não obstante as origens do municipalismo se perderem no fundo dos tempos e ainda hoje sejam discutíveis, não obstante se reconhecerem diferenças capitais entre os primitivos concelhos do norte (mais cristão e senhorial) e os do centro-sul (mais instáveis por força da Reconquista), entre os rurais fronteiriços do interior e os mais urbanos implantados sobretudo nas áreas litorâneas, do que não podem restar dúvidas é que o poder concelhio cedo marcou a identidade portuguesa, e tanto que essa marca chegou bem arreigada até aos nossos dias e ainda vai prevalecendo sobre os intentos de regionalização.

 

    Para a formação e afirmação dos concelhos, do poder concelhio e da delimitação de fronteiras, muito contribuiu o direito foraleiro, as chamadas «cartas de foral». Por definição, um foro ou foral era um documento oficial de privilégio, outorgado a uma povoação pelo rei ou por um alto dignitário do clero ou da nobreza, onde, para além dos limites territoriais, vinham registadas as principais garantias de liberdade dos moradores e se regulava a administração da justiça local, os impostos e outros encargos. De um modo geral, para onde era necessário e urgente atrair novos povoadores, criando-se assim novos focos populacionais, o foral abria as poitas a um novo concelho, podendo esse instrumento jurídico considerar-se também regulador da actividade municipal.
    Isso aconteceu com Abrantes e com muitos dos concelhos que mais ou menos a partir do foral modelo de Abrantes se foram gerando. Foi o caso de Alter do Chão (1230); terá sido o de Marvão (1226), de Nisa (antes de 1232) e do Crato (1232); e, em parte, foi também o que aconteceu mais tarde com Sardoal e Constância, muito embora o diploma instituidor destes dois concelhos fosse já bastante diferente, por pertencerem a uma época em que os forais já haviam caído em desuso.
    Mas é fora de dúvida que qualquer deles teve uma carga identitária enorme para o tempo e ainda a pode ter para nós: porque uma carta criadora de um concelho deveria funcionar como o alicerce de um edifício, a raiz de uma árvore, a razão de ser de um certo presente. Isso mesmo, Raiz e Razão. E também memória, indelével, longínqua mas imperecível. Motivo por que, a meu ver, nunca será demais prestar-lhe atenção.

 

Documentos

DOC. n.º 1 —Abrantes, 1507, 31 de Julho — Carta de D. Manuel concedendo aos moradores do Sardoal a isenção da jurisdição criminal face a Abrantes, atendendo ao aumento de população e aos melhoramentos que ali se registavam. Esta mercê abria caminho à autonomia.

                                                                                                                 TT, Livro III da Beira, fl. 8 v.

