floresta

Por Ana Rei Penteado - Bióloga, Palha de Abrantes - Associação de Desenvolvimento Cultural

  1. INTRODUÇÃO

A floresta representa um espaço privilegiado para a prestação de bens e serviços ambientais cujo valor pode ser calculado através dos benefícios que as populações recebem, direta ou indiretamente, das funções desempenhadas pelos ecossistemas, e que não se esgota no valor obtido pela venda das matérias-primas.

Esta interpretação, traduzida académicamente pelo Valor Económico Total (VET)conduziu a uma das mais interessantes e polémicas publicações científicas dos últimos anos, “The value of the World’s ecosystem Services and natural capital”. Publicado em 1997 por Constanza R. et al., o artigo estimou o Valor Económico Total do planeta Terra através do somatório dos diferentes habitats, sendo que o espaço florestal foi, no âmbito deste projeto de investigação, um dos habitats com VET mais elevado... mas não nos deixemos iludir.

O espaço florestal estudado por Robert Constanza caracteriza um ecossistema complexo e pleno de biodiversidade, que nada tem que ver com os povoamentos florestais de pinheiro-bravo ou de eucalipto que encontramos no concelho de Abrantes e cuja massificação é extraordinariamente recente.

De facto, se olharmos para a evolução do coberto florestal tendo como ponto de partida os primeiros registos arqueológicos do concelho de Abrantes e, se escolhermos como termo de comparação 24 horas (1 dia) percebemos que a monocultura do pinheiro bravo aconteceu há aproximadamente 30 segundos e que a “expansão descontrolada” do eucalipto há 4 segundos.

Se formos menos exigentes na nossa escala temporal e apontarmos como referência o início da Era Cristã, então essa mudança, aparentemente menos fugaz é, ainda assim, significativa - a paisagem florestal que hoje conhecemos tem pouco mais de 18 minutos.

Esta simples comparação permite-nos entender que a alteração das zonas florestais é demasiado recente para que se possa compreender as suas consequências e que o recurso florestal, outrora polivalente, se esgota em duas ou três atividades industriais - a pasta do papel, a madeira e a cortiça - com acréscimo significativo para a indústria da pasta do papel nas últimas três décadas.

Mas não nos precipitemos com a passagem do tempo...

  • DO PERÍODO ORDOVÍCICO AO JURÁSSICO

Vamos apontar como ponto de partida o período Ordovícico (488 M.a. - 443 M.a.). É nesta altura que surgem as primeiras plantas, pelo que parte do território continental português está coberto por uma diversidade florística que se assemelha a alguns dos atuais grupos de musgos (adaptado de Paiva, J., s.d.). Seguem-se as primeiras plantas vasculares do período Silúrico (443 M.a. - 416 M.a.) e, mais tarde, as primeiras árvores e as primeiras florestas do Devónico.

O período Devónico, definido cronologicamente entre 416 M.a. e 360 M.a., é assim testemunha e anfitrião da crescente importância do coberto vegetal. Primeiro, com o aparecimento das plantas com semente (370 M.a) e mais tarde com o aparecimento das plantas com flor (Período Jurássico, 200 M.a). A “invenção” da flor teve um impacto significativo na biodiversidade do planeta Terra - uma simples alteração que permitiu ciclos reprodutivos mais curtos, grande plasticidade morfológica e uma enorme capacidade de ocupação de novos habitats (adaptado de Aguiar C., Pinto B. 2007).

  • DO PALEOLÍTICO INFERIOR A0 PERÍODO ROMANO

Os primeiros registos arqueológicos do concelho de Abrantes datam do período Paleolítico Inferior e reportam à cultura Acheulense, considerada “a primeira grande civilização (...) individualizada em todo território” (Silva C. J., Batista A., Gaspar E, 2009).

