Teresa Aparício*

 

Castelo de Bode é nome que evoca velhas lendas há muito esquecidas ou ruínas arqueológicas que não se sabe se alguma vez existiram, mas, o que ao certo se sabe, é que desde há meio século se encontra associado a uma das mais importantes centrais hidro-eléctricas do país. Foi, precisamente, em Janeiro de 2001 que comemorou os seus cinquenta anos de vida e apesar dos seus tão celebrados benefícios em vários sectores - produção de electricidade, abastecimento de água e turismo - a efeméride passou quase despercebida. 

O plano para a sua construção inseriu-se na "política de electricidade" anunciada em Julho de 1945 pelo Governo de Salazar, reconhecendo este que por razões óbvias, tal política só poderia tornar-se realidade após o fim da guerra e com recurso ao estrangeiro - importação de máquinas, utensílios, materiais, etc... A política nacional optou pelo apoio vindo de Inglaterra, na altura endividada em relação a Portugal. 

Na sequência de um acordo estabelecido entre os dois países, veio a Portugal uma missão inglesa composta por sete personagens técnicas que percorreu todo o país, fazendo um levantamento dos locais com melhores condições para que a referida "política de electricidade" se concretizasse na prática. O resultado deste trabalho, tecnicamente bem feito, acabou por influir, decisivamente, nas opções que conduziram aos primeiros grandes empreendimentos hidro-eléctricos portugueses. O Castelo de Bode situado perto da confluência do Zêzere com o Tejo, foi um dos locais escolhidos, pois as condições geográficas eram óptimas e até já havia por ali tradições neste campo. (O primeiro aproveitamento de energia hidro-eléctrica conhecido, até agora, no nosso país, situou-se em Tomar. Consistiu na construção de um açude no rio Nabão e deu origem à primeira rede de iluminação eléctrica, não pública, feita na Real Fábrica de Fiação de Tomar, em 1884, após um incêndio provocado pelo gás de iluminação.) 

As escavações no Castelo de Bode tiveram início em Março de 1947, seguindo as obras com bom ritmo de modo que em Julho de 1948 já se dava início à colocação de betão nas obras definitivas. Em Outubro de 1948, foi montado o primeiro equipamento na Central, em 1950 começou o enchimento da Albufeira e em Janeiro de 1951 entrou em serviço o primeiro grupo gerador. 

O Jornal de Abrantes de 4 de Fevereiro de 1951, transcrevendo o boletim "Informações" de 27 de Janeiro, relatava: 

"No dia 21 de Janeiro de 1951 , verificou-se um acontecimento da maior importância (...) foi inaugurada a Barragem do Castelo do Bode. 

Assim, transformou-se em realidade uma das grandes aspirações dos portugueses (...) justificada perante as possibilidades nacionais e os encargos ocasionados pelas importações de carvão (...). 

Por tudo isso, a cerimónia inaugural representa um dia festivo para todos os portugueses desde os Chefes de Estado e do Governo que se deslocaram aqui ao local, até ao povo anónimo que, presente em muitos milhares, vivem a inauguração da grande barragem."  

Quanto aos aspectos técnicos a barragem era assim descrita: 

"Bacia com 3950 km2 de área 

Capacidade da albufeira - 1070 milhões de m3 de água 

Potencial instalado - 135 000 kw/h 

Produção anual - 300 milhões de kw/h  

E composta por uma barragem em betão do tipo arco gravidade, com uma muralha de 115m de altura, um desenvolvimento de coroamento de 402 m e acciona três grupos de turbinas com uma potência de 36 000 cavalos. 

Nesta gastaram-se 430 000 de betão, o seu custo total foi de 600 000 contos e nela trabalharam milhares e milhares de operários portugueses." 

Um empreendimento desta envergadura teve um impacto grande na região e no país, muito para além da produção da energia eléctrica, razão principal da sua construção: 

- Constitui uma importante reserva de água (é o maior abastecedor da cidade de Lisboa e de várias populações ribeirinhas); 

- E um importante regularizador das variações hidrológicas da bacia do Tejo; 

- Revelou-se um local com grandes potencialidades a nível turístico, devido ao embelezamento introduzido na paisagem pela criação do enorme lago artificial, onde se podem praticar variados desportos náuticos; 

- A barragem obrigou à construção de várias vias de comunicação, constituindo a travessia sobre o paredão uma das mais frequentadas sobre o rio Zêzere e uma rota comercial e turística de grande importância. 

