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O porto de Abrantes, na margem sul do Tejo

 

POR JOAQUIM CANDEIAS DA SILVA - Doutor em Letras (História), professor aposentado, da Academia Portuguesa de História e do CEHLA.

Ao presente artigo colam-se algumas peripécias, cujo registo também poderá interessar como margens da memória, ou seja, como exemplo de certos condicionalismos deste ofício ou da historiografia recente, que raramente acodem à superfície.

 Começou a ser arquitetado em 1974/75, como trabalho académico (dissertação ou trabalho final da licenciatura em História) a apresentar à Faculdade de Letras de Coimbra. Perante a obrigatoriedade de escolher um tema, indaguei nos acervos documentais do município de Abrantes, então instalados no Museu D. Lopo de Almeida (no Castelo), alguma matéria investigável na área da História Económica Moderna suscetível de ser tratada de acordo com a metodologia que nos era recomendada, em moldes seriais. Manuseados os índices ou inventários disponíveis, dois títulos me despertaram a atenção: «Receita e Despesa da Câmara» (com livros desde 1616) e «Registo das entradas e saídas de barcos no Porto de Abrantes» (século XVIII).

Se o primeiro foi logo abandonado, por não permitir séries regulares e sequenciais devido ao desaparecimento de muitos livros, já o segundo parecia aliciante, desde que o Arquivo garantisse a existência de elementos suficientes e o respetivo acesso. Para tal era exigido aos investigadores uma autorização expressa do Diretor do Museu, então o saudoso Dr. João Manuel Bairrão Oleiro, que não residia em Abrantes e só de longe em longe cá vinha. Pedi essa autorização, para a consulta, por escrito. E a resposta veio, simpática, mas a destempo. Face à relativa urgência que o orientador do seminário nos impunha [era ele o conceituado Professor António de Oliveira], optei por um outro tema, cujo trabalho de pesquisa deveria ser feito no excelente Arquivo da Universidade.

E tudo acabou por correr muito bem, academicamente, ao ponto de ser cotado com a classificação máxima e ser mesmo incentivado a ficar na Faculdade como assistente, o que por razões diversas não aceitei... Mas fiquei sempre de olho naquele título ou livro sobre o movimento do Porto de Abrantes, pelo seu presumível aproveitamento para a História Económica, e a ele voltei logo que pude, retirando os dados essenciais da documentação, que afinal eram bem menos relevantes do que esperava, conforme adiante veremos. Mais uma vez, no entanto, ficaram de reserva, na gaveta. Entretanto, já nos anos 90, saíram na imprensa local umas notas sobre este mesmo assunto. «Ainda bem - pensei eu - é menos uma tarefa para me (pre)ocupar». Todavia, analisando-as melhor, verifiquei que tal assunto mereceria maior e melhor desenvolvimento.

 Chegou agora a oportunidade. Não sem um contra, do momento. O tempo disponível para a formalização e entrega do produto é escassíssimo. Este não será bem o artigo que imaginei. Decerto que muito vai ficar por dizer.

0 PRIVILÉGIO DE SE TER UM RIO CHAMADO... TEJO

Abrantes (sítio e povoado) não apareceu do nada nem nasceu por acaso. Tinha mesmo excelentes condições naturais para ali se fixarem pessoas e progressivamente se desenvolver desde logo a posição estratégica do morro, com vistas de grande alcance, adequado para a defesa e a dominar vastas planícies férteis em redor. Depois, a sua centralidade, numa encruzilhada de vias em todas as direções. Mas, de todas as condicionantes, há uma que sobreleva das restantes: o rio. Sem o Tejo, Abrantes nunca teria tido a história que teve, desde as mais remotas eras. Sem o Tejo, Abrantes não seria Abrantes. [Veja-se o que a propósito escrevi num artigo de 1987, «Abrantes, concelho do Tejo - Perfil arqueológico», Atas do II Congresso do Tejo - Que Tejo, que futuro?, 2.° vol., pp. 39- -46; e, já nesta revista, os artigos «Da lenda à História: Abrantes», Zahara, n.º 8, 2006, pp. 49- -69, e “A investigação histórica como fator de desenvolvimento cultural e turístico: Alguns exemplos e propostas na área do Médio Tejo”, Zahara, n.º 13, 2009, pp. 28-38].

O potamónimo Tejo parece ser de origem fenícia e, segundo alguns etimologistas, terá passado ao grego (Tagos) e ao latim (Tagus), significando “piscoso” (porque abundante em peixes de várias espécies); e daí, porventura, a construção de pesqueiras e caneiros ao longo do curso para facilitar as tarefas da apanha. Mas o rio seria também famoso pela captação de pequeníssimas pepitas de ouro: ficaram célebres as referências de alguns autores, como Plínio “o Velho” (Tagus auríferis arenis celebratui), Marcial (Fluvius Hispaniae qui ramenta aurea fertur), ou Ravízio Textor (que mimoseou o rio com epítetos dourados como «aurifer, aure dives aurifluus, auricolor, locuples, metalliferj. De tal modo esta ideia do Tejo aurífero foi cristalizando que se gerou a lenda de Abrantes ter nascido da corrupção de Aurantes-, e houve até quem tenha testemunhado ter o rei D. Dinis mandado fabricar uma preciosa coroa e um majestoso ceptro, a partir do ouro tagano.

Mas um rio internacional como o Tejo, o maior da Península Ibérica, uma espécie de espinha dorsal da mesma e com a sua ampla bacia a ligar duas das suas maiores áreas metropolitanas, tinha de ser muito mais que piscoso e aurífero. Ele foi (e ainda é em boa parte) a artéria vital de um enorme corpus; a receber e distribuir energia pelas suas imensas ramificações. Ele foi elo de ligação a unir margens e populações, que por vezes até pareciam de costas voltadas. Ele serviu de canal de navegação, entre portos e portas. E mais que isso: foi eixo vial (espécie de estrada em movimento contínuo), para transporte de pessoas, gados, mercadorias e.. também de ideias. Foi abertura, do campo à cidade, do interior ao litoral - e vice-versa; e de um país a outro país e ao Mundo. E tudo isto, sistematicamente, ao longo dos séculos, de milénios.

Abrantes teve, por conseguinte, este grato privilégio.

UM POUCO D0 LONGO HISTORIAL DA NAVEGAÇÃO E DA NAVEGABILIDADE DO RIO

Pelo pouco que fica dito se pode avaliar quanto o rio foi elemento fulcral para a vida das populações que se foram fixando nas suas margens, devendo assentar-se desde logo numa ilação que parece óbvia: ele exerceu inevitavelmente um papel decisivo no desenrolar do processo histórico de todos os tempos, mormente nas vertentes económica e dos transportes. Atesta-o, já da Pré-história e Proto-história - volto a frisar -, a numerosa cadeia de estações arqueológicas ou arqueossítios, tanto nos terraços fluviais como nas margens inundáveis; garantem-no os muitos testemunhos luso-romanos e mesmo das civilizações subsequentes [Vejam-se as Cartas Arqueológicas desta região e sobretudo a do Concelho de Abrantes]; e comprovam-no as primeiras notícias documentais de que dispomos desde a integração do território no Reino de Portugal.