Nesta altura, e muito por culpa das temperaturas extremas da idade do gelo, o coberto vegetal dominante no Sul da Europa (a floresta laurissilva) dará lugar, numa primeira fase, a um coberto vegetal muito semelhante ao que encontramos na parte continental do círculo polar ártico - a taiga e, numa segunda fase, a uma floresta mista de árvores de folha caduca e algumas espécies sempre verdes. A floresta mista de folha caduca é, obviamente, o coberto florestal que hoje designamos, com alguma indiferença e muito desinteresse, de floresta autóctone ou floresta nativa.

No caso particular do concelho de Abrantes seria, pois, expectável que o porte arbóreo fosse constituído pelos carvalhos adaptados ao clima mediterrâneo como o sobreiro, a azinheira ou o carvalho-português, e por outras espécies, mais ou menos conhecidas da flora continental portuguesa como seja, o castanheiro, o zambujeiro ou o medronheiro. Esta interpretação, ainda que aparentemente coerente, não podia, no entanto, estar mais incorreta.

De facto, o que hoje observamos é profundamente diferente da vegetação potencial deste território e consequência direta de dois acontecimentos históricos distintos - o advento da agricultura e os Descobrimentos. Comparar estes dois acontecimentos de forma tão leviana parece quase ridículo, mas não é.

Quando o homem inicia o cultivo de cereais e a domesticação de animais, há cerca de 7-8 mil anos, tem também início a degradação da floresta. O recurso ao fogo para novas pastagens contribuiu para que as paisagens dominadas por árvores fossem paulatinamente substituídas por arbustos resistentes ao fogo como a urze, a esteva, o tojo, a carqueja ou o tomilho (adaptado de Paiva, J., s.d.).

Este lento e permanente processo de destruição do coberto florestal continuou nos períodos subsequentes, ocorrendo pontualmente um agravamento da demanda pormadeira ou de espaço para pastagens (p.e. Idade do Ferro, Período Romano, Descobrimentos) - A investigação histórica florestal revela que os Descobrimentos foram determinantes para o declínio das florestas europeias e, evidentemente, também para a floresta Portuguesa (adaptado Paiva, J., s.d.). - ver secção 1.3.

floresta1

José Paulo Fernandes Júnior Mapa fitogeográfico do concelho de Abrantes, Carvalho H„ (1937) "Abrantes” (imagem cedida pelo Arquivo Municipal Eduardo Campos. Abrantes)

 

  • DOS PRIMÓRDIOS DA NACIONALIDADE AO SÉCULO XVIII

A diminuição dos espaços florestais foi constante ao longo dos séculos e caminhou a par e passo com a publicação de diplomas que visavam a proteção da floresta. Assim, e se no princípio a preocupação se suporta na proteção dos espaços de cariz cinegético (coutadas reais), a partir do século XV assistimos a um incremento dos esforços de reflorestação dos terrenos baldios (Ordenações Manuelinas de 1495 e a Lei das Árvores de 1565) - No concelho de Abrantes a crescente preocupação com o espaço florestal traduziu- -se na imposição de restrições ao abate das árvores (p.e. Carta de Lei de D. Filipe I de 1563) e no incremento das ações de reflorestação (p.e. Mandado do Marquês de Fronteira de 1713).

“Eu el Rey faço faber q eyfao informado q em muytos lugares de meus reynos ha grande falta de madeira & lenha & que por serem estraidos & arrancados matos & cortados em muytos partes, os moradores dos dtos lugares padecem grande deterimento por não terem madeira pera suas casas & edifícios & outras cousas de que tem necessidade...”

“Lei das árvores”, 1565 in http://www.the europeanlibrary.org/

Carta de Lei de D. Filipe I proibindo o corte de sobreiros e o fabrico de carvão ou cinza de sobro, dez léguas em redor do Tejo.

1563, Julho (in Arquivo Municipal Eduardo Campos, Abrantes)

Mandado do Marquês de Fronteira, do Conselho de Estado e Guerra, para o corregedor de Tomar, ordenando que para se aumentarem as fábricas dos navios é necessário semear pinhais, plantar e guardar castanheiros e carvalhos.