Dom Manuel, etc, a quantos esta nossa carta virem fazemos saber que, vendo nós a grande poboaçam e benfeitorias que ha no lugar do Sardoal, temo da vila d 'Abrantes, e como cada dia se acrescentam, e assi ao que cò ajuda de Nosso Senhor esperamos que ao diante façam, e para que os moradores dele com razam tenham milhor vontade de prosseguir nas dietas benfeitorias, e des'y por lhe fazer graça e mercê, com prazer de Dom Johann d' Almeida, conde desta Villa d' Abrantes e do nosso conselho, temos por bem lhe darmos e concedermos, como de facto por esta carta damos e concedemos, ajurdiçam no crime, para daqui em diante della buscarem pela guisa e maneira abaixo declarada.
Primeiramente, queremos e nos praz que, se alguma pessoa ou pessoas moradores no dicto lugar do Sardoal ou em seu limite fizerem<...>25 por que sejam obrigados a nossasjustiças, os taaes sendo presos em Abrantes ou no outro seu termo sejam Ioguo entregues aos juizes do dicto lugar do Sardoal para hi os ouvirem e despacharem como for justiça, dando apellaçam e agravo para os juizes da dieta Villa d'Abrantes, nos casos que com // dereito se deva receber, ficando porem os taaes presos no dicto lugar do Sardoal atee seus fectos serem finalmente determinados em cada uma das casas da Supricaçam ou do Civel; e sendo os taaes presos condenados pellos desembargadores de cada huma das dictas casas em penna crime de morte ou talhamento de membros, a tall execuçam se virá fazer a esta Villa d' Abrantes, onde os dictos presos para isso seram trazidos; e toda outra pena crime, assi d'açoutes como qualquer outra, nam sendo morte ou talhamento de membros em que os taes presos forem condenados, se fará execuçam della no dicto lugar do Sardoal aa porta da cadea, assi como se faria ao pee da picota26, tirando hos açoutes, que se daram ao longuo do lugar quando nas dictas sentenças vier declarado que se faça assi.
Item, em estes presos que assi avemos por bem que esteem sejam ouvidos no dicto lugar do Sardoal [e] se nam entenderá naquelles em que se provar por dereito hos maleficios por que forem acusados merecerem penna de morte ou talhamento de membros, porque os taaes queremos que se tragam ao castello da dicta Villa de Abrantes, porque por a prisam delle ser mais forte e segura ho avemos assi por bem; porem, os taes presos seram ouvidos na ditta Villa d' Abrantes ou no Sardoal, onde elles mais quiserem. Item, outrosy mandamos que nenhumjuiz d' Abrantes nam tome conhecimento de nenhuns fectos crimes dos moradores do dicto lugar do Sardoal e seu limite salvando quando a elles vierem por apel laçam e agravo nos casos que com dereito se deva receber.
Item, outrosy queremos e mandamos que nenhumjuiz d ' Abrantes vaa fazerjuizo ao dicto logar do Sardoal nem em seu limite; porem ho noteficamos ao nosso regedor e governador das nossas casas da Sopricaçam e do Civel, e a todos nossos corregedores, ouvidores,juizes,justiças, e a quaaesquer outras pessoas a que esta nossa carta for mostrada e ho conhecimento della pertencer por qualquer guisa que seja, e lhes mandamos que dajurdiçam crime que por esta [carta] damos aos moradores do dicto lugar de Sardoal e seu limite lhes leixem buscar assi e tam inteiramente como aqui he declarado, e em todo a cumpram e guardem e façam cumprir e guardar sem lhe porem nenhuma duvida nem outro embarguo algum, porque assi he nossa mercêe.
Dada em a Villa d' Abrantes, a xxxi dias do mes de Julho, Gonçalo Mendez a fez, anno de Nosso Senhor Jesus Xpto de mill e quinhentos e sete anos.

DOC. n.º 2 — Abrantes, 1531, 8 de Novembro — Carta dos juízes e vereadores de Abrantes para el-rei, manifestando-se agravados pela erecção do lugar do Sardoal em vila e concelho autónomo, e pedindo-lhe para ao menos lhe limitar o termo.

TT, Corpo Cronológico, II, 47-95

Senhor,
Os juizes e vereadores desta Villa d'Abrantes beyjamos as reais mãos de Vosa Alteza, a que fazemos saber que vymos polla doação do senhor Infante Dom Fernando como lhe dava a dita Villa e tirava o Sardoall, e o queria fazer Villa e lhe dar o termo que lhe bem pareçese bem; e porque VosaAlteza nos agrava muito em apartar o dito lugar e [o] tirar à dita Villa — que era a milhor cousa que esta Villa tem e el-rey [D. Manuel] que Deus tem sempre folgou de nos favorecer e de nos nom tirar nenhuma cousa à dita Villa de seu termo, beijaremos as mãos de Vosa Alteza nom nos quebrar nosas liberdades; e querendo fazer [o Sardoal] Villa, nom lhe dar outro termo, somente o que dantes tinha. Lá mandamos João Graçês e Jusarte Soairez a requerer a Vosa Alteza as cousas que a esta Villa pertencem, a que Vosa Alteza dará inteira crença do que por parte da Villa requererem. Esprita na camara da dita Villa a biii de Novembro, Braz Diaz esprivào da camara della pllo Infante Dom Fernando noso senhor a fiz, de Mbc xxxi anos. a) Ferreira, Menay, Estêvão Lopes, Estêvão Ferreira

DOC. n.º 3 — Lisboa, 1571, 30 de Maio — Carta régia desanexando Punhete do termo de Abrantes e concedendo-lhe o estatuto de vila e concelho autónomo.