Relembremos, depois, a ação e os cuidados do primeiro monarca em tomo do Caneiro de Abrantes. Era através do rio que circulava muita gente e se faziam muitas das transações comerciais, porque não havia estradas terrestres ou as que havia eram muito deficientes e perigosas. Em 1295, por exemplo, do vinho que viesse à vila pelo rio em tonéis, devia o transportador pagar de relego um alqueire e meio, pelo que o rei D. Dinis concedeu ao concelho a mercê de ser indemnizado, passando a não admitir vinho de fora na maior parte do ano. Pelos meados do século XIV sobreveio uma gravíssima crise demográfica e económica, que foi acompanhada de uma não menor crise político-militar e em particular da 3ª guerra fernandina (de finais de 1381 a agosto de 1382).

Então, como medida para minorar os problemas e bem assim alguma obstaculização fiscal levantada por Lisboa, mandou o rei D. Fernando passar uma carta de mercê ao concelho e homens bons de Abrantes: foi esta dada em Santarém, a 5 de Junho de 1381 da era de Cristo (1419 da era de César) e autorizava que de Lisboa, pelo Rio Tejo acima, pudessem os barqueiros ou mareantes do Tejo trazer [ao porto de Abrantes], sem qualquer embargo das justiças e autoridades fiscais, sal, ferro, armas e outros mantimentos de que houvessem necessidade para abastecimento da vila. É este o documento:

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Entrou-se de seguida na II Dinastia e na era da Expansão Além-mar. E, logo em abril de 1415 vamos encontrar, na confluência do Zêzere junto a Punhete (que então era termo de Abrantes), preparativos secretos da armada que havia de seguir para Ceuta, sendo provável que algumas galeotas daqui integrassem a expedição. Seguir-se-ia um período brilhante da história abrantina, com centenas de abrantinos a inscreverem o seu nome na gesta nacional ultramarina. Praticamente todos os reis dessa dinastia passaram (e se instalaram mesmo por algum tempo) na vila ou no seu concelho; e Abrantes cresceu demográfica, social e economicamente, ao ponto de se tornar uma das terras mais populosas e prósperas do reino. O seu porto do Tejo conheceu então uma animação nunca antes vista, ao ponto de se tornar no mais movimentado depois de Lisboa, a cabeça do Império. Há notícia de haver no rio, pelo mear do século XVI, mais de 1400 barcos para o comércio ribeirinho: Abrantes tinha 180 (100 de carreira e 80 de pesca); Coina, Almada e Seixal, 150; idêntico número possuíam Povos, Unhos, Frielas, Tojal, Camarate e Sacavém; Constância e Asseiceira, 120; Tancos 100, os mesmos que Santarém1.

Mesmo já num período decadente, como foi o final da dinastia de Avis, a navegação do Tejo não foi descuidada. Segundo Veríssimo Serrão, «O regimento dos barqueiros de Lisboa, de 1572, impunha normas de segurança marítima para o comércio ribeirinho. Os arrais e pilotos tinham de comprovar a sua experiência no mister. Todas as barças e caravelas que navegavam no curso do Tejo, pelo menos desde Lisboa até Punhete/Constância, deviam trazer agulhas de marear, “carregadeiras nas vergas”, lastro e outros utensílios para evitar desastres que eram correntes. Nenhum barco ou batel que passasse de Almada ou no esteiro do rio de Sacavém podia levar mais de oito pessoas, sob pena de elevada multa, nem poderia ter por arrais ou seu ajudante “nenhum homem mourisco nem índio nem preto nem mulato quer seja forro quer captivo”. No percurso do Tejo, as barças transportavam variados produtos: palha, lenha de fomos, cereais, sal fruta, peixe e outros géneros. De Abrantes e das Lezírias de Santarém recebia a capital grande carga de melões. Tais dados comprovam a importância do comércio fluvial no maior rio português, permitindo compreender a dependência económica em que dele se achavam as povoações ribeirinhas»2.

Adveio entretanto a dinastia filipina, período um pouco conturbado e ainda polémico. Todavia, seria essa a fase em que o Tejo mais beneficiou de obras de regularização e expansão da sua navegabilidade, mormente durante o reinado do primeiro Filipe (graças à visão do Eng.° Antonelli), estendendo a ligação fluvial a Alcântara, Toledo e mesmo até Madrid... O novo fôlego da navegação do Tejo permitiria o ressurgimento de grupos socio- profissionais a ele ligados (como pescadores, barqueiros, calafates, cordoeiros, carreteiros, sirgueiros, etc.), motivando o alongamento de ruas (como as da Barca, a mais populosa de toda a vila) e o aparecimento de pequenos bairros ao longo das margens. Num levantamento que produzi para esse período apurei que a maior parte da população abrantina estava ligada ao trato através do rio, era dele que vivia: dele dependiam mais de 300 mareantes ou barqueiros (o maior grupo profissional), mais de 70 pescadores, 96 almocreves, 36 carreteiros, 21 calafates.

A expansão ultramarina continuou também a fazer-se, e com a participação de Abrantes, a vários níveis. De 1580 a 1612 saíram do Tejo para a índia 186 embarcações, 100 das quais voltaram a Lisboa. Por volta de 1620, segundo uma conhecida estatística de Fr. Nicolau de Oliveira, o porto de Abrantes continuava a ser, a larga distância, o principal do rio (excluindo obviamente a área estuarina de Lisboa); e em 1641 podiam os procuradores do vila/concelho afirmar com orgulho às Cortes de Lisboa que «junto a ela tem mais de cem embarcações que navegam para esta cidade e para outras muitas partes». Ainda no tocante ao sobredito grupo dos mareantes/barqueiros, era esse o único dos “24 ofícios mecânicos” a eleger quatro juízes, sendo dois da carreira de Abrantes- -Lisboa e outros dois de Abrantes-Alcântara.

Com o fim da monarquia dualista ou União Ibérica, deu-se claramente um retrocesso, mormente devido às guerras da Restauração que se seguiram, mas continuou a fazer-se a navegação até Ródão e mesmo as relações com os portos castelhanos de Herrera e Alcântara nunca acabaram de todo. Atingiu-se, assim, o “século das Luzes”, ainda de forma titubeante.

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O porto de Lisboa, no Tejo, nos finais do século XVII [gravura de Pierre Aveline (1656-1722), existente na Biblioteca Nacional].

