POR ANA PAREDES CARDOSO - Historiadora da Arte, membro do CEHLA.

O texto que aqui se apresenta é uma reflexão apoiada em textos publicados e confrontação com observações e recolhas de testemunhos orais nos concelhos de Abrantes, Constância e Sardoal.

Designam-se alminhas os pequenos monumentos, geralmente, em forma de nicho, encimados por uma cruz, construídos ao ar livre, de feição ingénua, nos mais variados materiais, que têm por objetivo lembrar os vivos de rezarem pelas almas em sofrimento, muitas vezes, através de inscrições, mais ou menos, eloquentes:

Ó vos que ides passando

Lembrai-vos de nós

Que estamos penando

PN.A.M.

Ou:

Nós penamos

E vós zombareis

Mas lembrai-vos que em breve

Como nós sereis

Pelas almas do Purgatório

Padre Nossa/Avé Maria

Relativamente à origem desta expressão religiosa existem duas propostas diferentes.

A primeira, apresentada por José Leite de Vasconcelos e Vergílio Correia, aponta para a Antiguidade Clássica.

Os dois etnógrafos defenderam que as alminhas são “descendentes diretos” dos altares romanos dedicados aos Lares Viales (Deuses dos caminhos) e aos Lares Compitales (Deuses das encruzilhadas). Tal como testemunha um espécime encontrado em território português, presentemente à guarda do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa em Braga, com a seguinte tradução: Aos Lares dos Caminhos, Maternus, filho de Rufus, de bom grado colocou.

O argumento para esta filiação tão remota assenta no facto dos monumentos antigos terem sido erguidos em sítios idênticos.

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Fotografia da esquerda Altar romano.  Fotografia da direita Cruzeiro, Aldeia do Mato

A segunda teoria, mais recente e com mais seguidores, refuta esta hipótese, uma vez que, o amparo solicitado nos monumentos da Antiguidade nada tinha que ver com o diálogo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Com efeito, a preocupação era somente apelar proteção para os campos cultivados, as povoações e os viandantes expostos às agruras das viagens.

A proposta mais consentânea considera as alminhas enquanto manifestação de uma piedade cristã resultante da formalização do Purgatório, ocorrida no século XVI.

A devoção patente centra-se na crença de que a alma separada do corpo passaria primeiro pelo Purgatório, para a expiação dos pecados cometidos na terra; depois subiria ao Céu.

Os antecedentes históricos a destacar no processo desta mudança de paradigma aconteceram, um em 1274, na II sessão do Concílio de Lião, altura em que se anunciou a existência de um lugar de purificação pelo fogo, o outro, mais tardio, em 1439, num Concílio de Florença, onde se reafirmou a existência de um terceiro lugar destinado à absolvição dos pecados da vida terrena.

Seria, no entanto, o movimento da Contra- -Reforma, que em 1563, na XXV sessão do Concílio de Trento, redefine, decisivamente, o dogma da existência de um lugar intermédio de absolvição.

A partir de então, a preocupação em salvar as almas, com orações e esmolas, propaga-se por toda a Europa cristã, cabendo aos fiéis vivos resgatarem as almas penitentes.

Sequentemente, surgem as confrarias e irmandades das almas com capelas próprias no interior das igrejas.

Estas associações do Antigo Regime tiveram um papel preponderante na difusão do culto das Almas no Purgatório, porque ao encomendarem os seus altares propagaram uma iconografia particular - os corpos desnudos agonizando em labaredas, que se tornaria copiosa durante o século XVII.

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Na fotografia da esquerda: Alminha, na Freguesia de Carvalhal, na bifurcação para a Matagosa da estrada que liga S. Domingos a Fontes.

Na fotografia da direita, Alminha, igualmente na Freguesia de Carvalhal.

Posteriormente, os rogos das almas vêm para a rua, precisamente, para as bermas dos caminhos, para as bifurcações e encruzilhadas, para as entradas/saídas das povoações e pontes, implorando aos vivos, que as ajudem a alcançar o Céu.

