José Alves Jana*

Manuel Lopes de Sousa é um inventor abrantino e um militante da criatividade. Com obra reconhecida por todo o Portugal, e mesmo no estrangeiro, não pode dizer-se que tenha um suficiente reconhecimento público na sua zona. Mas as suas máquinas são bem conhecidas nos meios da lavoura onde têm provas dadas. E, nas palavras do especialista em agricultura, Eng. Fausto Briosa, «o homem que, em Portugal, melhor domina o vento, ou seja, o ar em movimento», nomeadamente no domínio das máquinas de limpeza. Em 2003 cumpre 80 anos. Iniciamos, hoje, com uma entrevista, um dossier que terminaremos no próximo número.

 

1923 Nasce em Abrantes, a 15 de Setembro. 

              Nasci na castiça Rua da Barca. O meu pai era um "topa a tudo", desde trabalhar no campo ou fazer encerados (não havia os plásticos) que vendia nas feiras, sobretudo na feira da Ponte de Sor, até à venda de bolos pelas festas e às recolhas de lixos da cidade para produzir estrume que depois vendia. A minha mãe era doméstica, ou seja, acompanhava o meu pai nas lides dos bolos, dos oleados... 

             O meu pai era casado em segundas núpcias e tinha seis filhos do primeiro casamento e três, eu e mais duas irmãs, do segundo; a minha mãe também era casada em segundas núpcias e tinha um filho. Eramos, portanto dez, o que mostra as dificuldades, sobretudo se pensarmos que o meu pai já tinha uma certa idade. 

1935 Faz o exame do 2º grau (a 4a classe ou 4º ano).

Frequentei a escola primária na Rua Grande [Rua Santos e Silva], onde depois esteve a Escola Industrial e hoje está a PSP. Tive um distinto professor, chamado Octaviano Machado Leal, um homem de facto extraordinário, que deixou bem vincada toda a sua instrução. Por essas alturas, portanto logo a seguir ao exame e antes de aprender o ofício, pois só se entrava para o ofício aos 14 anos, fui, a convite do P. Roque, um padre que marcou praticamente toda a minha geração, ajudante da missa, acólito. 

E foi escuteiro do CNE, no Agrupamento 87, de Abrantes. 

Paralelamente, entrei nessa grande escola que é o escutismo. Grande porque os princípios adquiridos vincaram bem a minha vida. Recebi aí grandes ensinamentos, como uma boa destrinça entre o bem e o mal. O chefe era o alferes Santos, depois o capitão Rufo e, já numa fase posterior, o capitão Galeano. Até mesmo no campo das artes teve importância para mim, porque também fazíamos trabalhos lá dentro, sobretudo com o sargento Soeiro. Chegámos a construir barcos, que depois utilizámos no Tejo. Também fizemos boas peças de teatro, onde me destaquei como cantor de baladas, como se pode ver nas Poeiras do Passado, no Jornal de Abrantes  

1937 Arranja contrato como aprendiz de serralheiro.  

O meu pai queria que eu fosse barbeiro, mas eu procurei rodear a coisa e, através dos escuteiros, procurei a alternativa de aprendiz de serralheiro. Tive um só patrão, José dos Santos Bioucas, o pai do Zé Bioucas [José dos Santos de Jesus], durante 7 anos. Depois estabeleci-me aos 21 anos por conta própria como serralheiro. 

Serralheiro, e não mecânico. Na altura toda a rapaziada queria ser mecânico. Mas ser mecânico era mexer naquilo que os outros faziam e ser serralheiro era poder fazer aquilo que a ideia pedia. Embora tenha conhecimentos de mecânica, não aprofundei essa área.  

Já sentia, portanto, a criatividade. 

Nessa altura já tinha muitas coisas criadas. Por exemplo uma bola de futebol, por volta dos 9 anos. Jogávamos com bolas feitas de meia, que se rompiam rapidamente. E eu criei uma bola. A minha irmã mais velha ensinou-me a fazer a malha de meia com agulha e eu, com fio de guita, fiz uma meia concha e continuei até fechá-la. Fiz uma bola esférica, só com os orifícios para introduzir o recheio: papel e trapos. 

A bola não se chegou a romper, porque ficou num telhado, inacessível. Mas ficou a técnica. Essa técnica, ao fim de tantos anos, considero-a ainda actualizada: se fizermos com fio de couro uma bola normal, de futebol, teremos uma bola completamente esférica e sem gomos. Estou convencido que seria melhor que as que se utilizam agora e com a particularidade de poder fazer-se à máquina. 