Logo em 1700, tendo o presidente da Junta do Tabaco, na perspetiva de expandir o seu produto na região, pedidas informações ao Conselho Municipal de Castelo Branco, este respondeu que o melhor meio de o transportar seria através do Tejo, sobretudo no Inverno, indo até Ródão. Poucos anos volvidos, em Março de 1711, para obviar à carestia do pão em toda a região (face às más colheitas do ano anterior), os mesmos conselheiros albicastrenses tomaram medidas de proteção severas fazendo com que os transportadores se obrigassem a ir todas as semanas a Abrantes procurar o produto, com pena de 4$000 (quatro mil réis) se o não conseguissem. Sabe-se mais que em 1755 houve um reconhecimento do Tejo, por espanhóis, com projeto de Simón Pontero. Sem consequências.

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A evolução continuava em águas mornas. E o século XIX amanheceu, ainda com grande instabilidade política internacional, com realce para as invasões napoleónicas, que deixaram marcas devastadoras na economia relacionada com a navegação do Tejo - não sendo por acaso que a l.a Invasão se fez quase toda ao longo da Linha do Tejo... A 3.a Invasão (1810-1812), essa seria a mais catastrófica, em face da política de «terra queimada» aplicada por ambas as forças em confronto. A miséria vivida no meio rural e mesmo em muitas das vilas ajudou à fase crítica geral. E foi assim que algumas câmaras foram obrigadas a tomar medidas fortes para remediar a situação calamitosa. O conselho municipal de Castelo Branco, então, mais uma vez se impôs: procurando garantir o abastecimento de víveres a partir da capital, impetrou a 4.1.1812 um privilégio para dois barcos do porto de Abrantes - o n.º 21 de Rafael da Fonseca e o n.º 60 de José Pinheiro de Mena - os quais teriam como contrapartida «a obrigação de transportar todos os víveres atribuídos à região de Abrantes, ou até Vila Velha, sempre que as águas do Tejo o permitissem»3.

Mas a guerra também foi um fator positivo e de aceleração do progresso para Abrantes. A sua defesa reforçou-se: o castelo foi classificado praça militar de 1ª ordem, veio nomeado um marechal de campo e a vila tornou-se toda ela num quartel-general e num dos principais depósitos de munições e víveres do país. Era o “nó logístico do Centro” e a “chave de Portugal”. E também o porto do Tejo se reanimou, com novas obras. Uma delas ocorreu ainda durante a guerra, com a construção da ponte-cais militar de barças a ligar as duas margens do Tejo, arrojado projeto para o tempo, da autoria do coronel Sousa Ramos (de que restam alguns pegões ou murões). Logo a seguir, em 1812, imediatamente após a retirada de Massena, novo impulso: o estudo de navegabilidade encomendado pela Coroa ao tenente-coronel engenheiro Anastácio Joaquim Rodrigues, que previa a implementação de dez léguas de sirgadouros entre Abrantes e Vila Velha, pois que os velhos troços mandados rasgar por Filipe II e Antonelli em 1581 já estariam intransitáveis ou eram insuficientes. Consignavam as novas obras uma orçamentação não inferior a 250$000 réis [É possível que datem de então alguns sirgadouros ainda hoje visíveis, como são aqueles bem conservados junto à Barca da Amieira].

Cerca de uma década depois, começou o levantamento do marechal espanhol Francisco Xavier de Cabanes (a quem o rei Fernando VII concedera o privilégio da navegação do Tejo entre Aranjuez e a fronteira luso-espanhola) - foi a bem conhecida Memória sobre la nevegación del rio Tajo des Aranjuez hasta elAtlântico. Nesse sentido empreendeu o Eng.° espanhol Agostinho Marcu Artu, em 1829, uma viagem de reconhecimento e estudo do Tejo, de Aranjuez a Lisboa (ida e volta), com o objetivo de fornecer elementos concretos ao sobredito Xavier de Cabanes. E ainda no mesmo ano foi celebrado um tratado respeitante à navegabilidade, entre os dois monarcas ibéricos (Fernando VII e D. Miguel I), que foi firmado em Lisboa a 31 de agosto pelos embaixadores respetivos, Joaquin de Acosta y Montalegre e Visconde de Santarém. Deste modo conseguia Cabanes ter em Portugal o privilégio que antes tinha logrado no seu país, habilitando-se a navegar livremente em todo o curso do Tejo (de Aranjuez a Lisboa).

Mais. Na sessão parlamentar portuguesa de 11.11.1840 - discutia-se aí a navegação do Douro - é Almeida Garrett quem profere estas sábias palavras: -« Tomara eu que o Tejo, que já até certo ponto nos serviu de comunicação com Espanha, o pudesse tomara ser; tomara eu que, em lugar de derrubarem todos os dias as terras do Ribatejo no leito dele, que o estão entulhando, todas as nações do mundo fossem interessadas nessa navegação e que todos os dias eu visse, não só a bandeira espanhola, mas as bandeiras de todos os países arvoradas nos barcos que viessem por ele abaixo». Em 1844/ /45, outro espanhol, Manuel Bermudez de Castro, obteve do seu governo a mesma concessão de Cabanes em Espanha e tentou alcançar do Governo Português idêntico privilégio da fronteira até Lisboa. Mas gora-se de novo. O que não quer dizer que todos osesforços fossem vãos e tudo resultasse negativo.

Não obstante os fracassos, a navegação continuou. Era ainda grande, pelos meados do século XIX: em 1859, o movimento do porto de Abrantes foi de 3876 toneladas importadas e de 7635 exportadas. Para a Beira, em 1875, ainda se movimentavam entre Abrantes e Vila Velha (e vice-versa) 278 embarcações, representando na globalidade 1360 toneladas. E mesmo posteriormente, pelos finais do XIX e já século XX adentro, não faltaram iniciativas com o objetivo de relançar a navegabilidade e os transportes fluviais. O Tejo português dispunha, por volta de 1900, de quase 30 km de sirgadouros em alvenaria. Contudo, há que reconhecê-lo: era uma luta inglória para dominar a natureza, contra os avanços tecnológicos e a modernidade. O advento do caminho-de-ferro e sobretudo, depois dele, a camionagem, iam vibrar rude golpe em tais aspirações.

DO PORTO DE ABRANTES

Detemos deste concelho referências a diversos portos, que nos vão surgindo, desde longa data, na documentação escrita. Alguns não seriam portos fluviais, mas sim “portos secos”, localizados em sítios estratégicos, por exemplo na confluência de caminhos: seria o caso do porto de Alconchel (perto da ribeira de Alferrarede, século XIV), do porto de Coalhos e do porto Ancho (este junto ao rio Torto à Arrifana, sécs. XV-XVI), do porto das Eiras (próximo do anterior e da mesma época), ou do porto Garrido (algures entre S. Miguel e S. Facundo, séc. XVI); mas a maioria seriam portos fluviais, podendo destacar-se, para além dos situados no Tejo aos pés da vila, os de Alvega e Barca de Bandos, da Amoreira e de Rio de Moinhos.

