POR CÉLIA CORDA - Licenciada em História Moderna e Contemporânea.

A indústria da cal neste concelho está em grande parte associada à autoestrada fluvial que Abrantes possuía: o Rio Tejo. Aqui navegavam muitos barcos, transportando produtos para Lisboa e outras cidades. Existia, no porto de Abrantes, um grande número de embarcações que asseguravam os transportes fluviais de mercadorias e também de pessoas de um lado para o outro da margem, fazendo dele um dos mais importantes da época. Navegavam aqui barcos cuja tonelagem não seria inferior a qualquer camião, transportando cal parda, ou qualquer outra carga que estivesse no cais de embarque desde Abrantes até Paço de Arcos, Trafaria, Belém e Lisboa. Um pescador escreve que no Concelho de Abrantes, entre 1930 e 1950, existiriam cinquenta e um barcos a navegar de vela rio abaixo e rio acima, daí o nome dado às embarcações: barcos de rio acima.

Assim a produção da cal tirou proveito desta excelente via de transporte para se desenvolver e para fazer chegar a cal, através do rio Tejo, desde o seu local de produção, neste caso Abrantes, até Lisboa, percorrendo todos os portos que ficavam pelo caminho. É difícil precisar as origens mais antigas da produção de cal neste concelho, no entanto as primeiras referências aos fomos de cal, surgem no livro Memória Histórica da Notável Vila de Abrantes, onde o autor ao referir a fundação da igreja de S. Vicente, apresenta alguns requerimentos, nomeadamente um de 1590 dos mordomos da confraria das obras da igreja, pedindo para não serem encoimados os bois empregados na condução da cal do porto de Alferrarede quando passavam pelos olivais.

Em 1623, uma carta de sentença de D. Filipe III determinava não impor dízimos sobre produtos agrícolas, frutos, moinhos, azenhas, fornos de cal, lagares, colmeias, pesqueiras, coelheiras, pombais, etc.

No livro Abrantes -A vila e o seu termo no tempo dos Filipes também se fala da importância da cal referindo que em 1616 Fernão Pires “caieiro” vendeu cal e em 1629 e 1633 existiram reclamações por a cal estar muito cara.

 O registo mineiro, em 1883, dá conhecimento de várias minas de cal e cal hidráulica e em 1858, mais precisamente no dia 1 de julho, segundo a Cronologia de Abrantes no século XIX, ocorreu a mudança da praça de peixe fresco do mar e rio, cal, lenha, carvão tripas, fressuras e cabeças para o largo de S. Vicente (Largo da Ferraria).

 Nas fontes mais recentes aparecem também elementos sobre a indústria da cal. Nos jornais locais, desde 1900, é possível encontrar anúncios relativos à venda de cal na região, pelos próprios produtores.

 Também no livro O Concelho de Abrantes (Abrantes Cidade Florida), editado em 1944, aparecem vários anúncios dos produtores de cal, assim como o nome dos fabricantes/produtores por freguesia, o que nos dá uma ideia de quantos fomos funcionavam ainda na década de quarenta, tendo em conta que cada produtor podia ter mais que uma unidade de produção.

A produção de cal atravessou por isso vários séculos, até à sua extinção, na era de 1960/70 quando começou a ser substituída pelo cimento.

IMPORTÂNCIA SÓCIO-ECONÓMICA DA INDÚSTRIA DA CAL

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Os relatos, assim como os vestígios, indicam que existia um grande número de fomos e também de pedreiras de onde vinha a matéria-prima, que davam trabalho a um grande número de pessoas no Concelho, pois existiam muitas profissões que estavam ligadas a esta atividade, direta ou indiretamente. Tinha de haver pessoas para trabalhar no forno e na pedreira, desempenhando as seguintes funções:

- Retirar a pedra;

- Carregar a pedra para o forno (normalmente feito por mulheres, que usavam gamelas;

- Cortar o mato (faxina)-,

- Enfornar o forno onde se coze a cal (forneiro);

- Manter o forno quente;

- Limpar o forno depois de cada cozedura;

- Dar assistência permanente aos fornos (pedreiros)-,

- Carregar a cal para os barcos (também mulheres) e mais tarde para o comboio (carregadores); - Conduzir os carros de bois que transportam a cal (carreteiros);

- Orientar os barcos (barqueiros e marítimos);

- Construir e consertar os barcos que se estragam (carpinteiros e calafates).

