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Joaquim Gomes dos Santos

Após completar a Primária na escola do Pego no ano de 1961 e depois de feitos os Exames de Admissão aos Liceus e à Escola Industrial de Abrantes, respetivamente em Santarém e em Abrantes, os meus pais decidiram em boa hora que eu continuasse os meus estudos colocando- -me no denominado Externato D. Nuno, vulgarmente conhecido pelo Colégio do Rossio. Funcionava no prédio onde está instalado o Posto Médico de Rossio ao Sul do Tejo, sem grandes comodidades, mas com alguma dignidade.

Um prédio de quatro andares com uma cave ampla que funcionava como sala de alunos de um lado e sala de arrumos do outro dando ambas para um pátio amplo, a rondar os 500 metros quadrados e que era utilizado para recreio dos alunos nos intervalos entre aulas principalmente no verão, um rés do chão ligeiramente elevado a que se tinha acesso através de uma pequena escada onde funcionava a secretaria,  dois andares onde funcionavam as aulas e um terceiro onde habitava o primeiro Diretor do colégio.

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Já não me recordo bem mas penso que nessa época o Corpo Docente era constituído por um pouco mais de meia dúzia de professores polivalentes que lecionavam mais que uma disciplina e as turmas - do Io ao 5o ano - penso que existia uma por cada ano com não mais de 18 a 20 alunos ou talvez menos mas sempre com turmas mistas, uma inovação naqueles tempos. Penso que em determinada altura também funcionou com o Ensino Primário.

Dos professores lembro-me de alguns: do primeiro Diretor do Colégio o capitão António Torgal que lecionava Matemática, Geografia e Desenho; do Dr. João de Oliveira, o Diretor na fase final do Colégio, que ensinava Ciências Naturais e Físico-química; do Dr. Oliveira Martins que ensinava Matemática; do Padre José de Oliveira que lecionava Português e Religião Moral; do Dr. Estrela e do Dr. Rasquilho de Barros que em tempos diferentes ensinaram História; do Dr. Manuel Vitória que lecionava Francês e da D. Otília, esposa do capitão Torgal, que ensinava Desenho. As disciplinas que eram objeto dos nossos estudos e em que éramos avaliados na época, no Io e 2o ano, eram as seguintes: Língua e História Pátria, Francês, Ciências Geográfico-Naturais, Matemática e Desenho.

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Penso que ainda tínhamos mais duas: Religião e Moral e Educação Física, mas não havia avaliação. Nos 3º, 4º e 5º anos tínhamos nove disciplinas que eram objeto de avaliação: Português, Francês, Inglês, História, Geografia, Ciências Naturais, Ciências Físico-químicas, Matemática e Desenho, continuando a Religião e Moral e a Educação Física sem avaliação.

O exame de Admissão ao Liceu e os exames finais do 2º ano (1º ciclo dos Liceus) e do 5º ano (2º ciclo dos Liceus) eram feitos no Liceu de Santarém.

Lembro-me que para o Exame de Admissão fui de comboio e acompanhado da minha mãe e ficámos, nos arredores de Santarém, numa casa de um familiar do padre Rosa, padre do Pego na altura. No exame do 2º ano, os alunos do Pego, iam de comboio e creio que acompanhados por um adulto e ficávamos numa pensão em Santarém e penso que no 5o ano o grupo do Pego já ia sem supervisão e ficámos também em pensões da cidade.

Todos os anos tínhamos de estar inscritos na chamada Mocidade Portuguesa e frequentar as suas atividades para as quais pagávamos anualmente a quantia de trinta escudos.

O colégio fazia parte dessa estrutura, mas verdade seja dita, na prática raramente o colégio participava em atividades relacionadas com a Mocidade Portuguesa. Digo isto porque não me lembro de nenhum de nós participar em qualquer tipo de atividades relacionadas com a organização a não ser uma vez, que passo a contar.

Já não me lembro o ano, mas um dia estávamos numa aula de História com o Dr. Estrela que era, pelo menos a nível concelhio, um membro importante do regime vigente na altura. E a propósito de um acontecimento qualquer ligado à Mocidade Portuguesa que ia ter lugar em Abrantes, mais concretamente na chamada Escola Industrial, o professor depois de informar a turma do que se iria passar alguns dias mais tarde em Abrantes apontou para mim e diz-me que eu teria de preparar um texto para nesse dia fazer um discurso para os participantes e altas individualidades presentes nessa cerimónia.