 

"Requiem" para um mundo que morreu

              Como sempre acontece, o progresso tem um preço e desta vez quem pagou a fatura foram os habitantes da zona, pequenos proprietários dos terrenos férteis do vale do Zêzere que, com muito trabalho, por ali praticavam uma magra economia de subsistência. Pessoas a quem a vida tinha negado o dinheiro e os saberes dos homens chamados "cultos" (duas fortes alavancas que fazem mover o mundo da política e dos negócios) receberam, pelas suas terras, fraquíssimas indemnizações, insuficientes para, noutro local, recomeçarem a vida com alguma dignidade. 

Aldeia submersa Enchendo barris de resina

               Mas, como era realmente a vida naquelas paragens, antes da existência daquele bonito lago azul que hoje ali podemos admirar? 

              Os diversos ciclos do ano eram bem marcados de acordo com o calendário: tinham as suas festas, os seus rituais e o trabalho desenvolvia-se também ao ritmo das estações. 

Pinhais e olivais cobriam as encostas do Zêzere. O rio era, então, um meio de transporte rápido e barato e era por ele que seguiam os toros dos pinheiros até ao porto de Constância, para daí serem conduzidos ao seu destino. 

Os troncos, depois de cortados, eram transportados à cabeça, por mulheres, até aos zorros - terrenos íngremes que depois de alisados se tornavam em rampas por onde os troncos rebolavam até à água. Esta faina tinha lugar no início da Primavera, quando o rio, após as chuvas e os degelos, corria mais caudaloso. 

Na época mais quente, os pinhais eram povoados pelos resineiros. Desde o raiar do dia, quando a atmosfera ainda estava fresca, homens e mulheres ocupavam-se da tarefa de "sangrar os pinheiros". Pequenas tijelas de barro eram colocadas sob um golpe superficial feito a meio do tronco da árvore. Passados dias, já cheias de resina, eram retiradas, substituídas por outras e o seu conteúdo vasado em barris que os homens carregavam camionetas que os levavam às fábricas. 

A apanha da azeitona era no Outono. Oliveiras pequenas, mas boas produtoras, cresciam e aguentavam-se durante séculos nas encostas mais íngremes. Em fins de Outubro começavam a ser varejadas e os seus frutos caíam sobre panos de serapilheira onde, em difíceis exercícios de acrobacia, eram escolhidos e recolhidos em sacos e transportados no dorso de animais que, ajoujados, os transportavam aos lagares mais próximos. 

No vale do Zêzere e na época do ano adequada, eram semeados os cereais, as batatas, os feijões, as melancias, plantadas as hortaliças, enfim tudo o que era necessário pára a subsistência diária. Depois, experimentaram fazê-las mais acima, nas encostas, mas aí o solo, empobrecido pela erosão, produzia muito menos que os nateiros do vale, como o poeta popular regista: 

Adeus ó Agua das Casas 

A ti pouco te conheço 

Cobriram-te as melhores terras 

Deixam-te a ponta do cabeço1

 

Suor, recordações, afectos alimentavam as raízes que ligavam este povo às suas terras. Para muitas destas pessoas o horizonte conhecido não ultrapassava os montes que ladeavam o Zêzere, atrás dos quais se viam todos os dias o sol a desaparecer e que de um dia para o outro viram o seu mundo submergir, num dilúvio que, sem esperança de retorno, os obrigou a rumarem à procura de outros céus e de novas estrelas que nem sempre lhes foram propícias. Os seus antigos sonhos jaziam agora sob as águas da albufeira e era preciso, com coragem, reconstruir a vida noutro local. 

Mas alguns houve que quase se deixaram morrer com as suas habitações e que só se conformaram em as abandonar quando a água, na sua subida lenta mas inexorável veio um dia, de mansinho, apagar o lume que ainda brilhava na sua lareira. A lareira, também chamada lar, era o coração da casa. 

E o poeta continuava, tristemente, a cantar: 

 

De Constância ao cimo do Zêzere 

Eu digo com ligeireza Em lado nenhum há alegria 

Em todo o lado há tristeza.

 

Foram várias as aldeias que ficaram totalmente subsmersas - Conqueiro, Pombeira, Foz da Ribeira, Videiral, Casal da Barca, Castanheira - e muitas outras ficaram truncadas e completamente descaracterizadas:

 

Ao povo da Macieira 

Lamento a sua mágoa  

O moinho e os Cinco Feixes  

Ficaram debaixo de água. 