TT, Chanc. D. Sebastião, liv. 8, fl. 262;
Livro de Registos da Câmara de Abrantes, n.º 5, fl. 99.

Dom Sebastião, etc, faço saber aos que esta carta virem que os juizes, vereadores e procurador e povo do lugar de Punhete me fizeräo petição dizendo que no dito lugar averya vc [quinhentos] vezinhos e gente muyto onrada, no qual aviajuizes ordinarios que tinhäojurdiçào como as outras Villas de meus reynos, e avya nelle vreadores e procurador do concelho, juiz dos orfìos e escrivão, chanceler e escrivães e outros officiaes de justiça, e faziam suas elleyçòes conforme a minhas ordenações, as quaes confirmava o corregedor da comarqua, e que não tinhäo outra deminuyçào de toda ajurdiçäo, somente irem os juizes, antes que comecem servir seus officios, tomarjuramento à camara da Villa de Abrantes e que as apelaçòins que avyào de ir dereitamente a minha Rellaçào hião primeiro à dita camara d' Abrantes, o que era grande inconveniente, asi por serem pesoas de callidade como per aver duas legoas grandes de Punhete a Abrantes e que com irem Ia as apellaçöes os presos se detêm na prisão até serem despachados na camara e dahi vão seus feitos à Rellação, com que fazem muita detença e maior gasto, e que asi era muito enconveniente não ter o dito lugar nome de Villa, pois tinha toda ajurdição e povoação grande e onrada, onde concorre muita gente de meus reinos e de fora por rezão da romaria de Nosa Senhora dos Martires que hi está e sobcedem alvoroços e briguas; pedindo-me que avendo a todo respeito por serviço de Deus e menos opresäo das partes e nobreza da terra, ouvese por bem que o dito luguar que se chamasse Villa e que os juizes e ofesiais não fossem tomarjuramento à camara da dita Villa d'Abrantes e que as apellaçòes fosem direitamente ha minha Rellaçào, onde pertence.
E antes de lhe dar despacho mandey ao corregedor da comarqua da Villa de Tomar que fosse ao dito luguar de Punhete e se enformasse do contheudo na dita petição, e soubese quanta distancia avia delle à Villa d' Abrantes e quantos vezinhos tinha e as callidades e officios delles e que ofeciais de justiça avya no dito luguar e que regimento e allçada ejurdiçäo tinha e se fazião as elleyçòes conforme a ordenação e se as confirmava o corregedor da comarqua, e se tinhão diso provisões e quem as pasou e quanto tempo haa, e que asi se enformase se passara alguma provisão para o dito luguar ser Villa e quanto tempo avia que se pasara e a causa porque não ouvera efeito e que ouvise acerqua de todo os juizes e vreadores e procurador da Villa d'Abrantes e algumas pesoas das que costumão andar no regimento della e algumas do povo, e que de tudo o que achase e a enformase que tomase e elles disesem fizese [sic] fazer auto, com o trellado de todas as provisões e privillegios que o dito lugar tivese, e todo me enviase e es//crevese seu parecer; ao que foy por o dito corregedor satisfeito e me enviou o auto que diso fez, no que se conthem antre outras cousas: que do dito lugar de Punhete a Abrantes ha duas legoas yndo pello campo, e por cima por Montealvo ha duas legoas e mea, e que avia no dito luguar IIIIcXXX vezinhos, dos quais erão meus cryados, pessoas honradas, e que avia XLta homes honrados que viviam per suas fazendas que andão na governança da terra em foro d'escudeiros, e avia muitos pesquado/res e outros offesiaes mequanycos autos para os officios da terra e que tinhão hum fisico e tres cirugiães, e avia dous juizes ordinarios e tres vereadores e hum procurador do concelho e que estes officiaes avya muitos annos que os avia e que tinhão todo o regimento do concelho; que asi avya hum allcayde pequeno, que apresentava o allcaidemor d' Abrantes à camara conforme a ordenação, e que avya dous tabeliães do publico judicial e escrivão da camara e allmotaçaria, juiz e escrivão dos orfäos, contador enqueredor e destrebuydor, e dous procuradores de numero, juiz e escrivão