Já não me lembro bem, mas sei que na altura arranjei uma desculpa qualquer para não ser o escolhido, mas o Dr. Estrela insistiu que tinha de ser eu e pronto!

Nos dias seguintes quando comecei a pensar a fundo na questão e depois de várias tentativas para fazer o texto pretendido cheguei à conclusão de que não me saía nada de jeito. E disse-o na altura a um amigo meu do Rossio, numa conversa sobre o assunto, também aluno da turma. Então esse amigo e colega de escola disse-me para não me preocupar pois tinha um familiar, creio que um tio, que me escrevia o texto para eu ler na referida cerimónia. Eu aceitei logo de imediato, claro. Depois correu tudo bem! No dia da cerimónia, entre os vários discursos eu li o “meu” e os participantes bateram muitas palmas.

As deslocações diárias, de manhã para o colégio e de tarde do Rossio para o Pego eram feitas a pé e em grupos conforme as amizades da altura, sempre com o saco do almoço numa mão e a pasta dos livros na outra. 0 saco do almoço era fundamental porque o colégio nunca teve refeitório. Então quando chegava a hora do almoço os alunos que não tinham possibilidades de ir a casa, como era o meu caso, puxavam do saco o tacho com a comida e o fogão para a aquecer. 0 que chamava de fogão resumia-se a um tripé de lata desdobrável onde colocava o tacho com uma lamparina por baixo que funcionava a álcool. Para almoçar utilizávamos umas instalações na cave do edifício que funcionava como sala de alunos e que tinha umas pequenas mesas para além de duas mesas de ping-pong onde praticávamos o ténis de mesa nos tempos livres.

As deslocações de manhã para o colégio eram feitas rapidamente já que tínhamos um horário de entrada a cumprir. Agora o regresso a casa, sempre a pé, por vezes demorava horas nas mais diversas brincadeiras.

Lembro-me que por vezes roubávamos giz dos quadros das salas de aula e entretínhamo-nos a escrever na estrada nacional pequenas frases para o grupo das raparigas que vinham mais atrás, por saírem mais tarde ou outro motivo qualquer. Fomos os percussores do SMS!

Utilizávamos a estrada como nosso domínio porque o trânsito na altura era muito pouco! Para além das poucas camionetas de carreira, como eram designadas na altura, apenas não mais de meia dúzia de carros dos chamados ricos do Pego e de proprietários de Abrantes que tinham terrenos para estes lados. 0 resto resumia-se um carro de bois e a uma ou duas carroças que passavam de vez em quando. O meio de transporte mais utilizado, na altura, era sem dúvida a bicicleta.

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Por vezes quando o grupo era pequeno.de apenas dois ou três, pedíamos boleia a estes proprietários que passavam. Uns nem paravam! Outros paravam cinquenta ou cem metros mais à frente. Nós todos contentes corríamos para o carro. Assim que chegávamos perto do carro este avançava mais uns metros e depois parava. Corríamos novamente e quando o alcançamos ele volta a arrancar agora definitivamente. Alguns ainda estão vivos no Pego e o grupo conhece-os todos! Nesta altura haviam duas tascas em Coalhos, ao longo da Estrada Nacional, a do ti Fernando Parreira e a do ti Coberta. Em algumas vezes nestas caminhadas de regresso a casa e nos dias de maior calor abastecíamos logo na primeira, que era a do ti Coberta. Pedíamos que ele fizesse uma mistura de ginja com gasosa num recipiente onde colocava gelo. Mas não bebíamos no local, até porque era proibido. Levávamos a bebida para debaixo duns eucaliptos que ainda hoje lá estão, a seguir à ponte de Coalhos e defronte da sucata. Aproveitámos a folhagem baixa dos eucaliptos novos para nos escondermos e bebermos todos em conjunto. Alguns mais atrevidos aproveitavam para fumar uns cigarritos. No meu último ano de Colégio, de vez em quando, levávamos as bicicletas dos nossos pais para a escola. Os que tinham!