Foi a sua primeira invenção? 

Não. A primeira coisa que fiz foi, a pedido de uma senhora, um braço para um menino Jesus, que estava partido. Não foi uma invenção, mas foi um trabalho digno de ser visto.   

Ao fim de 2 anos, o patrão começa a remunerá-lo. O dinheiro que ganha entrega-o aos pais. Trabalha "por fora" para arranjar dinheiro para si.  

O contrato de aprendizagem era estar 3 anos a trabalhar gratuitamente mas comecei a receber salário ao fim de 2 anos, sinal de que o patrão estava satisfeito. O salário era religiosamente entregue aos meus pais, por causa das suas dificuldades, até aos 21 anos.  

Para suprir a falta de dinheirito, fazia diversos trabalhos, muitas vezes à noite e à luz da candeia. Entre esses trabalhos contam-se forjados artísticos, ferragens para arcas de tipo antigo, pregos para revestimento das mesmas, coisas que vendia a diversos profissionais, entre eles o marceneiro Salgueiro, que era um grande artista nessa especialidade. Nessa altura, entre outros trabalhos, construí as canalizações do Colégio de Fátima. 

1938 Aos 15 anos, primeira invenção "profissional": máquina de fazer arame em S. 

Como já disse, um dos problemas, dadas as dificuldades com que então vivia, era angariar algum dinheiro. Na altura, os telhados eram feitos com telha de canudo e, para maior segurança, as telhas eram presas por pequenos arames dobrados em S que se vendiam nas casas de ferragens e eram colocados pelos pedreiros. Então eu pensei em arranjar um sistema, ou seja, uma máquina, com mecânica minha, que cortava e dobrava rapidamente os ditos arames. Permito-me referir um grupo de três carretos que foram traçados e divididos a compasso, e os seus dentes abertos manualmente à lima. Para dar uma ideia da eficiência e do rendimento dessa máquina, que ainda conservo como uma relíquia, basta dizer que, depois do arame ser colocado na máquina, cada movimento dado a uma alavanca obtinha uma peça completa. Depois, vendia-as às casas de ferragens, Casa Salgueiro e outras, e aos pedreiros da região. A maioria do arame pedia-o nas lojas, daqueles que vinham a fechar os caixotes de sabão e, quando não chegava, comprava-o. O trabalho fazia-o em casa, mas fazia-o também na oficina de um senhor que tinha uma forja e diversas ferramentas de serralharia perto do matadouro e deixava-me, aos sábados, domingos e fora das minhas horas de serviço, fazer os tais arames, e outros trabalhos. Eu ia para lá com um colega, o Ramiro Cardoso, que era aprendiz como eu. Eu fazia as minhas coisas e ele as dele. E assim conseguia arranjar algum dinheiro para as minhas despesas de rapaz. 

 
Manuel de Sousa aos 20 anos

1940 Aos 17 anos, concebe e constrói uma máquina de acertar chaves tipo "americano" e "inglês". 

Por essas alturas, também, construí a máquina para acertar chaves tipo americano e inglês, pois essa operação era feita manualmente. A partir daqui, essa tarefa ficou muito facilitada. 

Fiz muitas floberes de caça, muitas delas de carregar pela boca, com um sistema para poupar os fulminantes de compra, utilizando as cabeças dos fósforos de cera com um dispositivo próprio que até tinha fuga de gazes.  

Aos 17 anos, constrói um botão para accionar autoclismos. 

Que ainda hoje tenho na minha casa, a funcionar, e ainda existem muitos em Abrantes. O botão vinha substituir a corrente e tirar o autoclismo da casa de banho. O botão vem a aparecer mais tarde nos sistemas comerciais.  

1938-45 Músico da Sociedade de Instrução Musical de Abrantes. 

Membro do conjunto Os Canários, do Pego (trompete). 

Na Sociedade de Instrução Musical de Abrantes tocava trompete. Chegámos a tocar obras de Beethoven. Os Canários [conjunto musical do Pego] perderam o trompete e convidaram-me. Ia a pé daqui ao Pego, especialmente aos bailes do Ti Rina. Lembro-me de uma vez ter atravessado a ponte do caminho de ferro, às tantas da madrugada, para ser mais rápido, e faltou-me o pé, porque faltava uma tábua na passadeira. Doutra vez, atrás do cemitério, alta madrugada, tropecei e caí e o dinheiro em moedas que trazia no bolso, produto do trabalho, espalhou-se pelo chão, mas como estava luar, consegui recuperá-lo todo.  