O porto de Abrantes (ou mais exatamente o “porto das Barças”) era uma designação bastante genérica, que abrangia na margem direita uma faixa junto às Barreiras do Tejo (também chamada noutro tempo Rocio do Norte), e na margem esquerda uma faixa um pouco maior centrada no Porto das Barças propriamente dito (a designação mais antiga que se lhe conhece, no atual Rossio ao Sul do Tejo). Do meu conhecimento - conquanto existam referências anteriores às barças de passagem -, ele aparece-nos com esta forma gráfica pela primeira vez num documento datado de 3 de outubro de 1371, que se encontra no Arquivo Municipal: é o auto de posse de uma vinha situada junto do Porto das Barças além do Tejo, que fora doada à Igreja de S. Vicente por um tal Lourenço Peres “o macheiro” e por sua mulher4.

Afora essa referência, é extremamente escassa, para a Idade Média, a menção do porto de Abrantes. Ao invés, tal como nos informa Hermínia Vilar, há bastantes informes acerca das barças. Sabe-se, por exemplo, que a sua manutenção era feita por dois homens, que para o efeito recebiam uma “soldada” e ficavam isentos de participar na “vintena”; e que todo o termo do concelho (e ainda alguns concelhos vizinhos) contribuía para o sustento das mesmas barças, «cuja importância era realçada pelas exortações que os monarcas faziam, para que as barças passassem os caminhantes sem demora e segundo os preços fixados, tanto no que se referia à ligação entre as duas margens do Tejo como do Zêzere»5. Contudo, isto não significa que deixasse de haver transações no local. Como vimos atrás, mais ou menos, sempre as houve.

Ao porto de Abrantes, como aos outros do Baixo e Médio Tejo, iam chegando de fora produtos necessários ao consumo corrente, como o sal, o peixe do mar, os panos e diversos outros de importação. E daqui saíam, predominantemente para Lisboa, géneros agrícolas como o azeite, o vinho, o trigo, madeiras, mel, cera, couros, algumas frutas e manufaturas, alguns minérios, e mesmo peixe do rio (sáveis, azevias e lampreias). O movimento seria bastante intenso e o batel, a barcaça ou bateira inicialmente, mais tarde os varinos e fragatas - à vela, à vara ou a remos -, eram os meios de transporte mais frequentes. O longo cais da margem sul, mais fundo e remansoso, era bastante adequado; e nas proximidades havia espaços amplos e quase planos para armazenamento de mercadorias.

Poderemos então fazer uma pequena ideia do que foi o movimento deste porto ao longodos séculos: tanta gente e tanto trabalho, em épocas em que escasseavam meios técnicos e tinha de imperar a massa muscular; a azáfama e o esforço de barqueiros e mareantes, de carreteiros e almocreves; também dos seus acompanhantes para tarefas mais duras, alguns porventura mão-de-obra escrava; dos perigos em tempo de borrasca e de cheias, ou pelo contrário em tempo de canícula e falta de água. Mais concretamente, o que terão sido as canseiras para meter em barcos, transportar, descarregar, e acarretar depois pela íngreme Rua da Barca acima, por exemplo, toda a cantaria calcária que veio pelo Tejo (por intermédio do porto de Tancos), para a reconstrução das igrejas de S. Vicente e S. João?! Ou, pior ainda, dos mármores de Estremoz transportados para o Escoriai, decerto através do porto de Abrantes, até Toledo?!!!...

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Varino no porto do Tejo.

E que dizer das preocupações dos responsáveis pela administração para manter em tudo a boa ordem, a justiça e a paz, face aos eventuais conflitos, abusos e prevaricações que seguramente aconteceriam naquele bulício de vida? Veja-se, por exemplo, para o período filipino, o pequeno extrato do Livro de Posturas que vai no Apêndice Documental, ou a preocupação já citada em manter quatro juízes eleitos de entre os mareantes locais para a “Casa dos 24”. Há que acrescentar, todavia, a nomeação posterior de pelo menos mais dois oficiais adentro daquele importante grupo socioprofissional: um “arrais do porto” e um “cabo de mar”.

Muito mais haveria que dizer acerca deste assunto. Mas, conforme vai expresso no subtítulo do artigo, é minha intenção deixar aqui, tão-só, alguns «Subsídios para um estudo». No ponto seguinte darei mais algumas achegas que me parecem importantes, para o século XVIII; porém, tanto para esse século como para o XIX, outro levantamento haverá por fazer. Por agora, deixo apenas mais alguns apontamentos sumários de uma batida rápida feita na documentação do Arquivo Municipal. Trata-se de alguns despachos oficiais com certo interesse, que passo a citar:

- de 1681, uma carta do marquês de Fronteira para a Câmara de Abrantes (CMA), com algumas providências sanitárias a observar no movimento das barças deste porto;

- de 1703, uma provisão do rei D. Pedro II a nomear Manuel Ferreira Burguete para servir de depositário das munições que fossem remetidas ao porto (tratava-se da preparação para a Guerra da Sucessão de Espanha, de 1704 a 1715);

- de 1799, um aviso da rainha D. Maria I ao juiz de fora, para que todas as barças existentes no porto ficassem disponíveis para a construção de uma ponte de barças;

- de 1804, um certificado do Terreiro Público de Lisboa que autorizava a firma Jacob Dohrman & C.a a transportar trigo para Badajoz / Estremadura castelhana pelo porto de Abrantes (estava-se em vésperas do Bloqueio Continental e na antecâmara da 1ª invasão francesa - seriam por cá transportados mais de 1110 moios...);

- de 1820, uma provisão régia (já posterior à Revolução Liberal) a regular o transporte fluvial de sal do porto de Abrantes ...para Portalegre.

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Nesta imagem e na da página seguinte, podemos observar carregamentos de cortiça no porto pelos começos do século XX [AHA, Fundo Francisco Salgado Tomás].

Quanto ao século XX, existe (entre outros) um estudo muito interessante do Prof. Jorge Gaspar, um geógrafo com provas dadas, intitulado «Os portos fluviais do Tejo» (1970), em que o porto de Abrantes foi muito bem tratado. Nele se afirma e prova, designadamente, que este porto, ao contrário de outros fluviais, beneficiou de alguma reanimação na primeira metade do século, em particular por ocasião da II Guerra Mundial (1939-1945), com o negócio da exportação de cortiça. O autor, que esteve no local em trabalho de campo, apresentou dele alguns mapas, esquemas e quadros, e ouviu pessoas competentes e experimentadas, como o Sr. Pedro Maria Duarte, um antigo construtor de barcos que herdara a profissão do pai e do avô e que foi o último a paralisar a atividade em 1943.

