Evolução das fronteiras de ABRANTES ao longo dos tempos.
Particular referência a Sardoal e Constância.
Nos 125 anos do Foral de Abrantes
 
    As circunscrições ou comunidades municipais são hoje realidades basilares da nossa tessitura nacional, com uma estrutura identitária, forjada em valores diversos, ao longo de séculos de História, Factores históricos, geográficos, étnicos, religiosos, políticos, sociais, culturais, poderão ter estado na sua origem; mas, com a passagem do tempo, todos esses valores de per si se foram sedimentando num todo, numa complexa teia ou genealogia de interrelações, que hoje se pode caracterizar num modelo simbólico a que alguém recentemente chamou, com bastante propriedade, «uma Cultura concelhia — Cultura de vizinhança» 1.
    «Cultura de vizinhança», no âmbito da «Cultura concelhia» — adianta o autor da referida proposta — é «aquela que se forma desenvolve, e deve proteger-se e conservar-se, no território geográfico e cultural da divisão administrativa aqui considerada, o Concelho, autarquia da comunidade residente na circunscrição municipal». E assim sendo, parece-me ser de toda a vantagem procurar descobrir as raízes, a razão de ser de cada concelho, como se formou, como evoluiu, para que melhor saibamos compreendê-lo, continuá-lo, desenvolvê-lo. Assim procederei relativamente a Abrantes, o concelho onde me fixei há mais de 35 anos e relancei as minhas raízes.
    Com os seus 700 km2, beneficiando de um bom enquadramento posicional no conjunto do território português em geral e do Médio Tejo em particular — tendo a Beira a Norte, o Alentejo a Sul e Leste e a Estremadura-Ribatejo para Oes-sudoeste —, pode hoje considerar-se um concelho de charneira, bem dimensionado (mesmo até superior à média), equilibrado e consentâneo com as actuais realidades adminisfrativas, não levantando a definição dos seus limites já quaisquer diferendos, suponho...
    A fixação dos contornos exactos, de todas as linhas fronteiriças, foi no entanto bastante demorada, por vezes até algo conflituosa, e não terminou senão há pouco mais de um século. Contribuir com algumas achegas a esse processo, porventura desconhecidas ou de carácter subsidiário, para o aclaramento ou o simples registo da História, como aliás esta Revista já experimentou em número recente 2, é o único objectivo deste texto.
    Abrantes começou por ter uma área concelhia, ou 'termo", como então se designava, de enormes dimensões. No ano de 1173 —a referência mais antiga que se lhe conhece —o "castelo" de Abrantes [castelum de Ablantes] com o seu termo foi doado por D. Afonso Henriques à ordem militar de Santiago, para melhor defesa da linha do Tejo, apresentando os seguintes limites territoriais:
«(...) Pelo Zêzere, onde entra no Tejo, seguindo pela margem (direita) do Tejo até ao termo da Idanha; e além do Tejo pela cumeada sobranceira à vinha dos freires (da Ordem) do Templo 3, e daí como vai por aquela cumeada sobranceira à mata de Alcolobra até meter no arracefe, no Almegião 4, até à Ponte de Sor (quomodofert in arrace/ in Almegion, ad pontem de Soor), e daí como corre o rio Sor para montante até à cabeça de Algude (Alagoa?), e daí às cortaduras (da serra) de Marvão (ad taliadas de Marvan), conforme vertem no Sever, e torna (por este rio) ao Tejo»5 .
    Era, efectivamente, um extenso território este, mas de muito reduzida densidade populacional devido às guerras da Reconquista. Na margem direita do Tejo, resultara do desmembramento do termo da velha Idanha (Egitania) e abrangia grosso modo os actuais concelhos de Constância, Abrantes, Sardoal e Mação, enquanto na margem esquerda alastrava até à fronteira castelhana, englobando, para além de Constância Sul, Abrantes e Gavião, os actuais concelhos de Ponte de Sor (parte), Nisa, Castelo de Vide e Marvão (parte).
    Por quanto tempo se mantiveram estes limites?
   Ao certo não poderemos sabê-lo. Tanto o foral (de 1179) como as suas sucessivas confirmações régias não comportam quaisquer referências a marcas delimitatórias do concelho, talvez porque previssem desde logo uma circunscrição territorial flexível e importasse mais a administração da justiça e a cobrança de impostos do que a organização municipal. Porém, parece óbvio que aquele termo não podia durar muitos anos. A própria concessão do foral afonsino em Dezembro de 1179 — há portanto 125 anos — é já por si um indício de que o anterior termo deve ter sido modificado por essa altura, já que os Espatários não defenderam devidamente o território concessionado e permitiram até, nesse ano, uma incursão almóada sobre o florescente burgo abrantino.
   Não pode estranhar-se, pois, que em 1194 tenham sido doadas aos Hospitalários as terras de Guidintesta, para que nelas levantassem um castelo — que veio a ser o de Belver — e através deste reforçassem a linha defensiva do Tejo, ao mesmo tempo que se promovia o repovoamento das terras do interior norte (especialmente a área de Mação) e alto-alentejanas. O "privilégio de Belver" é, assim, da maior importância para o concelho de Abrantes, porque é o primeiro texto conhecido a definir com alguma precisão os primeiros limites do território abrantino entre o Tejo e o Zêzere. Por ele se verifica também que grande parte do vasto domínio a Sul do Tejo, que pertencera a Abrantes, passara aos freires do Hospital, criando-se assim uma nova fronteira. Eis o texto:

«Esta herdade [de Guidintesta] é circundada por estes termos: Acima do Tejo divide com o território do castelo [concelho] de ABRANTES (castel/o de Ab/antes) pela cumeada do Rosmaninhal (cummariam de Rosmarinal), como defluem as águas da ribeira de Eiras (rivulum de Areis), e daí sobe ao cume do Bando Maior (ad rostrum de Bando maiore) e daí ao cabeço da Amêndoa (ad caput de Amendoa), pela via mourisca directamente ao Zêzere, ao porto de Tomar (ou Tamolha?) (adportum de Thomalia)6. Além do Tejo (margem esquerda), entra no sítio em que havia uma exploração aurífera (per aurarium) onde extraíram cal e por onde as águas vertem para (a ribeira de) Alvega (ad Alvegam)7, por uma parte, e pela outra para o vale de Gavião; daqui segue pela Margem Fanzira até ao cimo da Melriça (ad rostrum de Merliza. hoje serra da Penha?) e daí, por Vide (per Vitem), ao porto / foz do Sever, contornando pelo Tejo até ao porto / foz do Enxarrique (Porto do Tejo, Ródão)»8.

 

 

 

    Esse era um tempo em que as fronteiras sofriam constantes oscilações de traçado, em virtude das lutas de reconquista além-Tejo e do jogo de interesses das ordens militares, pelo que não será de estranhar que o concelho de Abrantes, dada a sua posição de charneira, demorasse a estabilizar. Pelo diploma acabado de citar verifica-se, no entanto, que as confrontações a Norte do Tejo poucas alterações sofriam. É certo que Amêndoa e Mação foram durante algum tempo objecto de demanda entre a Coroa e a Ordem dos Hospitalários (= Malta), mas a verdade é que as duas vilas, tal como Ponte de Sor e a aldeia de Longomel, foram declaradas termo de Abrantes por uma sentença de D. Afonso IV (20.8.1346), no contexto da dita Ordem, após diversas inquirições que deram sempre razão à Coroa9; pelo que aquelas duas vilas — tal como diversos outros lugares do actual concelho de Mação — foram permanecendo ligadas a Abrantes por diversos laços e por vários séculos10.
    Mais complexa parece ter sido a evolução verificada a Sul do Tejo. Perdida a extensa faixa da margem esquerda do Tejo desde a ribeira de Alvega/Lampreia ao Sever, o concelho de Abrantes viria a estender-se mais para o interior Sul, além do Sor e da ribeira de Seda: Margem & Longomel, Chancelaria, Ponte de Sor e Alter do Chão, antes de terem os seus alfozes próprios, foram seguramente territórios sob jurisdição abrantina. Não sabemos exactamente desde ou até quando, mas eram-no na primeira metade do século XIII. Quanto ao lugar de Alter do Chão, terá sido desmembrado de Abrantes em 1249 (foral de Afonso III) ou já antes em 1232 (1.a carta de foral dada pelo bispo egitaniense)11 ; mas em 1384, por carta