1944 Produz moldes em alumínio para a fundição de sifões em chumbo. 

Sim, mas isso já foi aos 21 anos de idade, talvez um pouco antes de me estabelecer. Os sifões eram muito usados nas canalizações de chumbo. Criava os modelos em gesso trabalhado à navalha, depois fundia em alumínio que depois de aperfeiçoado servia de moldes para fundir os sifões em chumbo que também vendia ao comércio, chegando mais tarde a vendê-los em Lisboa. Os meus filhos muitas vezes lá os colocavam para ajudar a pagar as despesas de estudo no Instituto Superior Técnico.  

1944 Estabelece-se, com 21 anos. Forma a firma Baptista & Lopes, com oficina na Rua Nova, nº 8: canalizações, serralharia civil e artística. 

Embora pudesse fazê-lo mais cedo, estabeleci-me só aos 21 anos para que o meu pai não tivesse qualquer responsabilidade naquilo que eu iria fazer. Trabalhávamos em canalizações, em serralharia e forjado artístico, que vendíamos, muitas peças até para Lisboa, através de um cunhado meu. Isto vai durar aí três anos.  

1945 Constrói uma boia de lâmpadas para autoclismos. 

Eu dava assistência no ramo de canalizações a diversas casas em Abrantes, entre elas o Colégio de Fátima. Como as avarias nas boias dos autoclismos eram constantes, procurei eliminá-las, o que consegui com a substituição das boias de cobre por lâmpadas fundidas. Possuo um desses sistemas há 40 anos, sem qualquer avaria, o que não acontece às boias. 

 

1945/46 Entretanto faz duas exposições de forjados artísticos. 

Foram nas montras da Casa Salgueiro, na praça da Câmara [no lugar do actual Café Chiado], com trabalhos produzidos na firma: candeeiros, candelabros, cinzeiros... aos quais se referiu Diogo Oleiro no Jornal de Abrantes de 20 de Janeiro de 1946. 

 

 

Boiador de autoclismo

 

1946 Casa com Emília Rosa Lopes, de Chainça: terão 3 filhos. 

Filhos que na nossa vida foram o objectivo número um. Tendo em conta a sua educação, posso dizer que foi um objectivo atingido.  

1947 Forma nova empresa, Baptista Lourenço Silva & Lopes. 

Esta firma aparece para podermos entrar num campo mais alargado e incluir a mecânica de automóveis, a reparação de automóveis. Convidámos mais dois sócios, o Lourenço e o Silva, bons mecânicos, e tomámos conta da Auto-Reparadora Abrantina. Isto durou talvez uns 5 anos.              

1951 Regista a patente de invenção nº 28.890: máquina de cortar legumes, frutos e tubérculos.  

           Eu ia com a minha criatividade ao encontro do que era preciso. Neste caso, senti a dificuldade que havia nessas operações. Senti a necessidade, por exemplo, de batatas cortadas finas para que o azeite as passasse bem... O ponto alto desta máquina é sua regulação fácil para cortar fino ou grosso. Chegava a ser convidado para cortar batatas de fritar para festas particulares, e não só, pois ainda não havia batata frita de pacote, mas nessa altura já eu as cortava com facilidade tao boas ou melhores que as actuais. Esta maquina não chegou a ser desenvolvida por dificuldades financeiras. 

Varandas de ferro forjado

1952 Nova empresa, individual. 

Foi para fugir à mecânica. Estive na Rua capitão Correia de Lacerda, nº9, um ano se tanto. 

Ainda estive um tempo na Auto-Reparadora, individualmente, pela quota que tinha na firma, pois não me foi paga. Em 1956 construí o primeiro pavilhão das actuais instalações.  