das sisas e recebedor dellas, e que asi avia no dito lugar casa d'audiencia da camara e casa da cadea e pellourinho com suas argollas e cepo e açougue, e que as apellaçòes do dito lugar crimes hião à camara da dita Villa d'Abrantes e dahi hião à Rellaçào da Casa do Civel e que as partes se agravavão e recebião opresão e gasto no retardamento que se lhes fazia na dita camara, e que asi mesmo se queixavào os oficiaes quando hião tomarjuramento à camara da dita vila d' Abrantes; e asi achou o dito corregedor por enformação que os corregedores daquela comarqua que pello tempo forào confirmavào as elleyçöes que no dito lugar de Punhete se fazião.
E asi se mostra mais pela enformação que o dito corregedor tomou que o termo e limite que tem o dito lugar chega ao ribeiro de Valle do Asno da parte d ' Abrantes que he a hum quarto de legoa de Punhete indo ao longo do Tejo pella estrada pera baixo, e da estrada pera cima para a banda do norte não tem mais que os vezinhos que estão pegados com o dito lugar que chegão ao dito ribeiro do Tombeiro que he menos de quarto de legoa, por onde muitas eranças do dito luguar ficão no termo d'Abrantes, e da banda de Paypelle27 não tem nhum lemite porque esa parte com Rio Zezere que corre ao longo das casas do dito lugar de Punhete por huma parte e por outra corre o Rio do Tejo, e da banda d'allem do Tejo tem o dito lugar de Punhete muitas eranças de vinhas e ollivais e terras de pão, e da banda de Santarem // [fl. 263] ao longo do Tejo para baixo tem de limite da banda d' allem dous tiros de besta e logo entra o termo de Sanctarem, e ao longo do Tejo pera cyma contraAbrantes chega o dito limite ate ribeiro da Costoya, que he menos de quarto de legoa, e para a banda da Charnequa ate a sovreira da Portella, que he menos de quarto de legoa, que em hum termo e no outro lhe ficäo suas fazendas. E ao dito auto forãojuntas algumas provisões dos reis passados, meus antecessores, concedidas ao dito lugar de Punhete e sentenças dadas sobre este caso, e asi outros privilegios e sentenças apresentadas por parte da dita Villa d'Abrantes.
E sendo-me o dito auto apresentado com as ditas provisões e sentenças, o mandei ver pelos desembargadores do Paço, e arezoarão por sua parte os moradores do dito lugar de Punhete e d'Abrantes cada hum de sua justiça; o que todo visto por mym ey por bem e me praz de fazer Villa o dito lugar de Punhete e quero que daqui em diante pera sempre se chame Villa de Punhete, e a tiro e aparto de qualquer sobgeição e superioridade que a dita Villa d' Abrantes nella tem, sem embargo de quaisquer privilegios e pose que aja em contrairo, porquanto por os respeitos sobreditos e por lhe fazer mercê o ey asi por bem e lhe dou por termo o que atee ora tem soomente e mais não, segundo acima vay declarado. E mando aos oficiaes da camara da dita Villa d'Abrantes e povo della que não constranjão mais aos oficiaes desta Villa de Punhete a irem tomar Ia o juramento nem fazer Ia ir as apellações as quaes virão direitamente à minha Rellação. E mando a todos meus desembargadores, corregedores, juizes, justiças, officiaes e pessoas a que o conhecimento disto pertencer que cumprão, guardem esta carta como se nella contem, a qual se registará no livro da chancelaria da comarqua de Tomar e no livro da camara da dita Villa d' Abrantes28 e da dita Villa de Punhete, e esta propia estará no cartorio della em boa garda, a qual por firmeza diso lhe mandey pasar, por mim asinada e aselada do meu sello de chumbo.
Dada em Lixboa a XXX de Mayo, Andre Sardinha a fez. Anno do nascimento de Noso Senhor Jhesus Cristo de MVCLXXI. João de Bayrros a fez escrever. E o allcayde-mor d' Abrantes terá nesta Villa os direitos que sempre teve e por esta mercê que faço à dita Villa não se perjudicará ao dito allcayde-moor em cousa alguma. / Concertada, a) Pero d'Oliveira. / Concertada, a) Belchior Monteiro29