régia de 5 de Novembro, ainda era dada uma sentença para que o dito lugar fosse do termo de Abrantes com todas as jurisdições e que os homens-bons de Abrantes fossem dele tomar conta12 . Margem e Chancelaria foram integrados no ducado de Bragança na primeira metade do século XV13 . Ponte de Sor, conquanto já tivesse benefícios de D. Dinis e D. Fernando, foi elevado a vila e concelho por D. Manuel em 29.8.1514 (foral novo). Em reconhecimento dessa antiga sujeição, as ditas vilas ficaram obrigadas a pagar à Câmara de Abrantes um tributo anual, de que só vieram a libertar-se com o advento do Liberalismo, no século XIX — Ponte de Sor pagava "400 réis em dinheiro de contado" mais "180 réis de outro foro" atinente ao mesmo reconhecimento, Alter do Chão pagava 160 réis e Chancelaria 18014.
   
Adentro do domínio dos Hospitalários e do priorado do Crato ficaram, portanto e por muito tempo, Belver e o lugar do Gavião. Este só a partir de 23.11.1519 se constituiu em vila, já com novo estatuto (foral), embora ainda sem ser cabeça de concelho15... Restava para Sudoeste o gigantesco concelho de Santarém, com o qual Abrantes confinava desde tempos ancestrais16, pertencendo-lhe o lugar da Chamusca. Este só veio a autonomizar-se em 1561 , juntamente com Ulme, mercê de uma carta régia de 18 de Novembro desse ano que elevou os dois lugares a vilas, apesar da protestação vigorosa da antiga sede concelhia17.
Em síntese, foi pelos fins do século XV / princípios do XVI que o modelo concelhio começou a impor-se definitivamente em P01tugal, como unidade administrativa ejudicial, falando alguns autores mesmo de uma "universalização do modelo" e de um "processo de municipalização do território"18. Só no período de 1495 a 1545 foram criados, pelo menos, 16 novas vilas, das quais 15 se constituíram em novos municípios, se bem que os limites de alguns concelhos não tivessem sido logo fixados. De entre os motivos da elevação, destacam-se dois: a pedido dos moradores nesses lugares, que invocavam as vantagens advenientes; e a pedido de certas casas fidalgas, em resultado da concessão da terra em senhorio. Como exemplo deste segundo motivo temos o caso da Chamusca; do primeiro, o mais frequente, temos Sardoal (em 1531) e Punhete/Constância (quarenta anos depois), se bem que com algumas pequenas diferenças (maior empenho do rei, que invoca motuproprio, e alguma intromissão dos donatários, no caso do Sardoal).
  Pela sua pertinência, porque se trata dos dois concelhos mais avizinhados de Abrantes (se assim se pode dizer), historicamente com muitas afinidades e relações, vale a pena debruçarmo-nos mais demoradamente sobre eles.

 