Esta indústria movimentava ao seu redor um grande conjunto de pessoas, daí dizer-se que ela seria provavelmente uma das mais importantes do concelho e principalmente nas localidades onde os fomos estavam instalados. Além dos que estavam diretamente implicados na produção da cal, são muitas as profissões indiretamente ligadas à produção: os pedreiros, que assistem o forno; os barqueiros, que transportam a cal pelo rio; os carreteiros, que a transportam por terra e também os calafates e carpinteiros, entre muitos outros. Só no forno trabalhariam cerca de cinquenta pessoas. As mulheres que lá trabalhavam eram em grande número e muitas vezes levavam os filhos que ficavam por lá a brincar, ao mesmo tempo que estavam perto das suas mães. Aqui também se encontravam muitas meninas, que começavam a trabalhar muito novas, aos 9 anos já iam para as pedreiras com gamelas carregar pedras para os fornos de cal, o que era um trabalho muito duro para elas'1. Todo o trabalho era supervisionado pelas “patroas”, que estavam sentadas à sombra das oliveiras mais próximas. O negócio da cal tendia muitas vezes para ser um negócio de família, por exemplo na Barca do Pego os principais produtores eram cunhados.

Os jornais também tinham algum lucro, pois eram aí colocados vários anúncios, apregoando boa cal e oferecendo-se para comprar a faxina para os fomos. Hoje em dia, existem ainda alguns fornos que teimam em fazer perdurar a memória desta indústria. Na Barca do Pego, onde existem atualmente sete fornos e quatro pedreiras (uma visível, que mostra que esta atividade perdurou durante séculos, devido à imponência que ainda hoje tem no terreno, com vários metros de altura e outras três que foram soterradas pelo tamanho que tinham e pela sua perigosidade, pois eram normalmente muito altas). No Pego havia três fomos e seis pedreiras; no Rossio ao Sul do Tejo tínhamos três fomos e duas pedreiras (falta ainda contabilizar S. Miguel do Rio Torto, S. Facundo e Martinchel). No entanto, através de testemunhos orais, podemos ainda dar conta da existência de outros fornos que foram destruídos quer pela ação do tempo, quer pelo homem, assim como as respetivas pedreiras que foram tapadas devido aos enormes “buracos” com vários metros de altura, mas que ao serem tapadas deixaram o terreno apto a ser cultivado.

Esta indústria começa a entrar em declínio, não só pelo facto de o cimento se ter vulgarizado, mas também por uma possível escassez de mato, tornando necessário adquiri-lo. Os salários pagos para extrair a pedra, os transportes, o carregamento e o desenforno, não esquecendo os encargos sociais, deixam de permitir uma margem de lucro que justifique a produção de cal, nos modos aqui descritos, tornando esta indústria demasiado cara. Um outro fator é que a partir da década de sessenta, a melhoria dos transportes, a Guerra Colonial e a emigração vieram facilitar a saída de mão-de-obra que antes abundava e que agora não está disponível para trabalhar nos fornos. O trabalho aqui exigia tarefas muito duras e pouco compensatórias, pois esta produção permaneceu na sua faceta artesanal, necessitando por isso de muitas pessoas para trabalhar. Também a substituição do Tejo e dos barcos pelo comboio, apesar de em alguns sítios o caminho de ferro estar bem próximo do forno, ajudou a que esta indústria deixasse de ser rentável. Mas um dos fatores principais da decadência desta indústria foi o aperfeiçoamento de técnicas na construção civil e a introdução de outros materiais como o cimento. Torna-se mais rentável, usar o cimento do que a cal, até porque devido às condicionantes acima descritas esta começa a tomar-se cara.