DOC. n.º 4 — Lisboa, 1640, 25 de Agosto — Alvará régiopara se desmembrarem de Abrantes as freguesias de S.ta Maria da Amoreira, S.ta Margarida e Martinchel, passando-as ao termo de Punhete.

TT, Chanc. Filipe 111, liv. 28, fl. 381.

(A margem: Secretário Diogo Soares). Eu el-rey faço saber aos que este alvará virem que Diogo Soares, do meu Conselho e meu secretario de Estado, alcaide-mor e donatario da Villa de Punhete, me representou por sua petição que a dita Villa não tinha termo algum da banda das de Thomar e Santarem, da parte do Norte, e somente da parte do Alentejo para a banda de Santarem teria dous tiros de espingarda de distancia de termo, e para a banda de Abrantes teria de termo so de distancia de hum quarto de legoa pouco mais ou menos e asim de huma como da outra parte, o qual termo era o limite que a dita Villa de Punhete tinhaja quando era lugar, antes de ser ergido Villa; e que por a Villa de Santarem para a mesma banda de Punhete ter distancia de sete legoas de termo pela parte do Alentejo e a de Abrantes para a mesma Villa de Punhete ter distancia de duas legoas ou mais, ficaväo as principaes fazendas dos moradores de Punhete e de major parte fora do limite della, humas no termo de Santarem e outras no de Abrantes, de que resultaväo grandes molestias em que erào vexados os moradores de Punhete com coimas e contribuições excessivas, as quais erão forçados padecer com grande danno seu por não virem tão longe defenderemsse, com iguoais gastos e despezas de ida, estada e vinda; e que era tradição dos homens mais antigos, que tàobem a tiverão de seus passados, que quando o luguar de Punhete se erigira em Villa pedirão se lhe desse termo conviniente, porquanto a tal erecção ficaväo os moradores com majores obrigações e os encargos publicos de officios e de contribuiçois acrescentadas.
E asim era forçado se lhe acrecentasse o termo como patrimonio necessario para o substentar e para que asim ouvesse mais homens de que se pudesse fazer melhor e mais livre elleição para admenistração e officios de justiça, apontando logo duas freguesias da parte da Villa de Abrantes, huma da invocação de Nossa Senhora d'Amoreira, outra de Sancta Margarida; e pella pouqua posibillidade dos moradores que não seguirão o requerimento ate que eu tivesse outra noticia delle se lhe não deferira, sendo fundado em maiores rezões de justiça he conviniencia, porque antes as ditas freguesias são anexas no espiritual à igreja parrochial da mesma Villa de Punhete, cujo vigairo apresentava nellas os curas que admenistravam os sacramentos aos fregueses, e por isso pagavam os dizimos à comenda de Punhete; e em os dias de São Julião orago da dita parrochial e no de Corpo de Deus vinhão incorporadamente com suas cruzes em procição, em que hiam a camara, juizes e officiaes da Villa, reconhecendo a matriz per sua cabeça no espiritual com aquella subjeição com os dizimos que pagavão e com os sacramentos que della recebião; e que asim era justo e conviniente que tambem no temporal fossem sojeitos à dita Villa porquanto estaväo contiguas a ella, donde se podia com mais comodidade e facilidade administrar-se-lhe justiça que de Abrantes, porquanto ficavão de Abrantes mais de legoa e mea e de Punhete ao muito ficavão mea legoa; e que sendo as fazendas e pastos da dita Villa e dos moradores das ditas freguesias comuns, ficava grande conviniencia das mesmas freguesias em se unirem ha dita Villa, entrando asim os inconvinientes que todos recebiào em estarem separados no temporal, como bem se deixava ver; e os mesmos dannos e inconvinientes a respeito das fazendas que ficavão no termo de Sanctarem e no de Thomar; e a respeito da freguesia de Martinchel, cujo vigairo resedia e sempre resedira na Villa de Punhete, per ser a el Ia contigua e vezinha