Entretanto, fazia já trabalhos de canalização e serralharia civil para a Construtora Abrantina. Agora, como empresário individual, continuei a trabalhar com a mesma construtora. Construí, por exemplo, a grade-cercadura da então Escola Industrial de Setúbal, com um comprimento aproximado de 1.000 metros com 19.000 kgs de ferro, a grade-cercadura da Escola Industrial de Torres Novas, com 1.200 metros e 22.000 kgs de ferro, a da Escola Industrial de Tomar, com 900 metros de comprimento e 24.000 kgs de peso. Construí ainda a serralharia do mercado diário de Portalegre, que consta de grades de protecção no piso superior, uma linda esfera armilar no meio do átrio central, uma escada em caracol da entrada principal à torre superior e um bonito catavento tendo como elemento principal um galo. Construí então também uma escada em ferro num prédio fronteiro ao mercado, do rés-do-chão ao quinto andar, e numa vivenda, na avenida contígua ao mercado, uma linda grade decorativa. Em Abrantes, fiz diversa serralharia no Hotel de Turismo, grades-sacada no edifício de Manuel Lisboa, sacadas em ferro no edifício da Tranquilidade, no largo da Câmara, serralharia no Teatro de S. Pedro, incluindo o grupo de identificação "Teatro de S. Pedro". A salientar, um écran para os diversos tipos de filmes com afinação rápida e eficiente, mas manual. (Pena é que esse equipamento tenha sido retirado nas obras recentes, porque se fosse transformado para movimentos eléctricos e automáticos, poderia continuar a trabalhar eficientemente. Aquilo era um monumento!) Entre os diversos trabalhos de serralharia artística que então fiz, desde cinzeiros, bengaleiros, candeeiros de pé alto, dentro destes trabalhos, saliento o portão artístico, desenhado e construído nas minhas oficinas, que ornamenta o hall de entrada da Casa Falcão, hoje Câmara Municipal.                              

1952 Concebe e constrói o primeiro descarolador de milho com limpeza total feito em Portugal. Dois anos depois lança um descarolador motorizado em carro próprio rebocável. 

Foi no tempo em que, a titulo individual, estive na Auto-Reparadora. Eu, muito ligado a famílias de grandes proprietários da zona, verifiquei que havia necessidade de uma máquina com essas condições e construí um descarolador de milho com limpeza total, tendo dois anos depois construído novo modelo composto por descarolador, motor diesel, carrinho de transporte de tracção animal, modelo que fez furor durante muitos anos. Ainda há grupos desses em funcionamento. 

 

 

Descarolador mecanizado

              Tratava-se de um avanço muito grande. Embora já houvesse descaroladores mecânicos, não os havia com limpeza, pelo que era um avanço muito acentuado. Sobretudo o conjunto de tracção animal é que não havia mesmo. Assim, essa unidade podia-se transportar de eira em eira, facilitando a vida a muitos pequenos e até grandes proprietários.

Com esta criação abre a área agrícola na sua actividade. 

Nessa altura havia uma grande procura de mais e melhor. Não era como hoje. 

1958 Constrói e faz aprovar os reboques agrícolas MLS. De seguida constrói o primeiro reboque basculante fabricado em Portugal e inteiramente executado nas suas instalações, excepto o cilindro hidráulico que importava da Alemanha.

 Reboques fixos e basculantes. Fui dos primeiros construtores de reboques agrícolas, tendo-os vendido para todo o país, de Chaves a Sagres. Na altura, havia só um construtor, no Cartaxo. Construí o primeiro reboque basculante fabricado em Portugal, só sendo importada a báscula da Alemanha. A Ferguson, vendedora de reboques, tinha o reboque basculante, mas não se fabricava em Portugal. E eu pensei que podia fazê-los e tinha o apoio dos tais lavradores que queriam ter um serviço mais barato. Na feira de Santarém, o primeiro reboque basculante que apareceu foi o meu. Em Abrantes, virá depois o Bioucas a fazê10s também. Mais tarde, eu deixei de fabricá-los, para me dedicar só a máquinas inventadas por mim, pois essa era a única forma de não ser copiado, e de deixar para trás a concorrência.

Reboque basculante

1958 Desloca-se à Alemanha, a convite da empresa Estrada & Ca, onde faz um curso de montador. 

Foi importante porque lidei com pessoas muito trabalhadoras. Uma das coisas que mais me chocou foi no primeiro dia. Quando caminhávamos para a fábrica, um quarto de hora antes, não víamos ninguém da fábrica. E comentámos uns para os outros que, afinal, éramos os primeiros a chegar. Qual não foi o nosso espanto quando entrámos e vimos que éramos os últimos, pois já lá estavam todos e junto aos seus postos de trabalho, preparando a ferramenta para que na hora exacta entrasse a produção em pleno. Isso chocou-me profundamente. E considero-o uma lição. Porque os nossos hábitos não tinham nada daquilo. No entanto, nesse curso, demos boa conta da nossa técnica, demonstrando bem que os portugueses faziam e assimilavam bem, pois era notória a diferença no confronto com cursistas de outros países. 

1961 Sub-campeão de pesca desportiva do APA (Amadores de Pesca de Abrantes).  

1962 Campeão do APA. 

Era um clube cotadíssimo e tratava-se de campeonatos internos. Para lá disso, ganhei muitos prémios em diversos concursos em que participei.