Ali se afirma, entre muito mais, que em 1920 o porto do Rossio ao Sul do Tejo ainda tinha uns 40 barcos de mais de 20 toneladas e que no fim dos anos 50 «ainda saíam do Rossio de Abrantes barcos de até 30 t, com cortiça e madeiras para Lisboa». Mesmo os pequenos portos da Barquinha, Amoreira e Rio de Moinhos ainda tinham então à volta de 10 barcos cada. Mas no início dos anos 60 já o movimento portuário tinha acabado em definitivo. E o Rossio deixava de ser o «grande centro grossista do interior do país», de receção e distribuição, que fora durante séculos. UMA FONTE QUASE IGNORADA PARA A HISTÓRIA DO PORTO

Existe no Arquivo Histórico de Abrantes, conforme disse no intróito, um manuscrito intitulado Livro das entradas das fazendas que os barcos desta vila levam e trazem ao porto dela [no Tejo]. A abertura foi feita a 27 de janeiro de 1725 e teve escrituração continuada até 20 de março seguinte, fecho a 19 de abril do mesmo ano, compreendendo os fólios 1 a 29 v. Por conseguinte, tal tarefa nem sequer dois meses completos chegou a durar, acrescendo a isto haver alguns registos incompletos e outros extremamente imprecisos, o que retira ao códice muito do seu potencial valor como fonte histórica. É certo que o livro contém mais dados depois do fl. 30 (até ao 147); mas esses são registos de fianças das pessoas obrigadas pelo Senado, acompanhadas de juramentos dos vendeiros, acarretadores, oficiais e outras pessoas obrigadas às posturas [datados de 11.1.1727 a 13.6.1741]. Tais fianças são na sua maioria de almocreves da vila, que deveriam efetuar carretos de azeite dos lagares para os mercadores. A escrituração esteve toda a cargo do escrivão da Câmara, Francisco de Mendonça Furtado, e fora determinada pelo juiz de fora da vila, Lourenço Gonçalves Carrasco, que rubricou todas as folhas, se bem que só tenha alcançado efetiva execução pelo sucessor deste, João Cardim da Silva de Figueiredo.

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Como informação complementar, anota-se que este último juiz de fora tomou posse do cargo a 11.4.1724, por nomeação do marquês de Abrantes confirmada pelo monarca, tendo-se mantido em funções até março de 1728, altura em que foi substituído pelo Dr. Domingos Morais da Cunha. Quanto ao operoso escrivão, pessoa nobre, que era sobrinho de Miguel Rebelo de Mendonça (anterior proprietário do mesmo ofício, de 1690 a 1719) e de D. Paula Temuda de Andrade (m. 1711), e neto do lic.° Miguel Rebelo e de D. Águeda de Mendonça Furtada, sabemos que exerceu efetivamente tal função pública de 1719 até 1741, ano este em que faleceu, indo a sepultar no convento de S. Domingos.

MAREANTES OU BARQUEIROS DE ABRANTES QUE TRANSPORTARAM CARGAS DE ABRANTES PARA LISBOA (A-L) E/OU DE LISBOA PARA ABRANTES (L-A), ENTRE 27 DE JANEIRO E 20 DE MARÇO DE 1725

[Sendo as idas mais que as voltas, poderá entender-se que houve voltas sem carga ou que o barqueiro ficou a aguardar regresso; registando-se apenas uma viagem, indica-se a data a seguir]:

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Da análise dos dados da página anterior (que, por corresponderem a uma ínfima parte de um só ano, não estarão certamente completos), verifica-se um número considerável de barqueiros ou mareantes - 56 - se bem que inferior ao de épocas anteriores. Alguns deles seriam irmãos (os Engeitado, Lopes Pinto ou Rodrigues Toupa), outros descendiam de antigas famílias de marítimos, que já encontráramos no período filipino, caso dos mesmos referidos e ainda dos Caseiro, Castanho, Drake, Frutuoso, Gadanho, Marmeleiro, Meia Língua, Moreno, Lopes Machado, entre outros, que assim terão mantido a profissão por várias gerações, constituindo verdadeiras dinastias. Por outro lado, se uns seriam donos do seu próprio barco, havia outros que teriam mais que um por sua conta e risco, havendo mesmo casos (como André Nunes Porras) que além de mareante era comissário e dava fretes a outros. Mas dos comissários, estabelecidos no porto d’além do Tejo, onde detinham seus armazéns de mercadorias, os mais citados eram Manuel Rodrigues da Costa e Vicente Caldeira Roxo.

Este último, porque creio ter estado na origem da abastança de uma importante casa e família do Rossio, a Casa Caldeira, deve merecer-nos mais alguns comentários. Com efeito, vem expresso na “memória paroquial” de Abrantes (de 1758) que na freguesia de S. João havia então «huma ermida novamente eretta por Vicente Caldeyra Rocho com a invocação de Nª Sra. das Necessidades», pertencendo o padroado dela «a seos herdeiros, sem prejuízo dos direytos parochiaes». Ora, ficava essa ermida exatamente na vintena do Rocio d’Além do Tejo (no Rossio de Cima e não longe do “Porto dos Touros”, onde o comissário Vicente Caldeira teria seus amplos armazéns e casas), decerto fundada por iniciativa dele na primeira metade do século XVIII. Falecendo o mesmo, a 13.3.1750, soube-se que no testamento ele prescrevia, para além da sepultura dentro dela, 500 missas «e que todos os domingos e dias santos se diria na sua ermida missa por sua alma, e que esta obrigação seria para sempre enquanto o mundo durasse» ....

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Mais acrescentava o testamento «que para a satisfação da esmola das ditas missas nomeava três casas que estão contíguas às suas, donde morava, que lhe rendiam 20$000 réis cada um ano e que estas as nomeava para sempre, e que na administração desta capela nomeava a seu irmão o Pe. Frei António Caldeira, a quem também deixava por seu testamenteiro, e que por sua morte a seus filhos». Mais tarde (1842), vem a capela citada num inquérito diocesano, «com porta para a rua», então já na posse de António Martins Caldeira e irmãos, descendentes do instituidor. Aproveitava nas missas de domingos e dias santos aos moradores do Rossio e por isso era «de reconhecida utilidade pública, e tanto maior quanto é certo constar esta povoação de 230 fogos e não ter missa alguma mais do que a paroquial e a celebrada no dito oratório ou capela». Nela ficaram sepultados, para além do fundador, diversos membros da família.

Mas voltemos ao sobredito Livro das entradas das fazendas que os barcos desta vila levam e trazem ao porto dela, que de facto nos oferece elementos de análise bem interessantes e diversificados. Antes de mais a periodicidade das viagens, isto é, das entradas e saídas no porto. Assim, no período em questão, o movimento não me parece que fosse intenso, nem muito regular: Em 53 dias de calendário, efetuaram-se 148 registos/ /viagens, o que dá uma média inferior a 2,8 registos por dia. O máximo de embarcações registadas num só dia foi de oito, nos dias 3 de fevereiro e 19 de março, seguindo-se o dia 4 de março com sete e os dias 2 e 16 de fevereiro com seis. Também a média de viagens por barqueiro naquele período me parece baixa, para não dizer muito baixa: 2,6...

