POR MANUEL BATISTA TRAQUINA - Natural do Souto, interessado pela História e pela cultura popular. Publicou, em 2007, O Souto, Uma Cultura. Um Povo
Sendo a tecelagem uma atividade milenar, sem errar muito poderemos dizer que no Souto é centenária.
Concretamente não se sabe bem quando teve início, no entanto há indícios de que já no início do século XIX, havia tecedeiras no Souto. Ainda no concelho de Abrantes, algumas pessoas se dedicaram a esta atividade também em Mouriscas, Pego e Alferrarede Velha, porém foi no Souto que a tecelagem mais se desenvolveu e as mulheres foram sempre as profissionais. Só na década de sessenta do século passado é que um pequeno empresário do ramo, oriundo da zona de Tomar se instalou no Souto, trazendo consigo alguns teares mais modernos. A razão da sua vinda para o Souto foi por se aperceber que ali tinha à sua disposição a mão-de-obra especializada, difícil de encontrar noutros locais.
Ainda na década de oitenta, quando o Instituto de Emprego e Formação Profissional decidiu levar a efeito algumas ações de formação na área da tecelagem, foi no Souto que selecionou uma tecedeira experiente (a D. Clotilde Martins Claro) para ministrar essa formação, nas regiões de Abrantes e Tomar.
De início, os teares seriam bastante rudimentares e foi com o andar dos tempos que se foram aperfeiçoando, muito embora no Souto sempre se tenham mantido os manuais.
Historiando um pouco, os primeiros teares de que há notícia e que foram utilizados pelo homem primitivo, nos continentes africano e asiático, resumiam-se a alguns fios na posição vertical pendurados no ramo de uma árvore, depois o “tecelão” tratava de entrelaçar outros fios na horizontal. Mais tarde este “tear” passou a ser montado na posição horizontal, onde os fios eram esticados em estacas cravadas no chão. Este tipo de tear embora já mais aperfeiçoado, ainda na década de sessenta era utilizado na então Guiné Portuguesa.
No Souto, o tear quase na totalidade construído em madeira, era obra de um ou outro carpinteiro habilitado a este tipo de trabalho e, para além do pinheiro, eram também utilizadas as boas madeiras de cerejeira e castanheiro, por isso muitos desses teares resistiram ao tempo e se mantiveram em boas condições até aos nossos dias.
Por curiosidade, nomeio os nomes de alguns dos componentes do tear, com os quais estão bastante familiarizadas as pessoas do Souto. Assim, as peças maiores, ou estruturas principais, tinham o nome de Montantes. Outras peças têm os seguintes nomes: Pés ou Pegões, Roletas, Órgãos de Traz, Órgãos da Frente, Lançadeira, Canela, Agulhas, Rolo Recetor, Quadros, Liços, Pente, Pedais, Mesa, Caixa do Pente ou Queixa, Apienhas, Preenhas, Premedeiras, Cilindro da Frente, Cilindro de Traz, Desenrolador, Cadeia Malha, Liços, e Perchadas. Havia ainda outros utensílios que, não fazendo parte do tear, eram também indispensáveis na tecelagem. Eram eles a Ordideira a Dobadoura, a Caneleira e o Sarilho.
Os liços eram peças feitas à base de algodão, que sofriam certo desgaste e que era necessário substituir periodicamente, operação que no Souto era apenas executada por uma tecedeira, que habitualmente fazia este trabalho para todas as outras e que sempre manteve o segredo deste trabalho para si e seus familiares.
Na fotografia que abre o artigo, a D. Laurinda Rosa (trabalhando no tear que conta mais de um século e pertenceu à sua avó) e na fotografia desta página, a D. Aurélia Claro, talvez as últimas tecedeiras do Souto.
Também a matéria-prima utilizada na tecelagem, de início, tinha por base o algodão, o linho e a lã, chegando até aos nossos dias com a adição de uma série de fibras sintéticas.
Mas voltando ao Souto, e recuando até aos meados do século XX, vamos encontrar um pouco por toda a freguesia umas boas dezenas de teares, era o manter da atividade, que nalguns casos era quase o principal meio de sobrevivência de algumas pessoas.
O linho cultivado nos campos, depois tratado até chegar ao fio e estar em condições de poder entrar no tear, terá sido utilizado em tempos mais recuados, depois passaram a ser mais utilizados o algodão e a lã. Esta última, em muitos casos proveniente dos rebanhos da região, era lavada, fiada e tingida ali pelas pessoas, até estar pronta como matéria-prima. Havia um homem (de nome Jacinto Galerias) que se dedicava ao trabalho de tingir a lã. Já o algodão era comprado nas lojas do Souto.