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Forno de cal, com a boca selada

O QUE É A CAL E PARA QUE SERVE?

A cal é um pó branco obtido pelo aquecimento prolongado da rocha calcária a altas temperaturas, em fornos de cal. É normalmente branca, mas pode ser de cor cinzenta (de aparência semelhante ao cimento), devido às impurezas e à presença de argila, o que era o caso da cal fabricada no nosso concelho.

A base para se ter cal é o carbonato de cálcio que resulta das rochas calcárias, com diferentes percentagens de diversos materiais, responsável pelas características dos diferentes tipos de cal. Ao combinar a cal viva com a água, vai ocorrer uma reação química que transforma o óxido de cálcio em hidróxido de cálcio, cal apagada, hidratada ou simplesmente cal. Esta em contacto com o ar endurece, devido à evaporação da água da pasta e a uma carbonatação por absorção de anidrido carbónico do ar, formando novamente carbonato de cálcio.

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Pedreira calcária

O fabrico da cal ocorria em fomos próximos das pedreiras, normalmente de exploração artesanal, que funcionaram vários anos tendo por trás uma grande tradição familiar.

A cal foi um dos principais aviamentos usados na construção civil, pois entrava na composição da argamassa ordinária. Tinha várias aplicações, nomeadamente na caiação, elaboração de argamassas, de reboco e enchimento, estuques, etc. Pelas suas propriedades, é também um bom desumidificador.

A cal era empregada nas construções, lotada, ou traçada, com areia em proporções convenientes, constituindo a argamassa, para ligar as pedras e os tijolos na construção das alvenarias. Com o tempo a argamassa vai secando e endurecendo, ligando fortemente aqueles materiais, o que é devido à evaporação da água da pasta e à regeneração do carbonato de cálcio, pela ação do ácido carbónico do ar sobra a cal. A sílica, que constitui a areia que se mistura com a cal na argamassa, exerce lenta ação sobre a cal, concorrendo para o seu endurecimento, pela formação de silicato de cálcio.

Na agricultura, ajuda a melhorar a eficácia dos solos, potenciando a ação dos adubos.

Quanto à indústria, tem também diversas aplicações, como por exemplo: siderurgia, fabrico de alumínio, indústria química, tratamento de fumos, tratamento de água potável, descontaminação de terrenos, entre muitas outras.

Na Arte, a cal foi usada nas pinturas a fresco.

PROCESSO PRODUTIVO

Para poder ser utilizada em todas estas aplicações, a cal tem de ser transformada a partir do calcário, sendo para isso necessário descobrir um filão desse material e fazer a sua extração em pedreiras. Começava assim a laboração procurando a pedra, usando vários utensílios como picaretas, enxadas e pás. Depois perfurava-se a terra com a ajuda de um guilho em que se vai batendo com uma marreta para partir a rocha. Fazia-se um buraco onde depois se colocavam os explosivos, e antes de os fazer rebentar gritava-se “fogo” para os trabalhadores se protegerem.

A pedra era depois retirada em gamelas, normalmente por mulheres, nos primeiros tempos diretamente para o cimo do forno, utilizando uma rampa ao lado do forno e mais tarde para dentro das vagonetas, movidas nuns carris com ajuda de um guincho alimentado por um motor a petróleo, que se encontrava no cimo do forno, em alguns casos tapado com um telheiro.

As pedras eram em seguida descarregadas e “atiradas” do cimo para o fundo do forno (caldeira), onde previamente já tinha sido depositada uma camada de faxina que amortecia a queda, mas também era o combustível usado para cozer a cal. Já no fundo do forno, a pedra era empilhada pelos homens, no parapeito interior do forno, para construir, a partir do fundo, uma espécie de abóbada à volta da estrutura, utilizando grandes pedras de calcário denominadas pedras de fiada, sendo depois presas com outras mais pequenas. A esta tarefa dá-se o nome de enfornar.