1963 Regista a patente de invenção nº 40.492: máquina de cortar mato; inicia o seu fabrico em série, fornecendo a lavoura nacional. 


Esta máquina destinava-se a cortar o mato para encorporá-lo nas nitreiras para a produção de estrumes. Era uma máquina eficiente, mas hoje caíu em desuso por exigir alguma mão de obra. No entanto, há casos em que ainda hoje faz trabalho. Como, por exemplo, a desfazer laranjas para a produção de sumos, e desfazer pacotes de bolachas e outros que são eliminados na altura do fabrico, e nos supermercados por perda de validade, e depois são destinados a alimentação de gado. 

1964 Regista a patente de invenção nº 42.302: máquina para fender, em contínuo, chumbo esférico usado na pesca à linha - medalha de prata no 13º Salão Internacional de Inventores, de Bruxelas.   

Máquina para cortar mato

              Esta invenção aparece porque nos concursos internacionais de pesca que o APA fazia apareciam uns pescadores franceses que traziam esses chumbos, o que lhes dava vantagem em relação a nós. E eles diziam que umas senhoras nos arrabaldes de Paris, com uns alicates próprios, faziam as fendas no chumbo. E eu primeiro fiz uma pequena máquina de alavanca que fazia esse trabalho e com mais rendimento que os alicates usados pelos franceses. Mas, não satisfeito, fiz uma máquina com movimento por manivela que, sem falhar qualquer chumbo, fazia I Kg em 5 minutos. E uma mecânica linda! Às vezes olho para estas coisas e penso: como é que eu tive tempo para fazer estas coisas todas?! 

O chumbo, na maioria, era feito para os colegas, o que ainda hoje faço. Comercialmente a máquina não interessou muito, porque uma só máquina quase que inundava o país, embora ainda hoje se importe chumbo da Alemanha e da França. Esta máquina esteve presente, no 13º Salão Internacional de Inventores, de Bruxelas, onde obteve uma medalha de prata. Mandei-a através do meu agente de marcas e patentes.  

1967 Monta a empresa Usadobom, para recuperação de materiais em segunda mão.  

Começou sobretudo para a compra de materiais para a produção dos primeiros reboques. Até me desloquei aos Açores, comprando materiais do Exército americano, de gipões e GMCs. Depois de utilizado o que me era necessário, vendia o restante ao Exército português. Dessa actividade sobressai a recuperação de alumínio e cobre a partir de cabos eléctricos. 

Tarara de limpeza de cereais

        1972 Regista a patente de invenção nº 56.089: aperfeiçoamentos em máquina para limpeza de cereais, leguminosas e outros produtos - que se expande sobretudo para o Baixo Mondego e Alentejo, mas também Angola, durante algum tempo comercializada pela MDF (Metalúrgica Duarte Ferreira). Esta invenção é galardoada com a medalha de prata no 21º Salão Internacional de Inventores, de Bruxelas, em 1972; anteriormente premiada na Feira Internacional de Lisboa em 1971 e na Feira Nacional de Agricultura, Santarém, 1980 (prémio para o melhor invento ou inovação em máquinas agrícolas). 

        São as conhecidas tararas para limpeza. Fazia-se sentir essa necessidade, porque a limpeza de cereais era feita por máquinas rudimentares, ou manualmente, e eu sentia a necessidade de uma máquina que fizesse um bom trabalho e desse grande rendimento. Isto, mais uma vez, porque, pelo contacto que eu tinha com a lavoura, sentia os problemas. 

Surge assim uma máquina que, além do rendimento, tem sistemas que ainda hoje não estão ultrapassados, e muito difícil virem a sê-lo. 

Fiz a máquina e desenvolvi-a industrialmente. Tenho máquinas a trabalhar de norte a sul do país, e algumas em Moçambique e Angola. Era comercializada em exclusivo pela MDF que tinha um contrato comigo de vender 32 máquinas por ano. Duma vez só mandou 20 para Angola. Saíam da minha oficina já pintadas com o logotipo e as cores da MDF, com tintas fornecidas por eles. 

Esse contrato interessava-me grandemente visto a MDF ter um departamento comercial a que eu não me podia comparar. 

A partir do 25 Abril, esse contrato foi rescindido porque estariam convencidos que iriam fazer melhor, o que não sucedeu. E eu continuei a vender. 