Revendo o quadro supra, constatamos que naqueles 53 dias o máximo de viagens feitas por um só transportador nos dois sentidos foi de 7 (ida + volta), e só três barqueiros o conseguiram, enquanto que a descida unidirecional de Abrantes até Lisboa só foi feita 4 vezes por 4 indivíduos. O recorde de rapidez, com partida do porto de Abrantes e regresso ao mesmo sítio sempre com carga, foi de nove dias (7 a 16 de março), e foi conseguido por Manuel Rodrigues Drake - ou não tivesse ele o nome de um famoso navegador-corsário! - mas a sua média era de 11 dias. A média de João Rodrigues Toucinho, outro dos totalistas com sete viagens, foi superiora 12...

Um aspeto relevante que não nos é revelado pelos registos é o do tipo de barco utilizado e a sua tonelagem. O escrivão anota, quase sempre, «deu entrada / saída... no seu barco, F.. mareante desta vila». Só em meia dúzia de casos refere «...na sua bateira». Também nem sempre se percebe bem a quem pertence a propriedade do barco. Creio que só num caso especifica «...no barco de que é dono». Por outro lado, raras vezes estes barcos se afastavam do trajeto Abrantes-Lisboa-Abrantes. Também só num caso, de vinda de Lisboa do mareante desta vila Matias Gadanho com seis moios de sal, o escrivão regista que o comissário lhe deu «saída para Nisa».

E passemos à análise das cargas.

Comecemos pelas exportações, aquelas que claramente predominam nos registos, com mais de 200 citações de artigos ou produtos, contra cerca de metade das importações. O artigo citado mais vezes é o azeite (com cerca de 60 referências), seguido de muito perto pelo carvão (55). A castanha e o trigo aparecem já a alguma distância (com cerca de 30 cada); e mais longe ainda as carnes (com 15) e o vinagre (5). Estranha-se a ausência total do vinho e a quase nula expressão da fruta. Um pouco diferente e muito mais difícil de quantificar é o panorama dos valores, se atendermos às quantidades das cargas manifestadas. Aqui o topo vai claramente para o carvão. Torna-se impossível um cálculo preciso, porque o redator opta por vezes por expressões como «cento e tantas sacas de carvão de sobro», ou «um barco de carvão que leva para vender em Lisboa», ou ainda «...e o resto da carga em carvão». Mas, por um “arredondamento” poderemos estimar um total bastante superior a 3000 sacas.

Já para o azeite os cálculos podem ser um pouco mais rigorosos, havendo apenas o problema das medidas-padrão, pois que são usadas como “unidades” o barril, a pipa, a carga e o odre; em todo o caso, podemos calcular um total de cerca de 750 barris. Idêntico problema nos coloca a medição da castanha, que nos é dada em moios (com subdivisão em alqueires), sacas, cargas e carretadas, e ainda com a divisão em “pilada” (ou seca) e “da praça”: o conjunto daria cerca de 150 moios. Não menos fácil é o apuramento das carnes (medidas em canastras, cargas e carradas, e com a distinção de “secas”, chouriços, presuntos e toucinhos): poderiam atingir as 100 cargas. Calcula-se melhor o trigo: cerca de 200 moios. De resto, poderão apurar-se 25 barris de vinagre, 17 barris de azeitona, uns “cabanilhos” de fruta, alguns “seirões” de livros, mais umas «encomendinhas»...

Quanto às importações, que conforme já ficou sublinhado eram de menor porte, embora com um pouco mais de variedade, figura à cabeça, tanto em citações como em volume, o sal (cerca de 30 e 285 moios respetivamente). Vêm a seguir: o bacalhau, a que se pode juntar como parentela o badejo e o cação (24 / 225 cargas); os cereais panificáveis, entrando como variantes o milho (em maior escala), o centeio, a cevada, o trigo da terra e o “pão” (c. 20 / 80 moios); e, mais distanciados, o arroz (8 / c.35 sacas/cargas), couros e solas (4 / c.200 costais ou cargas), o açúcar (2 /15 arrobas), o tabaco (2/5 cargas ou canastras), baetas (2 cargas e um fardo), papel (2/3 cargas), “fazendas para a feira” (3 /15 pacotes), ferro (3 / 30 quintais e 2 cargas), munições (1 costal), a que acresciam algumas fazendas de mercearia indeterminada e pequenas encomendas diversas.

Uma outra questão poderá ser colocada: de onde vinham e a quem se destinavam os produtos exportados no porto de Abrantes? E qual a proveniência e destino dos importados?

O códice não é muito explícito, mas por vezes informa: «...moios de trigo que leva de frete do comissário Manuel Rodrigues da Costa, que era do visconde [de Barbacena]»;«... moios de trigo que lhe vem de Campo Maior e o remete para Lisboa»; «...barris de azeite do Pe. António Fernandes Caseiro e um barril seu dele dito arrais»; «...azeite que leva de frete de Jerónimo Rodrigues da vila do Sardoal ferreiro»; «3 barris de azeite de sua lavra, mais 7 de frete que são de João Godinho do Mação, mais 2 carradas de castanha também do mesmo»; «20 barris de azeite do capitão-mor do Sardoal que manda para se vender em Lisboa»; «...uma carga de azeite da casa do comissário José Castanho para casa do fidalgo Saldanha»; «11 barris de azeite de José Bernardes e mais 15 dos religiosos de Carnide carmelitas, mais 7 de João de Almeida de Vasconcelos (com certidões para várias partes), e umas encomendas mais livres»; «9 moios de castanha que comprou a Francisco Leitão de Rio de Moinhos»; «5 moios de castanha que comprou na praça pública da vila, que leva para vender pelos caises do Ribatejo».

Quanto aos produtos importados, alguns exemplos da discriminação: «10 moios de sal que trouxe no seu barco de frete de João da Costa Ferreira de Lisboa (de que apresentou o despacho da saída da dita cidade), o qual deitou nos portos da banda dalém em a casa de Álvaro Freire de Castro, por conta e risco do dito dono»; «7 moios de sal para as partes dalém do Tejo e o vende a Vicente Caldeira Roxo comissário; «...10 quintais de ferro e um costal de munição para Hilário Gomes [mercador] desta vila»; «...10 cargas de bacalhau de frete para a vila da Sertã»; «20 cargas de bacalhau que traz para sua casa e nela as vender debaixo da almotaçaria, mais 6 sacas de arroz para Hilário Gomes e várias encomendinhas de partes»; «5 pacotes de fazenda e um maior de sola, tudo para a feira [de S. Matias] e mais 4 moios de milho grosso e miúdo para vender nesta vila»; «18 cargas de bacalhau para os Castilhos e umas encomendas para Carlos Brandão [de Cordes, do Pouchão]; vários costais de couros crus que traz de frete para a casa de comissão da parte dalém do Tejo; «...mais duas cargas de tabaco para o estanco»...