1713, Outubro (in Arquivo Municipal Eduardo Campos, Abrantes)

Ainda sobre este período histórico importa referir o impacto brutal dos Descobrimentos na devastação das formações florestais de Portugal. Segundo Paiva J., s.d. foram destruídos durante este período mais de 5 milhões de carvalhos. Este valor poderá impressionar os mais distraídos, mas o que é facto é que durante a Expansão Marítima foram necessárias para a índia 700-800 naus e para o Brasil cerca de 500. Curiosamente este é também o momento em que o urso se extingue no nosso país.

Provissçai de D. Filipe II ordenando que se cortem madeiras nas matas existentes nos termos de Santarém, Chamusca, Azinhaga, Golegã e Abrantes, destinadas à construção naval.

1606, Fevereiro (in Arquivo Municipal Eduardo Campos, Abrantes)

  • A FLORESTA NO SÉCULO XIX E XX NO CONCELHO DE ABRANTES

A descrição dos espaços florestais do século XIX e XX está fatalmente facilitada pela presença de registos, mais ou menos exatos, da ocupação do solo, e pela publicação dos primeiros suportes cartográficos, nomeadamente, a primeira Carta Corográfica de Portugal (escala 1: 100 000), levantada entre 1853 e 1892 e editada entre 1856 e 1904 e a primeira Carta Agrícola de Portugal, levantada a partir de 1882.

Assim, e se em 1875 a área arborizada representava 7% do território (670.00 ha) constituído por 370.000 ha de montado, 210.000 ha de pinhal e 50.000 ha de soutos e carvalhais, em 1965, o valor total da área ocupada pela floresta ascendia aos 2.206.000 ha (PNDFCI,2005).

No que diz respeito ao concelho de Abrantes, e muito embora não estejam disponíveis dados anteriores a 1965, a monografia de Henrique de Miranda Vasconcelos Martins de Carvalho, “Abrantes”, datada de setembro de 1937 (ver mapa) oferece-nos um retrato fiável e pormenorizado da ocupação do solo no princípio do século XX:

“No norte do concelho é frequente o olivedo, embora grande parte das freguesias de S. Vicente e Rio de Moinhos, e a quase totalidade das do Souto, Martinxelle Aldeia do Mato se encontrem povoadas de pinheiro. Nas freguesias do Tramagal, Alvega e Rossio ao Sul do Tejo, onde se estendem os terrenos de lezíria, ha vinhedo alternando com olival.

Grande parte, porém, das duas primeiras e a quase totalidade das da Bemposta, S. Facundo e S. Miguel do Rio Torto, é constituída por terrenos de “Charneca”, onde predominam os sobreirais. (...) Note-se ainda a freguesia de S. Facundo uma extensa mata de eucaliptos, conhecida pela “plantação do Taite”; e na freguesia de S. Miguel outra, maior que a antecedente, chamada a “plantação dos Ingleses”. Em S. Vicente, no sítio dos “Beirins”, há mais um importante bosque das mesmas árvores. (...)

Carvalho H., (1937) “Abrantes” in Arquivo Municipal Eduardo Campos, Abrantes

O aumento da área ocupada pela floresta e, em particular, da área ocupada pelas espécies de crescimento rápido, conforme apresentado nos parágrafos anteriores, resulta fundamentalmente das políticas de reflorestação que tiveram lugar durante o século XX, nomeadamente, o Regime Florestal (1901,1903 e 1905) e o Plano de Povoamento Florestal de 1938 (Lei n.° 1971, de 15 de Junho de 1938). O Plano de Povoamento Florestal teve como objetivo arborizar 420.000 ha, construir reservas naturais e parques nacionais, estabelecer viveiros, construir casas de guarda e postos de vigia (PNDFCI, 2005).