Esta máquina foi exposta na FIL, no 7º Salão de Inventores, onde obteve um 40 prémio, tendo depois sido exposta em Bruxelas, em 1972, no 21º Salão Internacional de Inventores, onde obteve uma medalha de prata. 

Aquando da exposição na FIL, gerou-se ali um movimento para o aparecimento de uma associação de inventores e só não consto como sócio fundador porque estava longe de Lisboa e tinha mais que fazer, pois participei nas primeiras reuniões. Sou o sócio nº 19 da hoje Associação Portuguesa de Criatividade.    

1974 Dá-se 0 25 de Abril. Veio provocar alterações na sua actividade? 

O 25 de Abril veio alterar as coisas, porque houve um interregno sobretudo da actividade agrícola e eu fui um pouco atingido por essa situação. A instabilidade que aconteceu na agricultura, por exemplo com as ocupações, trouxe consequências para a minha actividade, sobretudo por uma baixa de encomendas. Além disso, 0 25 de Abril foi acompanhado de uma brusca subida de salários e outras responsabilidades da empresa, com a agravante da cessação do contrato com a Metalúrgica Duarte Ferreira, do Tramagal. Mas eu consegui contornar essa situação com um bom entendimento com os meus empregados, por forma a que todos pudéssemos fazer face à vida mediante uma distribuição dos rendimentos de forma equitativa. Mais tarde, com uma já quase estabilização, tivemos um novo entendimento de forma a que eles pudessem receber o diferencial a que tinham direito, tendo nós chegado a um acordo completo e total. Assim consegui superar a situação sem nunca ter faltado às minhas responsabilidades, como os descontos para a Previdência e outros. Contudo, a actividade nunca voltou a atingir a plenitude anterior. Valeu-me uma diminuição de empregados, mas devida a reformas e inclusivé mortes, infelizmente. Nunca, até hoje, eu despedi qualquer empregado. Agora já só me restam quatro, mas cheguei a ter 32 empregados. Mesmo assim, graças aos processos e sistemas de produção, que têm uma grande dose de criatividade, ainda fabricamos muitas máquinas.   

Houve problemas por uma crise na agricultura. E quanto à indústria? 

Não senti problemas, antes pelo contrário, senti estímulo, porque me vi na obrigação de, através da minha criatividade, desenvolver projectos que vieram vencer a situação de crise.  

1975 Convidado pelo Ministério da Agricultura, faz uma viagem de estudo a França, com o Eng. Fausto Briosa. 

Um membro do Governo convidou o o Professor Eng. Fausto Briosa e este sentiu que eu fazia falta nessa deslocação. Eramos quatro: Eng. Fausto Briosa, dois engenheiros agrónomos, Gaspar de Castro Pacheco e José Coelho Lança; e eu. 

Foi uma viagem de estudo a França para nos inteirarmos do desenvolvimento desse país na cultura do milho, tendo sido muito bem programada pelo Eng. Fausto Briosa com diversas visitas a propriedades, a fábricas de máquinas agrícolas, fábricas de selecção de sementes, cooperativas agrícolas, etc. Foi de muita utilidade, colhemos muitos ensinamentos que aumentaram os meus conhecimentos e houve algumas passagens que me chocaram profundamente. Por exemplo, a certa altura, junto de uma lavoura que estava a ser desenvolvida por um tractorista, vimos o alinhamento e 0 comprimento dos regos desenvolvidos pela tractor. Quando este chegou junto a nós, o Eng. Fausto Briosa pediu ao tractorista que lhe desse alguns esclarecimentos, ao que ele respondeu muito simpaticamente ser impossível naquele momento, visto estar a desenvolver o seu trabalho, mas de imediato nos convidou dando-nos a sua direcção para, depois da hora do trabalho, nos poder apresentar o que nos interessasse. Isto impressionou-me porque o homem acima de tudo tinha o seu trabalho. 

Noutra vez, numa pequena cooperativa em que nada faltava, desde rede para capoeira às botas de borracha e tesouras de podar, havia um só empregado, que fazia a escrita e tratava de toda a parte comercial. No momento em que conversávamos com esse senhor, entrou um cooperante pedindo uns quantos metros de rede. O senhor pediu-nos desculpa por momentos e, com espanto, vimos que tirou a rede, mediu-a, cortou-a e entregou-a ao cliente. Nessa altura, no nosso país, só queríamos trabalhar nas nossas especialidades, não era permitida a polivalência. Aquele homem era escriturário, era vendedor... era tudo, ali dentro. Num país como a França, tão avançado, havia uma diferença tão grande na maneira de ver as coisas... 