Sardoal

    Tem-se dito que a fundação do concelho remontará aos começos do século XIV, alegando como justificação que a esse tempo o lugar já tinha juízes e procurador do concelho. Salvo erro ou omissão, não me parece uma interpretação correcta. Por essa altura um "lugar", podendo embora eleger juízes e procurador (mas não vereadores nem escrivães, que esses sim se constituíam em câmara e a esse tempo já começavam a aparecer), tinha obviamente uma categoria inferior à de uma "vila" e, em princípio, só esta podia aspirar a formar um verdadeiro concelho. A expressão "procurador do concelho" pode, por isso, induzir em equívoco, dependendo do contexto. No caso, exprimiria mais a ideia de colectivo, "que pertencia à população", que não era privado. Aliás, era frequente os lugares de maior dimensão terem dois juízes, feitos pelas câmaras, e um procurador eleito cada ano pelo povo, e disporem até de uma casa do concelho (que serviria de audiência), de um curral do concelho (para os gados), caminhos e rendas do concelho. Mas tudo isso dependia da sede concelhia, da vila ou cidade.
    De mais a mais, se o Sardoal fosse concelho por esses tempos, teria tido certamente os seus instrumentos de autonomia e poder: a sua carta de foral ou alforria, o seu pelourinho, o seu selo e armas municipais. E a verdade é que nada, rigorosamente nada disso se lhe conhece, em chancelaria alguma. Tê-los-ia recebido da rainha Santa Isabel, como pretendem alguns, com base numa simples carta que a mesma passou aos moradores do lugar, em 11.1.1313? Não me parece crível. O documento parece reportar-se simplesmente a uma questão de trânsito, da estrada da Beira para Abrantes e Punhete. Não se lhe conhece outro; somente do marido, D. Dinis. De facto, a Rainha Santa era donatária do Sardoal, mas por lhe ter sido dada pelo rei (em arras propter nuptias) a jurisdição de Abrantes e o padroado das suas igrejas, e como o era de outras vilas, sem que no entanto isso tenha implicado necessariamente a concessão de um foral, a separar terras e fazer concelho. Portanto, sem outras provas, nào vale a pena alimentar conjecturas e incertezas.


Pelourinho do Sardoal

   Isto não significa, todavia, que o Sardoal não fosse terra muito antiga, importante e populosa. Como prolongamento de Abrantes e sua zona de contacto, teve obviamente o seu relevo e o seu papel activo, conforme têm revelado, entre outros indícios, os levantamentos arqueológicos empreendidos. Sabemos mais que, pelos começos do século XVI, registava um invulgar crescimento demográfico, o que lhe permitia também grande desenvolvimento económico, motivos que o rei D. Manuel considerou suficientes para lhe conceder uma mercê preciosa ( 1507): a jurisdição do crime, que era retirada a Abrantes. «...Vendo nós a grande poboaçam e bemfeitorias que ha no lugar do Sardoal, e como cada dia se acrescentam, e assi ao que com a ajuda de Nosso Senhor esperamos que ao diante façam...» — diz o diploma logo a abrir (Doc. n.0 1 , em anexo). De resto, estou em crer que esta seria já, provavelmente, uma abertura para a autonomia plena, pois que já então poderia ter alguma.


Carta de D. João III, elevando o Sardoal a vila e desanexando-o de Abrantes (1531) 

    Entretanto fina-se o Venturoso. Sucede-lhe o filho, D. João III, o Piedoso, que confirma as mercês anteriores. Por volta de 1530 — dizem os elementos estatísticos então recolhidos —, contava o lugar já 500 vizinhos / fogos, correspondentes a cerca de 2000 habitantes, em que se incluíam 3 cavaleiros e 21 escudeiros... (Abrantes-vila não ia além dos 775 fogos, embora no termo atingisse 2651). Pelo que o monarca, aliás na exacta na linha do seu antecessor, não perdeu tempo a agir. E promoveu o lugar a vila e concelho, agora inteiramente autónomo, por sua carta de 22.9.1531, passada em Évora, às ordens do competente secretário Pedro de Alcáçova Carneiro. Nela o rei aduz que tomou a decisão de motu próprio e poder absoluto (livre, sem pressões), por ver o grande crescimento populacional que o lugar denotava e ainda o seu desenvolvimento (muitas benfeitorias). Mas não passa pela cabeça de ninguém que não tenha havido pedidos de moradores ou sugestões nesse sentido, embora não formalizados em requerimento. Sigamos o texto:

  «Dom Joham, etc., a quantos esta carta virem faço saber que, vendo eu o grande crecimento que (louvores a Noso Senhor) se faz na povoaçam do lugar do Sardoal, termo da Villa d'Abrantes, e como se emnobrece de fidalgos, cavaleyros, escudeiros e homees de cryaçam, e pesoas d'onra que nelle vyvem e que muy bem me poderà servir com armas e cavalos, e asy do muyto povo, pelos quaes sam feytos no dito lugar muytas bemfeytorias de muytas e de muy boas casas, e asy dentro como fora, muytas erdades de vinhas e olyvaes e outras muytas bemfeytorias, das quaes cada vez mais se faz e crecem por estas cousas, e por esperar que no dito lugar va em muyto mayor crecymento e nobreza, por o aver asy por muito meu serviço sem os moradores delle nem outrem por el les mo requererem nem pedyrem, de meu moto proprio, poder real e avsoluto, desmembro e tiro para todo o sempre o dito lugar do Sardoall do termo da dita Villa d ' Abrantes, cuyo termo ate'quy foy, e o faço por esta presente carta vylla e mando que daquy em diante se chame Villa do Sardoall e tenha a sua jurdiçam apartada por sy e sem reconhecimento algum à dita Villa d' Abrantes, e como a têm as outras Villas de meus regnos e com o termo que lhe mandey ordenar e conteudo na carta que diso mandey pasar asynada por mym e aselada do meu sello(...)»19.

     A reacção da Câmara de Abrantes, que saía coarctada no seu poderio e nos seus rendimentos, foi veemente, como aliás era de esperar, logo tratando de enviar à corte uma carta de contestação e uma representação composta de dois procuradores, João Garcês e Juzarte Soares, a requererem em justiça a anulação ou alteração do diploma (Doc. n.º 2, em anexo, de 8.11.1531). Mas os protestos terão ficado por aí. A decisão estava tomada e o mais que pode ter provocado foi um ligeiro atraso na publicação da carta de demarcação do termo, que acabou por sair a 10.8.153220

 

Constância

    A ligação desta terra a Abrantes é antiquíssima, pois, como vimos atrás, já em 1173 ficava integrada no seu limite, que partia precisamente da foz do Zêzere; e assim se deve ter mantido pelos séculos seguintes. Uma carta, que não vi, mas que aparece citada por alguns autores como sendo dos últimos dias de vida do rei D Dinis, a conceder jurisdição sobre os de Punhete, não deverá ser mais que uma confirmação de antigos privilégios. 
    Por volta de 1530 era bastante inferior ao Sardoal em população, não indo além de 311 vizinhos / fogos (pouco mais de 1200 habitantes), entre os quais se incluíam 7 escudeiros e 8 clérigos. Mas em 1570 era também já «povoação grande e honrada», com cerca de 500 vizinhos ou fogos, e tinha um estatuto de excepção, sendo o lugar comparável a algumas vilas do reino (vilas cíveis?), já com um termo próprio, corpo de câmara, com juízes, vereadores, procurador do povo e de una tantos oficiais administrativos, beneficiando, consequentemente, de alargada autonomia.
Continuava, todavia, dependente da Câmara de Abrantes em várias matérias...

 