“O regímen florestal (...) comprehende (...) o revestimento florestal (...) conveniente ou necessária para o bom regímen das águas e defeza das varzeas, para a valorização das

planícies áridas e beneficio do clima, ou para afixação e conservação do solo (....)” Decreto de 24 de Dezembro de 1901 in http:// www.icnf.pt

“Os terrenos de particulares incluídos nos perímetros e que devam ser destinados ã cultura florestal serão arborizados pelos respetivos proprietários, em conformidade com os projetos definitivos elaborados pelos serviços florestais. Se o não forem, poderão ser adquiridos ou expropriados pelo Estado. ” Plano de Povoamento Florestal (Lei n.° 1971, de 15 de Junho de 1939) in http://www.icnf.pt/

  • DO PINHEIRO BRAVO AO EUCALIPTO

A mais importante alteração do espaço florestal português que acontece durante ao século XX diz respeito à plantação do eucalipto, e é consequência direta do rápido crescimento e da grande capacidade de adaptação da espécie a condições ecológicas díspares.

Em Abrantes, a sua introdução foi bastante contestada pela população no início dos anos 80, pelo que transcrevemos, a título de exemplo, o abaixo-assinado dos moradores de Mouriscas enviado à Federação de Agricultores do Distrito de Santarém.

Exmo. Senhor

Nós os abaixo assinados, ao termo conhecimento de que na zona denominada Coroucha, foram vendidos terrenos para serem plantados Eucaliptos e que estes terrenos confinam com hortas onde existem nascentes, vimos alertar V Exa. para este facto e solicitar-lhe se digne providenciar no sentido da defesa destas nascentes e hortas. Mais informam V.Exa. de que o mesmo se prevê venha a acontecer noutros locais, pelo que do mesmo modo solicitamos a sua atenção para o exame de pedidos de Eucaliptização em Mouriscas, Abrantes.

Nestas zonas os Agricultores não aceitam plantações de Eucaliptos.

Abaixo assinado dos moradores de Mouriscas à Federação de Agricultores do Distrito de Santarém Abril de 1988 (in Arquivo Municipal Eduardo Campos).

CONLUSÃO

Importa referir que a descrição apresentada “é uma simplificação grosseira de uma realidade complexa, repleta de hiatos informativos” pelo que procurar descrever a

ocupação do solo até ao início do séc. XX é um exercício de teimosia e fé.

De qualquer forma não será difícil intuir que a mítica expressão atribuída a Estrabão4 “um esquilo podia atravessar a Península Ibérica desde os Pirinéus até Gibraltar, sem tocar com as patas no chão” é apócrifa e não tem (...) qualquer valor interpretativo. (Aguiar C., Pinto B. 2007).

AGRADECIMENTO

Arquivo Municipal Eduardo Campos de Abrantes e Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo.

BIBLIOGRAFIA CITADA

Aguiar C., Pinto B. (2007). “Paleo-história antiga das florestas de Portugal Continental - Até à Idade Média” in https://bibliotecadigital.ipb.pt/handle/10198/5562

Carvalho H., (1937) “Abrantes” in Arquivo Municipal Eduardo Campos Constanza, R. et al (1997). “The value of the World’s ecosystem Services and natural capital” in http:// www.uvm.edu/giee/publications/Natu re Paper.pdf

Decreto de 24 de Dezembro de 1901 (publicado no Diário do Governo n.o 296, de 31 de Dezembro) in h ttp:// www.icnf.pt/

Lei das árvores/ Ley das aruores (1565) in http:/ /www.theeuropeanlibrary.org/

Paiva J., (s.d.). “A Biodiversidade e a História da Floresta Portuguesa”, Centro de Ecologia Funcional.

Universidade de Coimbra in http://www, esfafe.pt/citec/images/stories/sembiod/ sintesejpaiva.pdf

PNDFCI, (2005) “Proposta técnica de Plano Nacional de Defesa da Floresta contra incêndios” in http://www.isa.utl.pt/pndfci/

Silva C. J.. Batista A., Gaspar F, 2009). “Carta arqueológica do concelho de Abrantes” in http://sic.cm-abrantes.pt/carta arqueológica/ carta.html

IN: PENTEADO, Ana Rei – A floresta no concelho de Abrantes: resenha histórica. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 13. Nº 25 (2015), p. 79-84