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Moinho do lagar Mouritejo.

 POR ALBERTO GROSSINHO - Engenheiro, natural de Mouriscas

A população de Mouriscas sempre teve a sua atividade centrada na agricultura de pequena dimensão, baseada na mão-de-obra dos próprios donos das terras e dos seus familiares. Os produtos desta atividade eram utilizados no consumo das famílias e dos seus animais e, em certos casos, os excedentes constituíam uma fonte de rendimento muito importante, que permitia satisfazer necessidades fundamentais, como o vestuário, as obras nas habitações, a educação dos filhos, e outras.

Constituíam, pois, fontes de rendimento o azeite, os figos, os pinheiros, produtos hortícolas, vendidos à porta e na praça, os cereais, como o milho e o trigo e ainda alguns animais, sobretudo os porcos e os cabritos, que eram engordados com base nos produtos da terra.

Da produção própria, era o azeite, sem qualquer dúvida, aquele que melhor rendimento assegurava, dada a sua qualidade e o seu elevado valor no mercado como consequência dos bons hábitos alimentares dos Portugueses. Por esta razão o estado das oliveiras, a bondade do ano de azeite e o seu preço, eram sempre fatores de interesse e de discussão por influenciarem a economia familiar, permitindo ou não fazer as compras necessárias. Algumas vezes tinha de haver um adiamento das compras, por ter sido um mau ano de azeite. Era até costume verificar se na noite de Natal o céu estava estrelado, o que era indício de um ano promissor de azeitona.

A produção do azeite, desde a apanha da azeitona, o seu transporte até ao lagar, o fabrico, e a venda do que excedia o consumo próprio ocupavam as pessoas residentes em Mouriscas durante algumas semanas, no final de cada ano. A apanha da azeitona é uma tarefa que necessita de muita mão-de-obra e, mesmo hoje, em que, fruto do desenvolvimento tecnológico e da necessidade de aumentar a produção, já existem algumas máquinas, ainda não foi possível dispensar uma boa parte dessa mão-de-obra.

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Para executar essa tarefa existiam os “ranchos”, que eram grupos de homens e mulheres, ou da terra ou de outras localidades, normalmente recrutados pelos donos dos lagares. Estes ranchos apanhavam a azeitona das várias pessoas, a qual era transportada a expensas do próprio dono do lagar onde era moída. Os proprietários dos lagares conseguiam assim captar clientes, pelo facto de disporem de um rancho. Recordo-me de, por volta do ano 1952, os homens do rancho ganharem vinte escudos por dia, e as mulheres dez.

Este trabalho durava algumas vezes até fins de janeiro se o ano era bom, mas também não chegava ao Natal, quando era fraco.

No final da época havia as “filhós” do rancho, que constavam de um cortejo, desde o último olival, normalmente do patrão, até à casa deste, com um acordeonista em alguns casos, e os homens, rapazes, mulheres e raparigas a cantar canções populares. Havia depois um jantar e bailarico até às tantas. Tudo isto era bem “regado”, sobretudo quando a ano era produtivo, com vantagens para todos, patrão e trabalhadores.

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Na fotografia da esquerda, moinho do Lagar da Bica da Pedra, movido por animal; na da direita, esquema de prensa de varas.

Após a entrada da azeitona no lagar, nova etapa do processo se iniciava, a sua moedura.