Num desses dias alguém informou, já na sala de aula, que um nosso colega do grupo tinha partido um braço. O Zé Bento, soubemos depois à tarde no Pego, dado que não tinha bicicleta, resolveu vir de patins para o Colégio. Ao começar a fazer a descida do Pego caiu e partiu um braço. Isto foi notícia de jornal nacional na época. Digo isto porque o Zé uns anos mais tarde mostrou-me um pequeno recorte do Jornal O Século que tinha guardado e onde vinha a notícia do acidente. Sobre o meu dia a dia de estudante no colégio tenho boas e más recordações. Das boas, recordo as amizades que fiz e que perduram para toda a vida e das coisas simples que se fazem nas escolas que por vezes nos marcam para a vida. Refiro-me a uma altura no colégio em que aconteceu uma sessão de poesia proporcionada pela direção do colégio. Todos os alunos reunidos numa sala e de pé assistiram a uma bela sessão proporcionada por um declamador, creio que brasileiro, que me impressionou e me fez gostar imenso de ouvir declamar poesia. Por vezes ainda passo algum do meu tempo a ouvir João Villaret, Mário Viegas e outros. Gosto muito!

Das boas ainda recordo as brincadeiras nos dias em que havia cheias no rio Tejo. Uma das zonas do Rossio que primeiro ficava alagada era toda a zona entre o colégio e o Rio Torto. Nessa altura de cheias aproveitávamos os tempos livres para as brincadeiras na água pilotando as chamadas jangadas, que eram os molhes de canas que os proprietários tinham nos terrenos para posteriormente colocarem a embarrar as parreiras das vinhas da zona. Com a enchente alguns molhes de canas vinham ter junto ao colégio e depois era uma alegria. Colocávamo-nos em cima do molhe de canas e de pé, com o auxílio de uma cana mais resistente, conduzíamos a jangada a nosso belo prazer. Por vezes havia pequenos acidentes! O molhe de canas por vezes virava e então era ver o condutor da jangada na água com água pela cintura e os outros a rir do estado em que ficava.

E da ida à mina!

A mina estava situada na encosta do chamado cabeço do Caneiro, mais ou menos a meia encosta. E penso que ainda lá está. Era um buraco feito na horizontal com cerca de talvez uma dúzia de metros de comprimento e feito não sei com que objetivo. O buraco era bastante estreito. Lembro-me que numa certa zona só se podia fazer a rastejar e a parte mais larga, creio que no fundo, dava para fazer de cócoras.

Dado que a distância do Colégio até à mina ainda é considerável nós só costumávamos lá ir quando tínhamos algumas horas livres. Nem todos tinham coragem para ir até ao fundo. Para fazer parte do grupo era conveniente que o novato tivesse que passar por essa prova.

E da casa fantasma!

Era um velho casarão desabitado que ficava logo a seguir ao Colégio na primeira curva para a esquerda na estrada para Tramagal. Nós brincávamos pela zona e nunca víamos ninguém na propriedade. Começou a constar entre nós que aquilo era uma casa fantasma e que estava assombrada. Um dia fomos brincar para Lá. Não sei como começou! Sei a apenas que o telhado da habitação acabou numa grande parte destruído em consequência das pedradas que mandámos ao telhado do edifício. Passado uns dias e para evitar consequências maiores o proprietário de edifício exigiu e tivemos de pagar, naquela altura, cem escudos cada um que andou lá e lembro-me que éramos bastantes.

Das más. Bem! Recordo-me de muitas situações que nunca mais esqueci e jamais esquecerei! É preciso dizer que eu sempre fui, nesta fase, um aluno normal que gostava de brincar, preguiçoso também e que sob pressão na sala de aula em resultado dos métodos repressivos utilizados, comecei no 4º ano a ganhar uma certa aversão à disciplina de Francês. Só esta, porque nas outras nunca tive problemas de maior.

Com treze anos nesta altura, as aulas de Francês eram, para mim e para a grande maioria da turma, um autêntico terror. Ainda hoje recordo muitas situações que vivi na aula com o professor Victória.