Com toda a experiência ali recolhida, virei mais tarde a desenvolver um descamizadordescarolador. Esta viagem de estudo será sempre por mim lembrada, pois decorreu no mais são entendimento e camaradagem.  

1978 Faz a primeira sessão sobre criatividade numa escola. 

Foi em 14 de Fevereiro de 1978, com o professor Carlos Madeira, na Escola Preparatória de Abrantes. Fizemos uma palestra e voltei mais duas vezes à mesma escola para apreciar trabalhos desenvolvidos pelos alunos após a dita sessão. Depois desta, fiz muitas mais.  

1978 Regista a patente de invenção nº 65.838 (espanhola nº 464082 e italiana nº 2935A77): máquina para limpeza de azeitona («o sistema mais simples e eficiente do mundo para aquela operação» MLS). A pedido dos técnicos da Estação de Olivicultura de Elvas, desenvolveu um novo modelo para trabalho no campo - Medalha de ouro no Salão Internacional de Invenção e Técnicas Novas, de Genebra (1977); prémio na Feira Internacional de Agricultura, de Santarém (1979). 

Nesta altura tinham entrado em Portugal os primeiros vibradores de colheita de azeitona, de origem americana. Por isso, fez-se logo sentir a necessidade de máquinas de rendimento para limpeza de azeitona. O primeiro utilizador de vibrador, em Portugal, foi o Eng. Franco Falcão, de Monforte, que se dirigiu a mim dando-me carta branca não olhando a custos para que eu lhe realizasse uma máquina para limpeza de azeitona. Estudei em profundidade, tendo sempre em mira o rendimento e a simplicidade, o que consegui. Foi nesta máquina que os técnicos da Estação de Olivicultura fizeram os primeiros ensaios. Depois foi-me pedida pela Estação de Olivicultura um novo modelo, dentro do mesmo princípio, mas para ser utilizado nos olivais acoplado a um tractor, o que foi conseguido, tendo a Estação por diversas vezes nos seus relatórios mencionado e louvado a referida máquina. 

Estas máquinas estão implantadas no país desde o Algarve ao Minho. 

Para dar uma ideia da sua simplicidade, basta referir que com 2 cavalos de força e 125 Kgs de peso, um dos modelos limpa 4.000 Kgs por hora nas melhores condições. E não sou só eu a dizê-lo, é evidente. 

Estas máquinas foram patenteadas em Portugal, Espanha e Itália. Mas a sua produção era toda nas minhas oficinas, e só para Portugal. Os outros países têm também as suas máquinas, mas obterem o mesmo rendimento precisam de mais potência e três a quatro vezes mais peso, além de uma mecânica mais complicada Até hoje, o meu sistema ainda não foi ultrapassado e não tão depressa, por causa da sua simplicidade. A ambição máxima do inventor é atingir o em que outrem não o ultrapasse. Além de que esta máquina está a ser utilizada na limpeza de avelãs e amêndoas, quando colhidas por vibradores. 

A máquina foi presente na Exposição em Genebra de 1977. O júri ficou impressionado com a sua simplicidade e rendimento e foi essa a razão da atribuição da medalha de ouro da secção em que concorreu. Ganhou também como prémio, instituído pelo BPA, um lindo troféu para a melhor invenção presente na Feira da Agricultura de Santarém, em 1979.  

Continua a produzi-las? 

Sim, continuo a produzi-las, embora estejamos a viver outra crise, ainda pior do que a do 25 de Abril. Por exemplo, neste ano [2002-03], não deixaram laborar cerca de 70 % dos lagares, por não terem as condições exigidas pelas normas europeias. Para se ver, dou só um exemplo: o concelho de Grândola tinha 7 lagares e nenhum trabalhou, porque não tinham as condições que estavam a ser exigidas. Isto e a azeitona que ficou por apanhar eliminaram parte dos potenciais compradores. Apesar de tudo, vai-se vendendo, mas já não é nada do que era.  

1978 Apresenta os seus inventos na televisão, na RTP, no programa Criar para competir - Competir para sobreviver. 

Foi a convite da Associação Portuguesa de Criatividade. Vieram aqui fazer as filmagens e estive, se não me engano, cerca de 20 minutos no ar. O programa deu uma certa celeuma e talvez me tivesse guindado um pouco, sobretudo na minha própria terra, que seguiu com atenção a emissão. E de louvar os jornais da terra, que antes publicitaram o evento e depois referiram-se a ele com artigos elogiosos.  