por distancia de meia legoa ou menos e de Abrantes duas legoas ou mais, a qual freguesia em se unir à Villa de Punhete ficava intereçada na boa e facil expedição, asim na admenistração dos sacramentos como na de justiça no temporal e livre de avexação grande de hir tão longe com seus requerimentos.E que, porquanto a mim como a principe supremo tocava erigir as Villas em cidades e os lugares em Villas e de cada hum o território e termo que parecer conviniente, acrecentar e deminuir o que estiver ja dado quando concorrerem causasjustas, como no caso presente, por asim se guardar a igualdade proporcionada a cada cidade e Villa, em que consistisse a boa direcção da justiça, pedindo-me avendo ao sobredito respeito lhe fizesse mercê dismembrar da Villa de Abrantes as duas freguesias de Nossa Senhora d'Amoreira e de S.ta Margarida e incorpora-las no termo da Villa de Punhete, a que no espiritual eram anexas, e outrosim a freguesia de Manhichel (sic), cujo vigairo asistia na Villa de Punhete, e todas ficavão contiguas à mesma Villa por distancia de meia legoa um pouco mais, e da banda da Villa de Santarem hasinar de termo à de Punhete o limite que corre de junto ao castello de Almouro (sic), da parte de Alentejo, entrando huma legoa pela Charnequa dentro ate ir fechar na dita freguesia de S.ta Margaida (sic), e outrosim avendo respeito a que as ditas Villas de Sanctarem e Abrantes ficavam com grandes termos, por os terem muy dilatados para todas as partes; e tendo eu respeito a todo o referido e ao que constou das informações que sobre isso mandei tomar pelos corregedores das comarcas das Villas de Santarem e Thomar, de que tudo ouve vista o procurador da minha Coroa, a que se não offereceo duvida alguma na pretensão do Diogo Soares, e tendo outrosim respeito a seus merecimentos e por folguar de em tudo lhe fazer mercê, Hey por bem de dismembrar da Villa de Abrantes as duas freguesias de Nossa Senhora d' Amoreira e de Sancta Margaida e incorpora-las no termo da dita Villa de Punhete, a que são anexas no espiritual, e outrosim a freguesia de Manhinchel, que todas ficam contiguas a ella, e da banda da Villa de Sanctarem asinar de termo à de Punhete o limite que corre de junto ao castello de Almouro da parte de Alentejo, entrando huma legoa pella Charnequa dentro, ate ir fechar na dita freguesia de Sancta Margaida, na forma em que o dito Diogo Soares na petição neste incorporada mo pedio.
Pello que mando aos corregedores das comarcas das Villas de Sanctarem e Thomar que, tanto que este alvará vos for apresentado, passado pella Chancelaria, cada hum delles em seu distrito façam logo partir e apartar dos distritos das ditas Villas de Santarem e Abrantes, na forma nelle declarada, o termo que ha-de ficar a dita Villa de Punhete, demarcando-o com os marcos e devisões que tiverem por conviniente para melhor conservação desta divisão e fazendo disso os autos necessarios que com este alvará se lançarão nos livros das camaras das ditas Villas de Punhete, Santarem e Abrantes, para que sempre conste como eu fuy servido fazer esta mercê ao dito Diogo Soares, a quem os autos originaes que disso se fizerem e este alvará se tomarão a entregar para sua guarda; o qual quero que valha, tenha força e vigor, posto que seu effeito aja de durar mais de hum anno e como se fosse carta por mim asinada e assellada com o meu sello pendente, sem embargo das Ordenações que o contrario dispoem.
Manuel Gomez o fez em Lixboa, a vinte cinco de Agosto de mil seiscentos e quarenta, e deu fiança ao thesoureiro geral das meas anatas, a paguar o que se liquidar que deve de meia anata desta mercê, como se vio por certidão do escrivão de sua receipta; João Pereira de Castello Branco o fez escrever. V. Rey. Concertadas atequi, João de Paiva de Aboquerque.