  

E o futuro? A Deus (e aos homens) pertence

            Hoje, passados mais de cinquenta anos, debate-se, em Abrantes, o como rentabilizar melhor esta mais valia que constitui, para o concelho, a albufeira da barragem, cujas potencialidades ainda estão muito por explorar e ao mesmo tempo prevenir problemas que essa rentabilização possa trazer. 

A águas, abundantes e de boa qualidade, tornaram-se num manacial apetecido pelas redes de abastecimento das populações ribeirinhas: Lisboa, embora distante de mais de cem quilómetros, foi das primeiras a aproveitá-las e, quanto a Abrantes, está para breve a sua chegada às nossas torneiras. 

Os naturais da zona (entre eles muitos construtores e emigrantes) bem como empresas vocacionadas para o turismo deitam os olhos aos sítios mais aprazíveis, que são muitos para aí poderem construir Miradouro de Fontes - vista panorâmica vivendas e aldeamentos. 

Miradouro de Fontes - vista panorâmica Captação de água para Lisboa

Os barcos de recreio, motas de água, etc., a aumentarem de ano para ano usam, frequentemente, combustíveis bastante poluentes. 

Conseguirá a água da albufeira sobreviver, com qualidade a tudo isto? 

              Certamente que sim, se a inteligência e a coragem vencerem. Para isso é necessário fazer (e cumprir) um bom plano de ordenamento do território e tomar medidas de combate à poluição fortes e eficazes sem o laxismo a que muitos já se habituaram e de que se vão aproveitando.

Numa visão ampla e virada para o futuro dos responsáveis políticos e uma vigilância esclarecida por parte das populações locais serão igualmente imprescindíveis para que a mesquinhez e a ânsia de lucro, por parte de alguns, não comprometa e destrua os bens que pertencem a todos.

 

Notas:

* Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA. 

1. As quadras populares foram retiradas do artigo "Castelo de Bode: Cinquenta anos depois do êxodo" de José Martinho Gaspar, publicado no Jornal "Primeira Linha" de 25-1-2001.

2. Muitos elementos foram recolhidos nas revistas:

"Catelo de Bode" - C.P.P.E., Centro de Produção Tejo - Mondego 

"Aproveitamento hidro-eléctrico da bacia do Zêzere: consequências geográficas", Engenheiro Cunha, José Correia, Ed. T. C. Portugal

Artigo publicado na Revista Zahara nº1 de maio de 2003

 

  

Barragem do Castelo de Bode 

Rosa Barralé*

 

I

Ó nova Aldeia da Luz

Transplantada com raiz

Bem mais leve é vossa cruz

Que outras neste país

 

VIII 

- Aceitem que é boa ideia 

Aquilo que lhe querem dar 

Depois da Barragem cheia 

Como é que vão reclamar?

 

II

A meio do século passado

Era eu uma criança 

Eu vi ficar afogado

O que tinha por herança

 

IX 

E cada um a sofrer 

Sem terras e sem dinheiro 

Sem saber o que fazer 

Sem ninguém por conselheiro

 

III
Foi a azenha e o lagar
Nateiros e olivais
De fora ficou o lar
E cabeças com pinhais

X 

Foram partindo sozinhos 

E os que ficaram coitados 

Sem fontes e sem caminhos 

Mais pobres e isolados

 

IV

Houve outros mais desgraçados

Que só lhes sobrou a vida

Partiram despedaçados

Chorando na despedida

 

XI 

E deles ninguém saber quis 

P’ra nenhuma coisa boa 

Eles deram luz ao país 

E de beber a Lisboa

 

V 

Erraram de terra em terra 

Em busca de outras raízes 

Alguns venceram a guerra 

Muitos não foram felizes

XII 

Mas não tinham que beber 

Nem estradas p' ra circular 

Nem fartura de comer 

Nem luz p' ra se iluminar

 

VI 

As indemnizações recebidas

Foram tão mal calculadas

Que as pessoas traídas

Sentiram que eram roubadas

 

XIII 

Só o 25 de Abril 

Se lembrou dos que restavam 

E deu ao povo senil 

Uns mimos que desejavam

 

VII

E se alguém protestava

Dizendo que era pouco

Havia quem explicava:

- Se não receber é louco!

XIV 

E a história da Barragem 

Que esquecer não se pode 

Relembrei-a com coragem 

Esta, do Castelo do Bode

 

  * A Poetisa nasceu em Vale de Açor e assistiu ao enchimento da albufeira.

