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João Rodrigues - Ferrador, Tosquiador e Amigo dos Animais

O senhor João Rodrigues tem oitenta e seis anos, é natural da Barrada, concelho de Abrantes e nesta povoação tem vivido toda a sua vida e ainda hoje reside.

Durante mais de sessenta anos (dos dezoito aos oitenta e tal...) aqui se ocupou na profissão dura de ferrador, primeiro com o pai, com quem aprendeu os segredos deste ofício e depois sozinho, até que as forças lho permitiram.

Por baixo da casa onde habita, ainda podemos ver a sua oficina, com todos as ferramentas e instrumentos necessários, companheiros de longos anos, que com ele partilharam as horas boas e más da existência e que conserva bem limpos e arrumados, tratados com o carinho que se dedica a velhos amigos, que na realidade são.

Foi longa a vida desta oficina, já que o seu pai, Alexandre Rodrigues Silvério, começou aqui a trabalhar por volta de 1917 e, sempre em atividade, atravessou todo o século XX. Foi útil a muitos, deu vida e movimento a esta pequena povoação e só encerrou as suas portas quando os oitenta e tal anos começaram a pesar demasiado nos ombros já frágeis do senhor João Rodrigues.

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A oficina abria os olhos para o dia muito cedo. Às vezes, por volta das quatro ou cinco da madrugada, já pai e filho estavam a trabalhar, pois o ambiente da forja aquecia bastante e era necessário aproveitar o fresco da noite. Antes da eletricidade chegar à Barrada, era à luz da candeia que trabalhavam, executando em média dez a doze ferraduras por hora. As barras de ferro, necessárias à sua confeção, eram compradas no Rossio ao Sul do Tejo, no armazém de João Lopes Alho e noutros estabelecimentos. Traziam-nas numa carroça puxada por animais, bem como o carvão de pedra necessário ao forno onde o ferro, depois, seria aquecido. O carvão de sobreiro ou pinheiro, o mais abundante na zona, não era adequado pois, ardendo sem necessidade de ser ateado com o fole, não desenvolvia as altas temperaturas necessárias a esta operação. Carvão vegetal bom só o das cepas das urzes, que, embora desse bastante trabalho a fazer, saía mais barato. Quando tinham algum tempo disponível, lá iam para o campo, na sua carroça, em demanda das cepas. Desenterravam-nas, transportavam-nas e transformavam-nas em carvão, pelo processo tradicional.

No forno, faziam as brasas, que tinham que ser bem sopradas com o fole e quando estas estavam incandescentes, colocavam-lhes em cima o ferro até este ficar vermelho como elas e, portanto, maleável e pronto a ser moldado. Era então retirado com uma tenaz e colocado sobre a bigorna onde era batido, de preferência por duas pessoas (e mesmo assim era um trabalho muito pesado), batendo uma com o martelo e outra com o marrão. O ritmo tinha que ser certo e rápido, pois, de contrário, o ferro arrefecia e endurecia, necessitando de voltar novamente ao forno, o que atrasava o trabalho. Depois de bem batido, moldava-se e dava-se-lhe o jeito de ferradura, que era diferente consoante o animal a que se destinava: a maior era a do cavalo, a média do muar e a mais pequena do burro. Com o ferro ainda quente, era necessário fazer a craveira, constituída por seis furos, onde seriam introduzidos os cravos que iriam segurar a ferradura ao casco do animal. Os bovinos usavam um “calçado” diferente a que se dava o nome de canelos.

As ferramentas utilizadas, em contacto com o ferro em brasa, tomavam-se também escaldantes, pelo que era necessário mergulhá-las, com frequência, na água fria de um pequeno tanque, situado debaixo do fole.

O ato de bater o ferro, juntamente com as altas temperaturas que se faziam sentir na oficina, tomavam este trabalho muito difícil, pelo que, nos últimos anos, já com menos forças, o senhor João optou por ir comprá-las a Cardigos, no concelho de Mação.