 

Notas

 * Professor, mestre e doutor em Letras (História) pela Universidade de Lisboa.
1 Arq." Carlos Antero Ferreira, «A importância do património histórico na tòrmaçäo de uma cultura concelhia (cultura de vizinhança)». Símbolos. gerações e História, Academia de Letras e Artes, 2002, pp. 219-224.
2 «Demarcação dos concelhos de Sardoal e Abrantes — Divergências velhas», artigo de Nuno Roldão. n.0 2, Dez. 2003, pp. 75-78.
3 Esta vinha ficava na margem esquerda do Tejo, defronte do antigo Castelo do Zêzere (na confluência do Zêzere com o Tejo).
4 O arrecefe era certamente uma velha estrada romana lançada do Tejo à Ponte de Sor, passando perto do Tamazim. Quanto ao casal do Almegiào, deveria ficar na zona do Tamazim (actual freguesia de Bemposta).
5 Cf. Rui de Azevedo, Documentos Medievais Portugueses. Documentos Régios, vol. I, tomo I, Lisboa. 1958, p. 417. doc. 317 Bullarium Equestris Ordinis Sancti lacobi de Spatha, pub. por José Pedro Martins Barata, "Doação dos castelos de Monsanto e de Abrantes com o seu termo, por D. Afonso Henriques, em 1 172 e 1 173, à Ordem de Santiago da Espada, Ethnos, vol. IV, Lisboa, 1965.
6 Se a traduçào for Tomar, esse porto deveria identificar-se com o porto de Cains / foz de Codes, Se — como parece — for Tamolha, afluente da rib.a de Isna, mais a Norte (onde havia uma ponte / porto), isso poderá implicar também a inclusão de uma parte de Vila de Rei no termo abrantino. De facto. esta vila só teve foral de D. Dinis a 19.9.1285. Mas...
7 Deverá tratar-se aqui da ribeira da Lampreia, que estabelece ainda hoje os limites entre Alvega e Gaviào,
8 Cf. José Anastácio de Figueiredo, Nova História da Militar Ordem de Malta, Lisboa. 1800. Parte I, LXXIX, p. 157.
9 Cf. TT, Chanc, D. Afonso IV, liv. 4, fl. 31, doc. pub. por José Anastácio de Figueiredo, História da Ordem do Hospital, hoje de Malta, I, § 43, e por Maria Amélia Horta Pereira, Monumentos Históricos do Concelho de Mação, C. M. Mação, 1970, pp. 414 e
10 Relativamente a Amêndoa e Mação, ainda por todo o século XVII os seus juízes pedâneos vinham anualmente à Câmara de Abrantes tomar juramento, "segundo costume antigo". De entre as freguesias do concelho de Mação que se mantiveram ligadas ao concelho de Abrantes, quase até aos finais do século XIX (1875), contavam-se Aboboreira e Penhascoso (esta com a Ortiga incluída, só separada em 1928). Mas convém lembrar que o próprio Mação ainda em 1867 era incorporado no concelho de Proença-a-Nova (reforma Mártens Ferrão), muito embora tenha sido restaurado no ano seguinte.
11 O documento, em latim e em pergaminho, foi feito em Abrantes e pode ler-se nos Forais Velhos. 10-4.
12 IT, Chanc. D. João I, liv. l, fl. 72, Contudo, não deve essa situação ter durado muito tempo: a autonomia do concelho de Alter do Chão deve ter vingado pouco depois. se bem que à custa de algum esfriamento das relaçöes entre os dois povos. Prova disso é uma provisio do mesmo monarca, passada no Sardoal a 21.1.1432, a ordenar que o concelho de Abrantes mantivesse boa vizinhança com os concelhos de Alter e Vila Formosa.
13 Chancelaria obteve foral de D. Manuel em 1.7.1519 (Livro dos Forais Novos do Alentejo, fl. 32 v). Margem foi transferida para o concelho de Ponte de Sor em 1896. Quanto a Longomel...