1979 Concebe e constrói novo modelo de descamizador-descarolador de milho e girassol (descamiza, descarola, limpa e ensaca e ainda separa a camisa do carolo), com aplicação aos três pontos do hidráulico do tractor - Prémio na Feira Nacional de Agricultura de Santarém (1982) e Prémio Nacional na Filagro, em Lisboa (1982). 

Senti a necessidade de uma máquina que descamize e descarole. Dados os conhecimentos que já tinha das máquinas normais de descarolar o milho e ainda com os conhecimentos adquiridos em França, concebi e fabriquei esta máquina que atinge uma alta performance, vendida de norte a sul do país. E um Rolls Royce dos descamizadores. Porque o sistema, em especial o de descamizar, é de requinte mecânico, além do sistema vibratório dos crivos. Essa máquina ainda se vende, mas em Portugal já são usadas máquinas de colheita mecânica. Por isso, o mercado em vista será o de Angola, Moçambique e talvez Guiné. Tenho já duas unidades em Angola e espero vir a concretizar mais encomendas. Trata-se de um mercado de transição, em que os naturais precisam mais de utilizar a sua mão de obra. Neste momento, é a máquina ideal para os povos em desenvolvimento. Obteve o prémio B.P.A. para a melhor invenção exposta em 1982 na Feira da Nacional da Agricultura, em Santarém, e ainda o prémio BPA para a melhor invenção na Filagro, em Lisboa, tendo-me este prémio sido entregue no Penta Hotel, numa bonita cerimónia presidida pelo então Ministro da Agricultura, Basílio Horta, na presença de 150 jornalistas da imprensa regional.  

1982 Regista a patente de invenção nº 75907 (francesa nº 831904) para aparelho respiratório de protecção para aplicação nasal - medalha de ouro no Salão Mundial de Invenção, Pesquisa e Inovação Industrial, de Bruxelas. É-lhe ainda atribuída a medalha de honra da cidade de Bruxelas. (Na sequência: entrevista na RR e presença na televisão, programa Novos Horizontes). 

Dado o meu contacto com máquinas de limpeza de cereais e tendo por princípio procurar o mais pequeno pormenor das mesmas, quando estas se encontravam em movimento o pó que desenvolviam eu sentia que me prejudicava as vias respiratórias. Então lembrei-me de conceber um filtro para a minha protecção e daí nasceu o dito aparelho respiratório de protecção, que tem a vantagem de deixar a boca livre, garantindo uma vedação perfeita entre aparelho e nariz. Este aparelho esteve presente na Exposição de Bruxelas, sendo-lhe atribuída a medalha de ouro por um júri muito exigente e competente, de que faziam parte professores catedráticos e outros. E dos meus poucos inventos que não está desenvolvido, por ser uma peça que não posso trabalhar na minha oficina por não coincidir com a minha especialidade. Mas foi muito fotografada e filmada, em Bruxelas, à socapa, porque não é permitido, por países da Asia, especialmente por Taiwan. Mas se Deus me der vida e saúde, espero ainda voltar a esta peça, porque vejo o que se está a passar na guerra do Iraque e eu, a partir dali, queria ir mais além. Mas o vagar é que não chega para tudo. E quando se tem que trabalhar para arranjar meios para se poder investigar... está tudo dito. 

Na sequência desta distinção, dou uma entrevista na Rádio Renascença e também estive no programa televisivo Novos Horizontes. Esta medalha de ouro, em conjunto com mais duas de prata ganhas anteriormente, dão-me o direito à Medalha de Honra da cidade de Bruxelas, a qual me foi entregue pelo seu maire numa cerimónia espectacular, no salão nobre, na presença de 120 inventores de todo o mundo, acontecimento de que guardo gratas recordações. 

1983 Menção Honrosa da Santa Casa da Misericórdia de Abrantes «por serviços relevantes e benemerentes» (aprovada em 21.6.1983). 

Foi-me entregue numa cerimónia no Teatro de S. Pedro, em que foram homenageadas diversas personalidades de Abrantes, entre elas o Sr. Apolinário Marçal, D. Maria Albuquerque e outros. Nesse tempo, o provedor, Fernando Martins Velez, como até àquela data não se fazia praticamente nada em Abrantes para homenagear, digamos assim, as personalidades que tivessem merecimento, tomou esta iniciativa. Eu sou irmão e já tenho colaborado com a Misericórdia, mas penso que esta "menção honrosa" teve mais a ver com o trabalho que tenho desenvolvido, nomeadamente com o prémio que tinha alcançado em Bruxelas.