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Samuel Soares Magalhães Calafate, Carpinteiro e Construtor de Barcos

Natural do Pego, onde nasceu há setenta e três anos, aí passou a infância e grande parte da sua vida.

Fez a instrução primária e, como era habitual no seu tempo, quase logo a seguir foi trabalhar. Vivia então, na outra margem do Tejo, na Barca do Pego, um calafate de nome Arnaldo de Matos Pires e foi para aí que a vida o encaminhou, quando tinha apenas catorze anos. Queria ser carpinteiro e, na altura, esta arte, quando ligada à construção de barcos era melhor remunerada.

Começou a desenvolver a sua atividade na Herdade da Torre e o primeiro barco em que trabalhou foi encomendado por Manuel Alfacinha, residente no Rossio ao Sul do Tejo e cujo negócio era o transporte de mercadorias nos denominados barcos varinos. Era uma grande embarcação pois, logo na sua primeira viagem, transportou cinquenta e cinco toneladas de cortiça do Rossio para Lisboa. Na sua construção, trabalharam, durante seis meses, três calafates, um carpinteiro e o sr. Samuel, então apenas aprendiz e que, como tal, fazia de tudo um pouco. Para o receber, a família pagou ao mestre mil e quinhentos escudos, então uma quantia considerável e nos primeiros seis meses de aprendizagem não recebeu qualquer salário. Se lhe davam, no final da semana, cinco escudos de gratificação, já se dava por muito feliz.

Para construir um varino (nome dado aos barcos de transporte de mercadorias no Tejo) eram necessários alguns meses, envolvendo várias e complexas tarefas.

Previamente, procedia-se ao arranque de algumas robustas pinheiras (pinheiros mansos). Arranque e não corte, pois, a curvatura próxima da raiz era importante para fazer a estrutura interna denominados “braços do barco”. As travessas do fundo, também denominadas cavernas, eram constituídas por pranchas de madeira de pinheiro. Para as construir eram necessárias tábuas de pelo menos quinze metros de comprimento e, por aqui, se pode calcular a altura das árvores de cujos troncos eram fabricadas. Os troncos eram transportados, dos pinhais até às serrações, em possantes carros de bois.

As fases da construção do barco eram assim ordenadas:

Primeiro, colocava-se a tábua da quilha, de onde partiam, lateralmente, as cavernas, em forma de espinha de peixe, faziam-se depois os braços, o rodado da proa e o cadaste (peça da popa onde iam assentar as dobradiças do leme), colocavam-se as cintas que rodeiam o costado, faziam-se os entreleites (cobertura dos habitáculos da proa e da ré onde dormia a tripulação) e assentava-se o banco do traste onde era encaixado o mastro. Seguidamente, eram colocadas as tábuas que iam dando forma ao barco, por cima da cabeça dos braços eram colocados os dois alcatrates e as cabeças da amarração, necessárias para prender o barco ao cais em dias de fortes ventanias.

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Finalmente, forrava-se todo com tábuas e compunham-se as casinhas da proa e da ré com os respetivos beliches. Sobre as cavernas colocava-se a coucia e um estrado móvel que se podia retirar, quando era necessário limpar o barco.

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Os pregos utilizados eram zincados, para não enferrujarem com a humidade e vinham de Pardilhó, no norte do país.

Construído o barco, era necessário calafetá-lo, para que nele não entrasse água e ficasse sem humidade e confortável, tarefa tão importante que os mestres construtores eram, frequentemente, conhecidos por calafates. Todas as frinchas da madeira eram tapadas minuciosamente com estopa (resíduos do linho) tratada com alcatrão vegetal. Com um ferro, introduziam-se os fios nas ranhuras e com outro calcavam-se bem, de modo a ficar tudo bem vedado.

A parte do fundo, da cinta para baixo, sempre em contacto com a água, necessitava ainda de ser breada, isto é, tratada com breu, de modo a ficar completamente impermeabilizada. Para fazer o breu, derretia-se ao lume, numa panela grande, pez louro ou preto (substância feita a partir da resina dos pinheiros), misturava-se com borra de gás e deixava-se atingir a têmpera adequada, nem muito rija, nem muito macia. Com esta mistura, enquanto ainda bem quente, com um pincel feito de pele de ovelha ainda com a lã, pincelavam-se as tábuas do fundo, já vedadas com a estopa. Esta pintura tinha que ser feita rapidamente, pois ao arrefecer, o pez fica rijo como o vidro.

Da cinta para cima, a embarcação era pintada e alindada com motivos vários, mas aqui a responsabilidade era já do dono que muito se esmerava nesta tarefa, para que o seu barco fosse considerado um dos mais bonitos, entre os seus companheiros de jornada.

Colocadas as velas, geralmente feitas de lona bem forte, estava pronto a iniciar a sua vida ativa, forte e robusto para, Tejo abaixo, Tejo acima, enfrentar o bom e mau tempo, o calor do Verão e as chuvas e tempestades do Inverno. Quando o barco era lançado pela primeira vez à água, havia festa rija. Puxado por juntas de bois, deslizava sobre um estrado de madeira e assim era conduzido do estaleiro ao rio. Nesta altura, partia-se, sobre ele, uma garrafa de champanhe, para que tivesse boa sorte e, também, todos aqueles que, com ele, iriam partilhar a sua vida. Para esta inauguração solene, o dono enfeitava-o com bandeirinhas de papel e a madrinha dava-lhe o nome com que iria ficar registado. Os que tinham participado na sua construção, festejavam com um bom almoço, geralmente caldeirada de peixe (tinha que ser), regada com vinho a condizer.

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Terminada a guerra, o mundo tomou outro rumo e Portugal, embora com o atraso habitual, não lhe ficou indiferente. O desenvolvimento dos transportes rodoviários e a construção das primeiras barragens deram o golpe fatal na vida dos varinos do Tejo. Em consequência disto, o sr. Samuel deixou este trabalho com dezassete anos de idade, mas não definitivamente, pois aos vinte e três foi retomá-lo em Alhandra, agora ligado à reparação de batelões, alguns grandes, com cerca de trezentas e oitenta toneladas. Aqui esteve cerca de seis meses e meio, com uma vida bem dura, chegando a trabalhar mais de dez horas por dia. Depois foi carpinteiro e construtor civil. Em 1965, foi o responsável pela construção da fábrica da Marofa, numa altura em que as vigas de cimento eram ainda transportadas ao ombro.

O tempo passou, mas o “bichinho” dos barcos continuou sempre bem vivo nele. Assim, por volta dos cinquenta anos, voltou à construção de barcos, desta vez por conta própria. Agora, já não fazia varinos, mas sim pequenos barcos de pesca, encomendados pelos pescadores e só deixou esta profissão porque as burocracias e os elevados impostos o desmotivaram completamente. Hoje, ainda vive com o sonho de construir um varino em miniatura que, talvez um dia, quando tiver vagar, concretize.

IN: APARÍCIO; Teresa – Profissões e Vivências em Vias de Extinção: Samuel Soares Magalhães Calafate, Carpinteiro e Construtor de Barcos. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 3. Nº 6 (2005), p. 66-69