  

 

Quadra à Barragem do Castelo de Bode

 Martinho Henrique - Carreira do Mato*

 

Meus senhores queiram ouvir

O que agora contar vou

Foi em 1950      

 

 

Que a Barragem se tapou.

 

Adeus Rio de Zêzere
Agora já vales mais
Apanhaste para teu fundo
Grandes quintas e olivais

 

Muita gente ficou aos ais 

Foste um grande tirano 

Levaste pão e azeite 

Já não temos outro ano.

 

Adeus Castelo do Bode 

Aonde trabalha o operário 

Deste muitos prejuízos 

Ao pobre proprietário.

 

Temos a Cabeça Gorda 

Esta chorando suas máguas 

Adeus hortas da ribeira 

Ficaram debaixo das águas.

 

Temos o bairro ao seu lado 

Sofrendo um golpe cruel 

Encontra-se melhorado 

O lugar de Martinchel.

 

Temos então a Medrôa 

O que ela assim dizia 

Que estava um pouco longe 

Mas ainda muito sofria.

 

Temos nossa freguesia 

Que é nossa aldeia 

Até os lagares de azeite 

Foram afogados com a cheia.

 

O presidente da junta 

e os seus colegas 

Com os superiores foram falar 

Que precisam de uma ponte  

Para toda a gente passar.

 

Era bom que se fizesse 

Esse benefício então 

Para passarem para a missa  

Para caminho da religião.

 

Carreira do Mato sofreu 

Espera de melhorar 

Todos os outros lugares  

Por lá teem que passar.

 

Temos Bioucas e Souto 

E também Machieira 

Ainda um dia mais tarde   

Será por cá uma carreira.

 

Temos todos estes lugares 

E Ribeira da Brunheta 

Também por cá passará  

Fica uma terra perfeita.

 

Está muito aumentada 

Podia ser freguesia 

Ainda em breves tempos 

Cá temos uma padaria.

 

Já temos uma salsicharia 

Coisa que não se esperava 

Ainda entre breves tempos 

Se vai fazer uma estrada 

Vejam então meus senhores 

Se está ou não aumentada

 

Temos todos quanto é preciso 

Já temos jogadores de bola 

Ainda entre breves tempos  

Vamos ter nova escola

 

Tem tocadores de viola 

Cantadores a toque dela  

Ainda entre breves tempos  

Se vai fazer uma capela.

 

Eu ajudo e dou para ela 

Algum dinheiro ou valor 

Para irmos lá á missa 

Adorar Nosso Senhor.

 

Causa pena e horror 

A quem pensa bem assim  

O prejuizo que a Barragem deu  

Até Sernache do Bom Jardim.

 

Foi uma coisa sem fim 

O terreno que percursa 

Ficou 10 metros debaixo de água  

A ponte do Vale das Ursa

 

Adeus boas propriedades 

Valeram pouco dinheiro  

Boas quintas que havia  

Lá no Rio Fundeiro.

 

Todos tivemos que engulir 

Como se fosse um bom petisco 

Quem conhecia a quinta e prédio 

Do Senhor Doutor Francisco. 

 

Todos tivemos que engolir 

Como se fosse uma maçã  

Tudo a Barragem afogou  

Até a ponte da Bouça. 

 

E aquela gente coitados 

Lá tinham seu bem estar 

Até com barco de pesca  

De casa os foram tirar.

 

Eles gritavam em altas vozes 

Quando a agua subia 

Que morriam afogados  

Ai Jesus, quem lhe acudia.

 

Ainda estamos esperando  

Da região se melhorar 

Quando vier electricidade  

Do nosso governo nos auxiliar.

 

Nas contribuições 

Ele nos irá ajudar 

Ficámos sem rendimento 

Não temos dinheiro para pagar.

 

Viva nosso Salazar 

Viva tambem Carmona  

Tenham compaixão de nós  

Ficámos sem pão e azeitona.

 

Agora vou terminar 

Em paz e sem despiques  

O notante da quadro (sic)  

Foi Martinho Rodrigues.

 

Adeus Careira do Mato 

A onde eu sou morador 

Adeus ó grande Barragem 

A minha terra deste valor 

 

Visado pela Comissão de Censura 

Tip. Aguia d'Ouro - telef. 71 Abrantes

*Este poeta popular escreveu estes versos aquando do enchimento da Barragem de Castelo de Bode.

Artigo publicado na revista Zahara nº1 - maio 2003