Enfim, terá esta análise pouca valoração face à estreiteza e à parcialidade da base de sustentação? É possível. Efetivamente, na Bacia do Tejo - a darmos crédito a uma asserção do Prof. António Borges Coelho - o movimento dos barcos e mercadorias ocorria principalmente de abril a outubro-novembro6, ou seja, após os curtos meses que aqui nos foi dado perscrutar. Por outro lado, seguindo a lição do Prof. Jorge Borges Macedo, faltar-nos- -iam aqui dois importantes produtos da nossa região, que pelo mear do século XVIII já faziam parte da estrutura económica local: a palha e a cortiça7. Estes seriam, talvez, produtos sazonais, mais transacionáveis noutras épocas do ano. Mas enfim, a nossa fonte local é a que temos e será porventura a única de que dispomos para aquela época. E, só por isso, creio que valeu a pena tê-la trazido ao conhecimento público.

Poderíamos continuar, com alusão a mais algumas fontes de arquivo, designadamente do AHA (séculos XVII, XVIII e XL. mais considerações de natureza histórica através da análise documental. Mas, para já, isto chega... e talvez até sobre. Deixo apenas, como complemento, um exemplo de outro tratamento possível, no Apêndice em anexo, a partir do Livro de Posturas de 1605 (ainda inédito).

C0NCUINDO

 

Abrantes nunca foi uma terra de grande produção agrícola. Já no século XVII os seus representantes em Cortes (1641) alegavam que ela era «terra de carreto», isto é, que a vila dificilmente se autossustentava, pois era uma vila mais dada ao comércio e ao transporte de mercadorias, sobretudo por via fluvial, e como tal devia ser salvaguardada. O panorama económico evoluiu muito, tanto ao nível local como nacional e mesmo mundial. Mas penso que seja interessante analisarmos o caminho percorrido; que mais não seja para percebermos o nosso ponto de chegada, antes de projetarmos novas caminhadas.

Uma das caminhadas até poderá fazer-se pela grande estrada natural que nos corre aos pés: o Tejo. O aproveitamento fluvial, que já uniu portos tão distantes, cidades tão afastadas e tão próximas como Lisboa, Santarém, Abrantes - e porque não também Toledo ou mesmo Madrid - ainda pode ter um importante papel no futuro. Num passado não muito longínquo, a construção do caminho-de-ferro até ao Rossio de Abrantes (inaugurado em 1863), depois a abertura da linha da Beira Baixa (1891) e o incremento da camionagem, sobretudo após a II Guerra Mundial, tomaram obsoleta a navegação do Tejo e o porto de Abrantes foi perdendo a sua razão de ser, até desaparecer por completo.

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Na imagem desta página, tanque da fonte das Nogueiras, hoje desaparecida, onde podemos observar as lavadeiras a lavar roupa.

E hoje? Que se faz por essa Europa fora, mormente em alguns rios de França e da Alemanha?

Em meu modesto entender, a via fluvial que o Tejo representa não está inteiramente esgotada. Ela pode continuar a ser uma aposta para alguns municípios ribeirinhos. Veja-se o Douro. Mesmo no Tejo, veja-se o que tem acontecido no estuário. Na área de Abrantes, temos o Aquapolis e nas de Constância / / Barquinha / Chamusca, há já também projetos destinados a salvaguardar e desenvolver o património cultural herdado. Os antigos portos fluviais poderão passar a ser excelentes espaços de lazer e de contacto com a natureza. Deste ou doutros modos, estou crente que poderão vir a ser recuperadas algumas das raízes identificativas das populações taganas.

Mais do que muitos pensam, há Futuro para o nosso Passado.

APÊNDICE DOCUMENTAL

Abrantes - 1605, 31 de dezembro Itens do Livro de Posturas da Câmara de Abrantes referentes ao respetivo porto (AHA, LP, n.º 2, fls. 18v. e 79-88)

Que os carreteiros de fora do termo que vierem a este porto se irão em três dias Acordaram que os carreteiros de fora do termo desta vila que a ela vierem, com fretes ou por qualquer outra via, do dia que chegarem ao porto daí a três dias tomarão a sair fora da coutada, e logo farão seu caminho e não seivarão neste termo mais que as vezes que lhe forem necessárias e costumadas a quem caminha, de maneira que nenhum dia se detenham até sair fora do termo. E fazendo o contrário pagarão de pena quinhentos reis e poderão ser encoimados pelos rendeiros e oficiais da justiça e vintaneiros e juízes do termo, e pagarão a pena, ametade para quem acusar e ametade para o rendeiro do verde.

Que daqui por diante se não farão casas além do Tejo

Acordaram que daqui em diante nenhuma pessoa além do Tejo, dentro do limite do gado meudo, possa fazer casas algumas de pedra e cal nem de pedra e barro, por se não dar ocasião a se fazer povoação da dita banda d’além do Tejo e se perder o comércio desta vila; e as que estão feitas e caindo se não poderão outra vez reedificar nem morar, pelo que contrário fizer pagará dez cruzados, para acusador e cativos, e pela justiça serão derrubadas. E, porém, não tolhem que quem quiser fazer suas heranças, algumas casas de taipa ou adobes as poderão fazer dentro de suas heranças, mas serão afastadas das estradas públicas um tiro de pedra, pelo que contrário fizer pagará a dita pena, como dito é.

Que nenhuma pessoa venda sal no Tejo nem em certo limite afastado dele Acordaram que nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja, não poderá comprar nem vender sal nos portos do Tejo desta vila, e assim da banda d’além como d’aquém, por pouco nem por muito que seja, nem afastados dos ditos portos de uma e outra parte uma légua, nem ao longo do Tejo acima nem para baixo em todo o termo desta vila, nem poderão ter o dito sal alugado em casa nem tenda dentro da dita demarcação, posto que seja para ir para fora do termo de alguma pessoa de fora desta vila e seu termo, com pena do que o contrário fizer ou se lhe provar pagará por cada vez seis mil reis, para acusador e cativos; e além da dita pena terá trinta dias da cadeia, salvo se os mercadores desta vila o quiserem comprar do que chegar nos barcos e dele o trazerem para esta vila para nas suas lojas o venderem.

Outro aspeto mais recente da desaparecida fonte [das Nogueiras], citada no texto, e que já existia junto ao «porto da Barca da banda d'além».