Numa primeira fase, as alminhas surgem aliadas aos cruzeiros e autonomizam-se depois, ocupando lugares homólogos. Sendo também nestes espaços sacralizados que, durante a Quaresma, se difundiu o costume da encomenda cão das almas. Tradição esta, que na Aldeia do Mato, segundo as memórias vivas, se manteve até há cerca de cinquenta anos.

Relativamente à expressão artística, no século XVII destaca-se o predomínio das pinturas singelas sobre madeira com o tema do purgatório: corpos desnudos no meio do fogo purificador e o arcanjo São Miguel, conforme anteriormente mencionado.

Nos séculos XVIII e XIX a representação dos corpos entre as labaredas tende a desaparecer, dando lugar à crucificação de Cristo, à Virgem, nas suas várias evocações, ou aos Santos, que surgem como intermediários principais na salvação das almas.

Finalmente, no século XX continuam os mediadores referidos, mas em painéis de azulejos, em regra datados.

Quanto à distribuição geográfica, em 1913 Vergílio Correia escrevera “estas construçõesinhas teem uma área de dispersão enorme; mesmo fora de Portugal, já as vi na Itália (arredores de Nápoles), Sorrento, campanha romana e também na Suissa e Alemanhã'.

Por sua vez, Flávio Gonçalves, um historiador com trabalhos relevantes sobre a matéria, em 1959, refere somente Portugal, Galiza e Astúrias, excluindo a existência de nichos às almas nos territórios da expansão portuguesa.

Recentemente, contrariando esta afirmação, a historiadora da arte Yolanda Bar-riocannal López, em 1985, regista a existência de alminhas modernas no Brasil e na índia.

Em Portugal, atesta-se que o culto às almas é mais vulgar a norte do rio Mondego, começando a rarear a sul.

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Na fotografia da esquerda: Nicho de promessa, Cabeça Gorda. Na fotografia da direita: Nicho de promessa, Barrada, São Facundo.

Na região em apreço a expressão “alminhas” não é do conhecimento geral das populações, o que corrobora a proposta de que esta atenção às “almas em pena”, no centro e sul do país teve maior aceitação no interior das igrejas e capelas.

As alminhas subsistentes são construções contemporâneas dos meados do século XX, apesar de alguns destes monumentos novecentistas poderem constituir renovações de outros anteriores, como de resto a toponímia local parece memorar.

Do conjunto observado, os nichos que não oferecem dúvidas encontram-se na freguesia do Carvalhal de Abrantes. Um localizado numa bifurcação de caminhos com as iniciais PN.A.M. (Padre Nosso e Ave Maria), o outro, numa das entradas do núcleo humano. Ambos azulejados, datados dos anos sessenta do século XX.

Em contrapartida os nichos motivados por promessas são em maior número, continuam a edificar-se em espaços públicos e são conhecidos pela população local por “santinho/a”.

As motivações para estas construções singelas são variáveis, problemas de alcoolismo, infertilidade ou momentos de morte iminente, mas todos materializam um ato de fé - a gratidão pelo socorro divino, que se pretende mostrar à comunidade.

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

- Boletim da Junta da Província do Ribatejo, n.º1, anos 1937-1940.

- Correia, Vergílio, Etnografia Artística Portuguesa, Barcelos, 1913.

- Gonçalves, Flávio, “Os Painéis do Purgatório e a Origem das Alminhas Populares” in Separata do - -Boletim da Biblioteca Municipal de Matosinhos, n°. 6,1959, pp. 71-107.

- Yolanda Barriocannal López, Arte Popular, los petos de animas, Boletín Avriense, Anexo III, Museo -Arqueoloxico Provincial de Ourense, 1985.

- Pêgo, Maria Carlos Chieira, Roteiro das Alminhas do Concelho de Severdo Vouga, ed. Câmara Municipal de Sever do Vouga, 1987.

- Santo, Moisés Espírito Santo, A Religião Popular Portuguesa, Lisboa, Assírio e Alvim, 1990.

- Unamuno, Miguel, Por terras de Portugal e da Espanha, Lisboa, Assírio e Alvim, 1985, pp. Vasconcelos, - José Leite, Etnografia Portuguesa, vol. VII, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1980.

 

IN: CARDOSO, Ana Paredes – Alminhas património discreto e disperso. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 9. Nº 17 (2011), p. 38-42