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Uma vez chegado ao cimo da estrutura, esta é tapada com tijolo e barro, originando uma pequena elevação a que se chama capelo, sendo também todo barrado para não perder o calor. A porta do forno também era tapada com tijolo e com uma estrutura de madeira própria. Esta permitia que, ao ser retirada, ficasse uma abertura por onde era ateado o fogo e por onde se ia vendo a evolução da cozedura, pela sua cor e acrescentado a faxina necessária ao cozimento da cal.

O forno tinha de ser mantido quente durante o tempo de laboração, que variava e sete a nove dias, conforme o tamanho do forno, sem deixar baixar a temperatura durante todo o dia e toda a noite, usando o mato, lenhas viscosas e faxina.

Quando a pedra estivesse vermelha, era a altura de partir a porta grande e o capelo e ser desbarrado.

Após a cozedura e a cal ser retirada, o forno era limpo e eram retiradas as cinzas, o que deixava os trabalhadores completamente pretos por causa da fuligem. As pessoas que lá trabalhavam usavam então as águas do Tejo para se lavarem. Após todas estas tarefas o ciclo começava de novo com uma nova fornada. Entretanto haviam sido queimadas, entre 35 e 38 toneladas de mato, segundo uma estimativa de Margarida Ribeiro, no seu texto sobre as caleiras de Escusa (Marvão).

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Resto de telheiro para abrigo de forno

Este elevado consumo de mato vai refletir-se também a nível ecológico, nomeadamente no que diz respeito aos incêndios, pois para cozer a cal era necessário muito mato e lenha, ora isso obrigava a que todos os pinhais e terrenos estivessem limpos, de tal forma que chegava a ser necessário comprar esse combustível por fora. Isto beneficiava os terrenos, pois se estavam limpos não havia incêndios, logo os verões seriam com certeza bem mais calmos.

COMERCIALIZAÇÃO

Depois de a pedra arrefecer, o que podia levar alguns dias, as mulheres levam a cal em gamelas para os barcos estacionados nos portos do Tejo, para depois ser vendida em portos fluviais desde Rio de Moinhos a Lisboa. A cal seguia também para os carros de bois que a iriam vender por terra. Mais tarde, a cal era também carregada para os vagões do comboio, pois por exemplo na Barca do Pego havia um desvio para encher os comboios que transportavam a cal para vários locais. Os vestígios deste abrigo ainda são visíveis na Barca do Pego. Mas podia também ser vendida em metros cúbicos à porta do forno.

Uma outra forma de vender a cal era através dos jornais, onde podemos encontrar anúncios em que se apregoava sempre a melhor cal, assim como onde e a quem esta podia ser comprada e, em alguns casos, disponibilizando os preços.

GLOSSÁRIO

Boca do forno - Abertura existente na frente do forno, por onde se lança o fogo e se põe a faxina.

Caldeira - Fundo do forno, onde se coloca a faxina e a lenha que depois é queimada.

 Capelo - Pequena elevação no cimo do forno, construída com tijolo e barro quando a pedra empilhada chega ao cimo.

Enfornar - Empilhar a pedra no parapeito interior do forno, para construir, a partir do fundo, uma espécie de abóbada.

Faxina - Mato, restos de lenha miúda, rama de pinheiro bravo e estevas que não serviam para mais nada.

Gamelas - Caixas de madeira, para transportar as pedras para os fornos e para carregar a cal depois de cozida. Guilho - Instrumento de ferro que serve para fazer buracos na pedra.

 Marrão - Maço de Ferro.

Marreta - Maço de ferro, de cabeça quadrada, com um cabo comprido, que serve para partir e quebrar pedra.

 

In: CORDA, Célia – A indústria da cal no concelho de Abrantes. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 5 Nº 9 (2007), p. 39-43