Que os barqueiros navegantes dêem fianças e seus companheiros, e tenham as cousas pertencentes na postura

Acordaram que todo barqueiro e seu companheiro que navegar desta vila para baixo será obrigado a dar sua fiança na câmara cada um ano, no mês de Janeiro, para segurança das mercadorias que lhe entregarem e uns e outros serão examinados, e esta fiança darão sem levarem mercadorias alheias como dito é; outrossim serão obrigados os que navegarem desta vila para cima a serem examinados e a terem toldos, uns e outros com pena do que o contrário fizer pagará quinhentos reis para rendeiro e acusador. E declararam que os ditos mareantes possam [a] portar seus barcos quando as barças do concelho não passarem ao porto das ditas barcas.

Lugares donde os barqueiros poderão carregar seus barcos

Acordaram que nenhum barqueiro nem navegante algum possa carregar seus barcos, de qualquer mercadoria que seja, fora dos portos aqui declarados, assim da banda d’além do Tejo como d’aquém, convém a saber: da banda d’além do Tejo, desde o porto dos Aldeões que chamam da Perancha até direito do marco que está posto à primeira fonte que está ao porto da Barca da banda d’além; desta banda será desde o dito porto dos Aldeões até o marco que está por baixo do porto da Barca, com pena do que o contrário fizer pagará por cada vez ou se lhe provar quinhentos reis, para rendeiros e acusador. Porém, se as mercadorias que os ditos barqueiros quiserem carregar em seus barcos forem nascidas e criadas nesta vila e seu termo, as poderão carregar onde quiserem fora do dito limite, contanto que náo seja onde fizerem nojo às sementeiras que estiverem feitas, com a pena acima declarada; e porém possam em tempo que as barças do concelho não passam e passam os barcos acima, posam [a] portar os barcos dos mareantes no dito porto da Barca, e poderão amanhar seus barcos no lugar aonde se amanham as barças do concelho e depois de amanhados e deitados à água náo estarão mais um dia e se tomarão ao porto, sob a dita pena da postura.

Que os feitores e barqueiros não retenham as mercadorias nem cargas que vierem ao porto

Acordaram que nenhum barqueiro nem outra pessoa alguma que feitorizar mercadorias e cargas no Tejo, assim por assim como por procuração, como por carta de mercadores que lhe a esta vila mandam, e ao porto do Tejo dela as não retenham, assim em terra como em barcos, para as darem a quem eles quiserem, antes serão obrigados as darem logo a quem as leve, ou para baixo ou para cima, dentro de um dia que lhe forem dadas ate outro meio dia seguinte, porquanto se conclui muito nestas cargas em as reterem só afim de peitas e interesses de parentes e não do bem comum, que para todos há de ser geral, com pena do que o contrário fizer pagará dous mil reis, para acusador e cativos.

Que nenhum barqueiro bande carga do seu barco para outro, em todo o termo desta vila, até terra de mar

Acordaram que nenhum barqueiro nem outro algum navegante possa bandear carga alguma que em seus barcos tenha, em outros barcos nem em terra, desde os portos do Tejo desta vila até terra do mar, com pena de dous mil reis para rendeiros e cativos. Isto não se entenderá passando-se de uma parte do Tejo desta vila para a outra por dinheiro para se ir meter em barco que vai para baixo, porque sendo barcos pequenos se não pode chamar bandear.

Marca dos barcos

Acordaram que todo o navegante que navegar do porto do Tejo desta vila para baixo de tal maneira que no meio do barco, que é o trasto, porá uma marca de dous palmos, para que com toda a carga que o dito barco levar fique de fora d’água, sendo barco que carregue de doze moios para cima, e dos barcos pequenos que carreguem de seis moios para cima ficarão descobertos palmo e meio; e terão nas suas vergas sempre atada, andando à vela, uma corda que chamam carregadeira, para que facilmente em tempo de tormenta possam amainar; com pena do que contrário fizer pagará quinhentos reis, para rendeiros e acusador. Declararam que cumpram somente na marca e não na carregadeira.

Que nenhuma pessoa possa andar às achas na barca, nem nos portos delas fendam lenha nem a deitem nas cavernas, nem bestas carregadas entrem na barca

 Acordaram que nenhuma pessoa não ande nos portos das barças do concelho, d’além como d’aquém, às achas, nem menos nos ditos lugares fendam lenha, nem menos poderá pessoa nenhuma mandar vender lenha por terceira pessoa dos ditos portos da que trouxer em suas bestas, nem menos outra nenhuma pessoa poderá deitar lenha nas cavernas das barças aonde está por solhar, nem outrossim entrará nas ditas barças besta carregada, com pena do que o contrário fizer ou se lhe provar pagará cem reis, para rendeiro e acusador. O barqueiro poderá fazer assentos das ditas coimas e delas levar ametade, se as acusar.

Que nenhum almocreve atravesse as cargas dos barcos, para ele só as trazer do Tejo para esta vila

Acordaram que nenhum almocreve desta vila nem de fora dela possa tomar nem atravessar as cargas dos barcos que trazem de Lisboa e de outras partes que descarregam no porto do Tejo, para eles sós as trazerem à vila, senão que as deixem trazer geralmente a todos, com pena de duzentos reis para rendeiros e acusador.

Que os alfandegueiros deem pelo tanto as cargas aos almocreves da vila

Acordaram que nenhuma pessoa desta vila nem alfandegueiro dela que tiverem cargas para darem d’aluguel a almocreves para Castela e outras partes as não darão senão aos almocreves da vila tanto pelo tanto que lhos de fora derem; e depois de os almocreves da vila estarem providos ou as não quiserem, em tal caso as poderão dar aos de fora; e tendo-as dadas a alguns almocreves de fora se os da terra as quiserem lhas darão, como dito é, pelo tanto; e havendo engano nos preços, sendo-lhe provado, os alfandegueiros pagarão quinhentos reis. E a mesma pena do sobredito atrás da postura para quem acusar e para rendeiro.

Notas:

1 João Brandão (de Buarcos), Magestade e Grandeza de Lisboa em 1552, com várias edições.

2 História de Portugal, III, Verbo, Lisboa, 1978, p. 311.

3M. Lopes Marcelo, "A navegabilidade do Tejo”, Beira Baixa - A Memória e o Olhar, Edit. Presença, Lisboa, 1993, p. 143

4 AHA, ISV/F/004, Cx.l, n.º 6. Este documento é complementado por uma carta de doação da mesma vinha, com obrigação de aniversários: «a

barças da parte alem Tejo», a qual partia com caminho do concelho.

5 Abrantes Medieval (séculos XIV-XV), CMA, 1988, p. 45.

6 Cf. Quadros para uma viagem a Portugal no século XVI, Caminho, 1986, p. 33.

7 Cf. Perspetivas da Economia Portuguesa no século XIX, p. 107. Segundo este autor, havia no porto de Lisboa uma companhia (composta de 13 homens) ocupada exclusivamente na descarga do "pão de Abrantes”.

In: SILVA, Joaquim Candeias da – O antigo porto fluvial de Abrantes – subsídios para um estudo. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 9 Nº 18 (2011), p. 3-18