Primeira bandeira da Casa do povo de São Facundo.
POR AMÉRICO PEREIRA - Professor do 1º Ciclo, lecionou vários anos em São Facundo.
Para quem gosta de ouvir histórias à lareira, conversar com a Dona Maria de Jesus Alves é um prazer repleto de emoção.
Durante trinta e muitos anos exerceu a profissão de Auxiliar de Ação Educativa, na Escola de São Facundo, onde conheceu muitas crianças, que hoje já são pais das atuais. Não admira que conheça toda a gente em São Facundo, terra do seu coração.
Atualmente, aposentada, dedica-se à família, sem descurar o apoio à comunidade, dando uma ajudinha na paróquia local, nomeadamente na catequese, que é a forma de conseguir manter o contacto com as crianças, com quem se habituou a conviver.
Quando a Tia Maria abre o seu “livro de memórias” o difícil é consegui-la fazer parar! Desde a década de cinquenta até aos nossos dias há muitas histórias e para todas as sensibilidades.
Se recua demais no tempo recorre ao legado deixado pela mãe ou pela avó:
“-A minha avó costumava-me dizer...”
O entusiasmo faz com que se levante e vá buscar o seu álbum de fotografias, muitas ainda a preto e branco e algumas delas já muito queima das, pelo passar dos anos. Um autêntico arquivo histórico.
“-Este é o avô do...- diz apontando com o dedo como se esgravatasse no passado puxando-o para o presente.
“Esta aqui sou eu! Dançava no Rancho Folclórico de São Facundo. Este fato foi todo bordadinho por mim... Nós é que fazíamos os nossos fatos!”
Depois de se identificar a si própria no meio do grupo, avança para o reconhecimento dos restantes elementos, com a ajuda do seu marido o Sr. Hermínio Alves, carteiro de profissão, também ele já aposentado.
Os olhos enchem-se-lhes de brilho!
O rancho não resistiu mais do que dois anos, mas a memória daqueles dias de convívio entre aldeias, de há cinquenta anos atrás, permanece bem vivo.
“- O ensaiador era o Joaquim da Rosa Bernardino... corríamos as aldeias todas aqui à volta, a dançar...”
Mostrando os seus dotes vocais entoou uma das canções que o mestre da dança compôs na época.
“Cantávamos à vez. Eu cantava:
Com licença meus senhores
Que me vou retirar
Como sofro de amores
Não posso aqui estar.
Ele respondia:
Onde vai menina Maria
Diga-me do coração
Porque deixa a romaria
Em tão alegre ocasião.
Por amor Sr. João
Não me torne a falar
Que me aumenta a paixão
E o meu pai pode ralhar.
Se lhe aumenta a paixão
Eu também lh’a sei tirar
Embora o seu pai diga não
Depressa iremos casar.
Olhe bem Sr. João
Não brinque com uma infeliz
Mas se me ama do coração
Não se olha para o que ele diz
Vamos direitos à igreja
Com a nossa devoção
Nós iremos lá casar
Um ao outro dar a mão.
Oiçam todos meus senhores
O que acabaram de ouvir
Nestas coisas de namoro
Não há que impedir.
Rancho de São Facundo e Ensaio (Grupo de Teatro)
Lá vão os noivos casados
Direitinhos à igreja
Cobertinhos de louros
Bendito e louvado seja. ”
Procissão
Terminou o rancho de São Facundo e de imediato se iniciou o teatro. E a Dona Maria para lá se mudou.
“Foi por pouco tempo, nem chegámos a estrear nenhuma peça. Só as ensaiávamos!”
Conversa puxa conversa e logo chegou a vez de D. Maria recordar a procissão anual em memória de São Facundo e de voltarem as muitas histórias associadas e “algumas nem podem ser contadas”.
Fonte do Senhor dos Aflitos
Para evitar as confusões das datas a D. Maria começou por dizer que a procissão existe desde sempre, mesmo para além do legado da sua avó.