Pelourinho de Constância

    D. Sebastião, que nunca terá posto os seus reais pés em Abrantes, esteve nesta povoação pelo menos duas vezes: em 29.9.1569, de romagem a N.ª S.ra dos Milagres (ou dos Mártires?), de quem era devoto, e nos primeiros dias de Novembro de 1570. E é muito natural que nesta última oportunidade se tenha comprometido de alguma forma com as elites locais a escancarar as portas da independência. Os homens-bons de Punhete, lembrados do exemplo de sucesso do Sardoal, não perderam tempo a redigir o requerimento. Expõem as suas razões, invocam qualidades e méritos, também algumas dificuldades, não se esquecendo inclusive de avocar a romaria de N.ª S.ra dos Mártires21
    O monarca, no cumprimento das Ordenações do Reino, ouve então os seus conselheiros e os desembargadores da do Paço. É mandado o corregedor da comarca (de Tomar) tirar averiguações; e este conclui e informa que havia no lugar 430 vizinhos / fogos, sendo alguns dos seus moradores fidalgos da Casa Real; que havia mais 40 proprietários com foro de escudeiros, homens honrados que iam colaborando no governo da terra; muitos pescadores e oficiais dos mesteres (ofícios ditos mecânicos), e ainda um médico (físico) e três cirurgiões. Enfim, decorrido apenas meio ano, a 30 de Maio de 1571 , o «Desejado» assinava o diploma que para sempre alçou o lugar em Vila e Concelho, isento de Abrantes (Vide Doc. n.º 3 em anexo).
    Os abrantinos não terão gostado de mais esta substancial amputação de território e em tão pouco espaço de tempo, mas não consta que tenham reclamado oficialmente da régia decisão. Tê-la-ão acatado, porém não sem algumas reservas e com razões para não nutrirem especial apreço por aqueles dois monarcas (D. João III e D. Sebastião). Ao que estes devem ter retribuído da mesma forma, voltando ostensivamente as costas, pois é sabido que jamais jornadearam por cá (ao invés de todos os precedentes), apesar de terem andado perto. Que saudades lhes terão ficado de D. Manuel e de D. João II! E, a esta luz, talvez se compreenda um pouco melhor por que festejaram tanto os abrantinos a "entrada" de Filipe II e, mais tarde, também a de D. João IV...
    Entretanto, o concelho de Punhete / Constância não ficara completamente satisfeito, porque era apenas termo e concelho de si mesmo, com uma só freguesia. Santa Margarida da Coutada e Montalvo ainda eram jurisdição de Abrantes; para as bandas do Oeste ficava a barreira do rio Zêzere, como limite natural; a Sul do Tejo é que lhe pertenciam «muitas heranças de vinhas, olivais e terras de pão», mas também não era vasta a extensão, apenas uma meia légua, «menos de quarto de légua» para cada lado. Ambicionava, por isso, mais território; e este podia consegui-lo sobretudo à custa de Abrantes. Daí que tenha intentado, através de personalidades influentes, alcançá-lo.
    Diogo Soares, alcaide-mor e donatário da vila, fidalgo do Conselho d'el-rei e Secretário de Estado, foi a pessoa melhor colocada22 . Embora já perto da Restauração (25.8.1640), ele acabou por conseguir de Filipe IV (III de Portugal), de uma só vez, a anexação ao seu termo das freguesias de S.ta Maria da Amoreira23, S.ta Margarida24 e Martinchel, todas de Abrantes, mais algumas faixas de terreno nas duas margens do Tejo — na direita, para o lado de Tancos, um corredor até às imediações do castelo de Almourol e na esquerda uma légua pela charneca adentro junto a Santa Margarida, retirada a Santarém (Doc. n.º 4, em anexo).
    Mas, estou em crer que o alvará régio não terá surtido efeito, porventura devido à revolução nacional do 1º de Dezembro de 1640, porque as ditas freguesias de Abrantes voltaram todas à origem. Seriam desanexadas de novo por decreto de 6.11.1636, uma vez mais num conturbado processo reformista, mas desta vez Santa Margarida e Montalvo separar-se-iam para sempre (a reclamação de Martinchel foi deferida e a freguesia reintegrada em Abrantes).

 

Concluindo...

    Foi Gama Barros quem disse que a história deste país se podia identificar com a história das instituições municipais. Tal afirmação do insigne historiador, embora à primeira vista redutora e simplista, encerra no entanto alguma justeza e pertinência. Porque, não obstante as origens do municipalismo se perderem no fundo dos tempos e ainda hoje sejam discutíveis, não obstante se reconhecerem diferenças capitais entre os primitivos concelhos do norte (mais cristão e senhorial) e os do centro-sul (mais instáveis por força da Reconquista), entre os rurais fronteiriços do interior e os mais urbanos implantados sobretudo nas áreas litorâneas, do que não podem restar dúvidas é que o poder concelhio cedo marcou a identidade portuguesa, e tanto que essa marca chegou bem arreigada até aos nossos dias e ainda vai prevalecendo sobre os intentos de regionalização.