14 Cf. Manuel Morato, Memória Histórica da Notável Vila de Abrantes. CMA, 1981. p. 31, testemunho que é confirmado pelos livros de Receita / Despesa da Câmara de Abrantes (rubrica "foros a dinheiro").
15 Acerca deste concelho veja-se José Dias Heitor Patrão, Gavião — Memórias do Concelho, ed. Colibri ( C. M. Gavião, 2003, cap. V, pp. 77-1 IO. Foi extinto em 1895, sendo as suas freguesias anexadas ao concelho de Nisa. com excepção da de Comenda. que passou para o Crato. Mas em breve seria restaurado, a 13.1.1898, com todas as suas freguesias actuais, sendo-lhe então anexada Belver (vinda de Mação).
16 À falta de documento mais antigo, encontramos no Arquivo de Abrantes um termo de demarcação entre os concelhos de Abrantes e Santarém, segundo uma carta régia de D. Dinis, dada em Lisboa a 10.7.1291. Este texto encontra-se transcrito num outro de 9.8.1629.
17 Pelo meio ainda ficava o Arripiado, que pertenceu a Tancos até 1835, passando depois ao Pinheiro Grande e à Chamusca (Cf. João José Samouco da Fonseca, História da Chamusca, 2001, cap. IV. p. 98 e segs.).
18 Cf. História dos Municípios e do Poder Local (dir. de César de Oliveira), Círculo de Leitores, 1995.
19 TT, Chanc. de D. João III, Doações, liv. 50, fl. 109 v. O diploma completo foi publicado por Pedro de Azevedo, em "As cartas de vila, mudança de nome e do titulo de notável das povoaçöes da Estremadura", Boletim da Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa, XIII. Coimbra, 1921, pp. 1 100-1 101, e mais recentemente por Luis Manuel Gonçalves. Sardoal — passado e presente, 1992, p. I I, razão por que não se transcreve aqui na integra.
20 Vem também publicada em Sardoal..„ pp. 12-16.
21 Acerca desta antiga ermida, que entretanto sofreu grandes transformaçöes, veja-se o artigo de António Matias Coelho «Igreja de N.a S.ra dos Mártires (Matriz de Constância) — Imóvel de interesse público», in Histórias do Património do Concelho de Constância, 1999, pp. 10-15.
22 O seu título da jurisdição sobre a vila de Punhete foi adquirido por compra. numa fase de grave crise financeira do reino e «para ajuda das necessidades presentes»- pelo preço de quatro mil cruzados, numa espécie de leilão de jurisdições e bens da Coroa, tendoo o Governo sancionado por um alvará de 3.2.1640, passado em Lisboa a 3.2.1640 (TT- Chanc, Filipe III, liv. 33, fl. 266
23 A antiquíssima igreja de S.ta Maria da Amoreira, de que nada resta. localizar-se-ia na actual Q.ta do Morgado, próximo do sitio da Terra Fria e da chamada "Cidade da Escora", hoje freguesia de Montalvo. Ai têm sido encontrados alguns vestígios religiosos, conforme noticiei, com Alvaro Batista, em «Romanização da margem esquerda do Zêzere», O espaço rural na Lusitânia — Tomar e o seu território (Actas do Seminário), Tomar, 1992, p. 74, nota IO.
24 Esta freguesia, embora do termo de Abrantes, já antes andava anexa à igreja de S. Julião de Punhete, cujo vigário lhe apresentava os curas.
25 Texto acrescentado à margem, quase ilegível no microfilme.
26 Pelourinho (de Abrantes).
27 Hoje praia do Ribatejo.
28 Encontra-se, na verdade, transcrita no Livro de Registos da Câmara de Abrantes, n. 0 5. a fls. 99.
29 Foi publicado, embora sob outros critérios, por Pedro de Azevedo, "As cartas de vila..." , Op. cit., 1921, pp. 1121-1 124.

Artigo publicado na revista Zahara nº4 - dezembro 2004