Toque de entrada. Chamada para marcação de faltas de presença. Depois, bem! Depois começava o espetáculo que acabava sempre em agressões violentas aos alunos chamados ao quadro. Eu pertencia ao grupo a quem o professor mais batia naquela altura. Lembro-me muitas vezes de o ouvir no início da aula dizer para mim e para quem queria chamar ao quadro: roge! coge! page! mage! salta para o quadro que comes já! E comíamos!

Recordo-me de um dia, no quadro, ele me bater porque me mandou escrever uma palavra, já não me lembro qual. Sei apenas que começava pela Letra A. Escrevi a palavra, mas ele bateu-me imediatamente dizendo que estava mal escrita. Comecei a entrar em pânico porque não encontrava o erro e só depois de levar mais umas bofetadas é que me mandou colocar um tracinho inclinado a segurar a Letra do Lado esquerdo. São coisas que nunca mais esquecemos! Um dia escondemos-lhe a régua grande utilizada na disciplina de Desenho, com que ele nos batia, em dois pregos muito por cima do quadro. Nesse dia chamou-me a mim e ao António Bento ao quadro. A determinada altura começa à procura da régua para nos bater e nós em pânico junto ao quadro. Andou assim algum tempo até que a viu lá em cima! Obrigou-me a trepar para as costas do Bento para tirar a régua e depois, bem! Levámos os dois com ela! Uma tareia que nunca mais esqueci!

Eu e o Bento éramos dos alunos que mais sofriam às mãos do professor Victória. Tanto que eu e o Bento resolvemos, a determinada altura do ano, faltar às aulas de Francês. Ao que cheguei! Eu, que nunca faltava a uma aula! Passado algum tempo nesta situação o Bento deixou de faltar porque passámos a ter Ciências Naturais a seguir a Francês e o professor era o seu tio Oliveira. Mas eu continuei por muito mais tempo! Só lá ia uma vez por semana, à sexta-feira. Passo a explicar! O professor tinha por hábito, semanalmente, como trabalho de casa, mandar fazer neste dia um teste de Francês à turma. Como na altura não havia fotocopiadora a aula de sexta-feira era para copiarmos do quadro o teste que um aluno ia escrevendo no mesmo. Dado que isto era um trabalho que consumia todo o tempo da aula, estas eram as únicas aulas semanais calmas e onde não havia tareia. 0 pior era na segunda-feira quando era feita a correção do teste no quadro! Havia sempre tareia da grossa! Mas isso a mim já não me importava porque não era ele que me apanhava lá.

Recordo-me ainda, na altura com 13 anos de várias cenas na sala de aula de Francês. Lembro- -me perfeitamente duma sessão de pancadaria que meteu vários alunos, entre eles eu, claro! Nesse ano fazia parte da turma um aluno que na altura era muito mais velho que nós, já matulão, tinha talvez uns 16 ou 17 anos e que infelizmente já não está entre nós. Era o Fernando Macieira. Penso que não devia estar a gostar de ver todas aquelas tristes cenas porque a determinada altura levantou-se enervado de uma das carteiras lá do fundo da sala e disse para o professor Manuel Victória: mas o que chega o ser isto! Você bate-lhes porque são cachopos! Verse me consegue bater a mim! Resultado. O professor foi lá abaixo e o Macieira levou também uma grande sova. Foi uma cena tal que alguns de nós, alunos daquela turma ainda hoje recordamos nas nossas conversas sobre o Colégio.

São situações que vivemos na altura e que eu nunca mais esqueci ao longo da minha vida! Nunca mais tive contacto com o professor Manuel Victória apesar de mais tarde sermos colegas de profissão porque quando o via fazia tudo para o evitar.

Queria ainda referir que comecei a lecionar Matemática em 1976 num colégio, o Externato Santa Bárbara em Tancos. Nos primeiros tempos, por vezes tinha muitas dúvidas sobre a maneira de atuar na sala de aula. Sobre o modo de colocar os alunos à vontade e recetivos a uma boa aprendizagem. Mas todas as minhas vivências como aluno naqueles tempos foram-me muito úteis como professor. Fiz sempre, em sala de aula, o oposto do que o meu professor de Francês fazia. E com bons resultados!

IN: SANTOS, Joaquim Gomes dos – Colégio do Rossio - memórias da educação em Abrantes. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 15. Nº 30 (2017), p. 40-47