Esta fase, uma vez que a capacidade produtiva dos nossos lagares não era satisfatória nos anos de grande produção, gerava alguma pressão junto do “mestre”, por parte dos clientes, no sentido de acelerar a sua moedura, pois que não era aconselhável a permanência da azeitona muito tempo no lagar. Mas chegada a sua vez, lá entrava no moinho de galgas e se iniciava o fabrico do azeite, com a moedura, a passagem para os capachos, que eram colocadas em pilha nos carros e depois apertados nas prensas. Durante o aperto, o enseiramento, nome que era dado a uma pilha de capachos com a massa, tinha que ser guiado no carro, com umas trancas de madeira. A pilha de seiras tinha que ser mantida na vertical, pois que pelo facto de a massa da azeitona, com o azeite, ser muito escorregadia, havia a tendência para aquela entortar. O aperto era lento para assim escorrer o máximo de azeite, o que era facilitado pelas várias regas das seiras com água muito quente. O azeite que escorria para o carro era depois conduzido através de um tubo feito de pano, para uma caleira ou tubo e destes para as tarefas. A rega era feita ou com um regador, ou em alguns casos, por um tubo circular com muitos furos, montado no teto da prensa, o qual recebia a água da caldeira.

A mistura do azeite com a água ficava depois algum tempo nas tarefas, onde decantava, ou seja, onde a água se separava do azeite. As tarefas tinham uma forma tal que facilitava esse processo. Eram cilíndricas, com a parte inferior em forma de cone invertido, quando em chapa, e redondas, com um grande diâmetro na boca e reduzindo o diâmetro até ao fundo, onde existia um bojo em forma de cântaro pequeno, quando feitas em barro. Ligeiramente acima do fundo, as tarefas de chapa tinham uma torneira e as de barro um furo, que servia para a saída da água ruça, constituída pela água que havia sida lançada sobre os capachos e os restos da azeitona que não são azeite nem bagaço. O sistema de fecho do furo das tarefas de barro, tinha algo de interessante, pois era constituído por um pau de diâmetro inferior ao furo e na sua extremidade interior tinha uma cabeça feita de estopa enrolada em várias camadas, em forma de roca, a que se dava o nome de “espicho”. Era colocado na tarefa de dentro para fora. A pressão interior do azeite empurrava o espicho para fora mantendo o furo tapado. Quando era necessário retirar a água ruça, bastava empurrar a parte exterior do pau, permitindo que a água saísse. A estopa enrolada ao pau tinha uma forma cónica para facilitar a vedação. Durante o processo de decantação, era misturada água muito quente e agitada a mistura, o que melhorava o processo em causa. Esta agitação era assegurada através de uma vara de marmeleiro.

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Na fotografia da esquerda, prensa de lagar, na da direita, bateria do lagar Mouritejo.

A fase seguinte do processo de fabrico do azeite, constava da retirada da água ruça, que após a decantação, por ser mais densa que o azeite, se acumulara no fundo das tarefas. Para isso era aberta a torneira, nas tarefas de chapa e empurrava-se ligeiramente o espicho, no caso das de barro. A água ia saindo, mas era necessário não deixar sair o azeite e para isso o “mestre do lagar”, o responsável pelas tarefas mais importantes, através de uma varinha flexível, normalmente de marmeleiro, ia agitando ligeiramente nos dois sentidos e mergulhando a varinha. Sentia quando a sua ponta passava do nível do azeite para o da água, por esta provocar maior atrito nos movimentos laterais. É claro que nunca se deixava sair a água toda, ficando sempre no

fundo da tarefa uma pequena quantidade, sendo a separação da água feita quando se retirava o azeite por cima. Na parte final era utilizada uma vasilha própria, com a face plana para recolher o azeite e deixar a água ruça. Para o desempenho desta função era necessário ter muita sensibilidade e experiência. Atualmente a separação do azeite é feita através de centrifugadoras, que aumentam ligeiramente a produção, pois executam uma separação mecânica mais eficiente, e o azeite cria depois menos pé. Há opiniões de que o azeite centrifugado perde algumas qualidades de sabor por ser submetido ao efeito da força centrífuga contra as paredes do tambor da máquina e da temperatura, que é superior.

Antes da existência das prensas hidráulicas, que ainda existem em alguns lagares, o aperto para a extração do azeite era feito por um processo de vara com fuso, que funcionava por ação da força humana.