Uma vez confecionadas as ferraduras, era necessário aplicá-las nas patas dos animais, tarefa que também não era nada fácil. Os bovinos, geralmente os mais bravos, eram introduzidos dentro de uma armação de madeira denominada tronco. Este aparelho tomou-se tão famoso na Barrada, que deu o nome ao local onde o senhor João reside - Travessa do Tronco. A cabeça ficava de fora e os animais mais difíceis eram ainda seguros com uma tira de esparto, chamada cilha. Em cada pata eram colocados dois canelos, pelo que colocar os dezasseis necessários a numa junta de bois, não demorava menos de duas horas.

Aos cavalos, muares e burros bastava prendê-los a uma argola de ferro colocada na parede. Como os cavalos eram os mais corpulentos, o trabalho de os ferrar tinha dificuldades acrescidas. Era necessária muita força para os segurar, além de que o ferrador se arriscava a levar um valente coice.

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Quaisquer que fossem os animais, os donos estavam sempre presentes, para que se sentissem mais seguros e ficassem mais calmos.

Mas não era só na oficina que se procedia a esta operação. O senhor João Rodrigues era solicitado, com frequência, para fazer o seu trabalho nas propriedades das redondezas, nem sempre muito próximas. Então lá ia, primeiro na sua mula, depois de mota, até às povoações e montes onde os seus serviços eram requisitados. Percorria quase toda a zona sul do concelho de Abrantes, sobretudo as freguesias de S. Facundo e Alvega e também parte do concelho de Gavião.

Mas não se pense que o animal ficava “calçado” durante muito tempo. Quando o chão era duro e pedregoso, as ferraduras ou os canelos aguentavam apenas sessenta dias; em piso mais macio, lá iam até aos quatro meses, sendo depois necessário proceder à sua substituição. O senhor João chegou a ser responsável por oitenta e duas juntas de bois, fora o trabalho que, entretanto, desenvolvia com outros animais.

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Trabalhava-se muito em certas alturas e, como os tempos eram difíceis, os donos dos animais só nas épocas das colheitas, depois de venderem os frutos da terra, lhe podiam pagar e, mesmo assim, muitas vezes a remuneração não podia ser feita apenas em dinheiro, sendo complementada com géneros: feijão, azeite, queijos, etc. Nos primeiros anos, levava um escudo por ferrar um bovino e dois escudos e cinquenta centavos por um cavalo. O dinheiro foi desvalorizando e, no final, levava oito mil escudos por ferrar um cavalo, sete mil um muar e seis mil um bovino

Além de ferrador, o senhor João Rodrigues também tosquiava os animais, o que acontecia no início da Primavera, quando o tempo começava a aquecer. Cavalos, muares e burros eram tosquiados com uma máquina própria para o efeito. Esta atividade necessitava, igualmente, de bastante perícia, pois, na altura, era hábito cortar, com uma tesoura adequada, o pêlo dos animais, em certas zonas da cauda ou da anca, de modo a formar as iniciais do nome dos respetivos donos. Esta marca era importante, pois se o animal se perdesse ou fosse roubado, era assim mais fácil de identificar e de recuperar.

Amigo dos animais e seu conhecedor profundo (lá dizia Saint Exupéry “só se ama aquilo que se conhece”), o senhor João sabia-os tratar quando doentes e, numa época em que havia poucos veterinários, era chamado, com frequência, para ajudar nos partos mais difíceis, sobretudo de vacas e ovelhas.

Hoje, com os seus bonitos oitenta e seis anos, o senhor João Rodrigues tem no rosto estampada a serenidade de quem, embora trabalhando arduamente, passou pela vida e nela se realizou. Amou e dignificou o seu trabalho, foi útil à sociedade onde estava inserido e onde as dificuldades faziam, então, parte do quotidiano de quase todos, mas que também ajudavam a tomar mais saboroso o pão que se comia, ganho (aqui em sentido bem real) com o suor do rosto. Homens como ele foram verdadeiros heróis anónimos, vindos de um passado ainda não muito distante, mas cujos ecos, infelizmente, pouco chegam aos nossos dias, distraídos que andamos, tantas vezes só com futilidades.

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IN: APARICÍO, Teresa – Profissões e Vivências em Vias de Extinção: João Rodrigues, ferrador, tosquiador e amigo dos animais. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 4. Nº 7 (2006), p. 55-58