“-Antes era na Favaqueira, depois é que passou para São Facundo, após a construção da igreja local em 1884.... Dizem que o Santo era espanhol.... Vinha gente de todo o lado para assistir à missa...”
Mais uma vez o Senhor Hermínio interrompeu, para acrescentar que as raparigas dançavam à saída da igreja e os rapazes jogavam ao “Jogo do Pau” que quase sempre acabava mal.
“- Os cajados ficavam à porta da igreja, encostados à parede. Depois da missa elas dançavam e nós jogávamos ao pau. Elas dançavam até se cansarem e nós jogávamos até a coisa correr mal.. até haver sangue!”
Claro que fez questão de esclarecer que este era fruto dos acidentes próprios do jogo, de quando se falhava o pau e se acertava em cheio nas mãos do parceiro.
“Esta fotografia é do Santo, o Senhor dos Aflitos. Fica ali no Casal do Vale de Açor”
E com mais uma fotografia mostrada a D. Maria acrescenta mais uma lenda recontada:
“Uma vez um pastor viu um lobo e pediu ao Senhor dos Aflitos para o salvar... O lobo foi-se embora sem atacar o pastor... Para recordar este acontecimento construiu-se um fontanário nesse local, com o nome de Senhor dos Aflitos...
Durante a Guerra do Ultramar, os soldados deixavam ficar uma fotografia no Santo e as famílias iam lá acender velas e fazer promessas, enquanto eles não regressavam...
Ainda hoje, por altura das festas anuais de São Facundo, no penúltimo Domingo do mês de agosto, a rapaziada nova reúne-se no Santo, para uma almoçarada...”
Estava na hora do café e lá fomos nós rua abaixo até à Casa do Povo. A atual Presidente é a sua sobrinha Carla Tomás, que nos mostrou várias fotografias antigas das equipas de futebol da terra.
“A Clotilde (sua filha) também já foi presidente da Casa do Povo” - lembrou D. Maria, com a consciência que esta situação não é muito normal noutros locais, muito menos em associações que privilegiam a prática do futebol masculino.
Com a Casa do Povo de São Facundo repleta de gente, como é hábito ao fim-de-semana, entrámos nos escritórios e revoltámos as gavetas das memórias.
Uma das primeiras equipas de futebol de São Facundo.
“Os primeiros estatutos são de 23 de setembro de 1933 e o edifício sede, onde também funciona o Centro de Saúde, foi construído em 22 de outubro de 1961...”
Num recanto ali ao lado Carla Tomás puxou de um saco e mostrou a primeira bandeira da Casa do Povo.
O tempo aqui passa depressa, mas ainda faltava saber a razão da origem da alcunha dos naturais de São Facundo: “Gafanhotos”.
“O meu sobrinho, o Luís Sebastião tem um livro que fala disso...”
Procurámos o dito livro e lá estava numa recolha de Eduardo Campos a explicação:
No dia 19 de Maio de 1919, uma praga de gafanhotos invadiu São Facundo, o que implicou o destacamento 110 soldados de infantaria para a combater.
Os soldados só se retiraram de São Facundo a 5 de Junho, depois de terem destruído mais de 1500 arrobas de gafanhotos.
A partir dessa época, os habitantes de São Facundo passaram a ser conhecidos pela alcunha de “Gafanhotos”.
No regresso a casa não resisti a cantarolar uma das últimas canções que a D. Maria aprendeu na escola antes de se aposentar:
“São Facundo terra de Paz
Onde o Sol aprendeu a brilhar
São Facundo terra de Amor
Onde o verde domina o nosso olhar
São Facundo!
São Facundo!
É p’ra ti esta canção
Que nasce no coração
Que bate, bate, bate, bate, bate
Só por ti.
São Facundo Terra de Paz...”
In: PEREIRA, Américo – São Facundo Viagem ao Sotão da Tia Maria. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 5 Nº 9 (2007), p. 22-25