Terminado o processo de fabrico, o azeite era transportado para casa dos respetivos donos, utilizando muitas vezes o transporte do proprietário do lagar. Em alguns casos ficavam os excedentes para venda.

Além do azeite, saía da azeitona o bagaço, que ficava nos capachos após a prensagem. Este bagaço, que era constituído pelos restos da azeitona, incluindo o caroço moído, depois de retirado das seiras era em alguns casos molhado, e colocado de novo nos capachos, sofrendo uma segunda prensagem, para retirar mais algum azeite. Esta operação nem sempre resultava e quando se fazia, o primeiro aperto não era tão forte. O bagaço, que normalmente era entregue ao dono da azeitona, servia em geral para a engorda dos suínos.

O pagamento dos serviços do lagar era feito em azeite, através da chamada maquia, que era uma percentagem determinada de azeite que ficava para o lagar, para depois ser vendido. O lucro dependia assim da capacidade de negociação do seu proprietário com os armazenistas que compravam grandes quantidades de azeite. O próprio Governo decretava anualmente, através da Junta Nacional do Azeite, uma tabela com o seu preço de venda. Havia, no entanto, alguns armazenistas que pagavam acima da tabela.

Também no final dos trabalhos do lagar, se faziam as “filhós”, à semelhança do que acontecia com o rancho, e que, como não podia deixar de ser, constavam de uma grande jantarada, “bem regada”, em que não faltavam as filhós, por acontecer próximo do Natal.

Em Mouriscas, na década de cinquenta, funcionavam cerca de vinte e cinco lagares de azeite, uma parte deles com propulsão por motores diesel e ainda alguns movidos a água e, portanto, localizados junto a ribeiras. Também existia pelo menos um lagar, no lugar da Bica da Pedra, que era movido por um animal de raça muar. Posteriormente os lagares movidos a diesel, passaram o utilizara eletricidade e os de água vieram a desaparecer.

Nesta data, para além das cooperativas “Mouritejo” e “Coagriolimo” apenas estão a laborar dois lagares na freguesia.

Atualmente o processo de extração do azeite continua a ser feito em alguns lagares do tipo dos que descrevemos, ainda que com algumas alterações e através dos lagares de linha.

O facto de a cultura da oliveira em Mouriscas ser intensiva, provocou a necessidade da existência de lagares de azeite, e consequentemente apareceram as fábricas de seiras e capachos, o que foi muito positivo para a economia da nossa terra.

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Na fotografia da esquerda, enseiramento sobre carro; na da direita, prensas do lagar Mouritejo.

No início eram utilizadas as seiras, redondas e com uma bolsa, onde era introduzida a massa. Posteriormente passou a utilizar-se os capachos que são em forma de disco e fabricados em cairo. As primeiras seiras eram fabricadas em esparto.

Ainda como consequência do desenvolvimento da produção de azeite em Mouriscas e com a evolução dos conhecimentos práticos adquiridos pelos mestres dos lagares, estes passaram a ser conhecidos em vários pontos do país. Eram contratados, de norte a sul. A satisfação suscitada pela sua competência, fazia com que os patrões os contratassem anos afio.

Todas estas informações resultaram das recordações da minha vivência em Mouriscas durante a juventude, onde estudei no Colégio Infante de Sagres e também do acompanhamento muito próximo da atividade agrícola da minha família, em particular as frequentes visitas, que fazia com o meu pai ao nosso lagar, hoje Cooperativa Mouritejo. Nessas idas frequentes ao lagar sempre me interessei bastante pelos pormenores do fabrico do azeite e pelos equipamentos que eram utilizados para a sua produção.

Ali comi umas boas torradas com azeite puro, feitas com pão da padaria do Sr. Pedro Oliveira, que era ali perto, torrado na fornalha da caldeira e depois mergulhado no azeite das tarefas.

IN: GROSSINHO, Alberto – Mouriscas e o azeite. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 8. Nº 16 (2010), p. 75-78