Normalmente a tecedeira trabalhava as encomendas que lhe eram feitas antecipadamente, comprava o algodão a crédito e só findo o trabalho e entregue ao cliente é que era feito o pagamento ao comerciante. As tecedeiras chamavam aos seus trabalhos depois de executados as “teias”. Assim, de acordo com o comerciante, o pagamento só era efetuado depois de entregues as “teias” aos seus clientes.
Por vezes atravessavam o Zêzere no local denominado “A Barca do Loureiro” e faziam vários quilómetros com “as teias” à cabeça, dirigiam-se para a região de Tomar onde tinham os seus clientes. Para outros locais deslocavam-se a pé, como Abrantes ou Sardoal, onde se iam encontrar com as compradoras provenientes de outras regiões do país.
Fala-se ainda de uma destemida tecedeira da rua do Rindo da Aldeia (hoje rua de Santo António) que a altas horas da noite, quando terminava o trabalho, se metia ao caminho com as “teias” à cabeça pelo conhecido e não muito seguro Vale dos Beirins.
Recordo que muitas vezes, no Adro do Souto, eram descarregados da carreira diária volumosos fardos de algodão com destino aos estabelecimentos comerciais.
Como matéria-prima eram também utilizadas as “tiras”. Tratava-se de aproveitar roupas usadas que eram rasgadas em tiras, isto é, aproveitar o que já não tinha outro préstimo. Daí eram feitas as mantas ou passadeiras de tiras e sem dúvida que muitas vezes as mãos habilidosas da tecedeira conseguiam fazer sugestivos trabalhos.
Inicialmente os trabalhos executados eram simples, constavam apenas de mantas ou passadeiras lisas, porém uma senhora de nome Maria Augusta, achando que poderia fazer melhor, deslocou-se à região de Coimbra onde aprendeu os chamados trabalhos de agulha e foi aí que se verificou a mudança, ensinou as novas técnicas às suas colegas e a partir daí começaram a surgir novos e sugestivos trabalhos. Fruto desses ensinamentos, das mãos de algumas dessas pessoas mais dedicadas, e a quem a arte bafejou, depois de muitas horas de minucioso trabalho, em que imperava a precisão, contando os numerosos fios, um por um, saíam verdadeiras obras de arte.
Em muitas casas do Souto, e não só, ainda hoje podem ser apreciados maravilhosos trabalhos, que de acordo com a tradição são exibidos nas janelas por ocasião de festejos religiosos. Os trabalhos mais fabricados eram as colchas, mais vulgarmente conhecidas por mantas, as passadeiras e os tapetes. Curiosos eram também alguns sacos em que os alunos da escola transportavam os livros, bem como o revestimento dos selins das bicicletas, engraçados trabalhos das mães/esposas tecedeiras. Nas lojas vendiam-se apenas os cobertores e os, hoje, tão vulgares edredões ainda não tinham feito a sua aparição.
Mandava a tradição que quando se aproximava o casamento, no enxoval tinham que ser incorporadas algumas peças de tecelagem, em muitos casos era a própria noiva/tecedeira que executava as suas colchas. De igual modo da parte do noivo, a mãe ou as irmãs desempenhavam a mesma tarefa.
A tão desejada energia elétrica tardiamente chegou ao Souto, no ano de 1965, mesmo assim a sua instalação tardou a chegar a todas as habitações. Os tempos eram difíceis, muitas vezes a tecedeira aproveitava a noite para, mais concentrada, à luz da candeia ou do candeeiro a petróleo avançar com os trabalhos mais exigentes.
Dizia-me há pouco uma pessoa já idosa, que quem pelas ruas do Souto passasse nas noites longas do Inverno daqueles tempos, o mesmo som era comum a todas as ruas o “treco-treco” do bater do tear e nalguns casos o cantarolar da tecedeira.
Doba doba dobadoura,
Não me enrices a meada,
O novelo era tão grande,
Que já tinha a mão cansada.
Naqueles tempos, as pessoas eram muito supersticiosas, havia “as bruxas e lobisomens” e muitas vezes as tecedeiras, nas suas noites de trabalho, apercebiam-se de ruídos e outros fenómenos, para os quais não havendo uma explicação, obviamente eram as ditas “bruxas e os lobisomens”.
Contavam-se vários episódios como este que passo a narrar: “Uma tecedeira no seu tear, muito próximo de um caminho particular, altas horas da noite, várias vezes ouvia na rua o ruído característico do passo de um animal de quatro patas. Não havia dúvidas, tinha que ser algo de sobrenatural. Com muito medo, mas também muita curiosidade abriu uma fisga do postigo da porta e espreitou.... Quase morria de susto quando na sua frente se deparou o focinho de um enorme burro... fugiu espavorida, gritou e acordou toda a família. Porém, o mistério só foi desvendado quando alguém mais destemido tirou o assunto a limpo e verificou não haver nada de sobrenatural, afinal era o burro do vizinho “Rebolão” que “cheirando” o cio de uma fêmea se evadiu e ali estava rondando o palheiro onde ela estava encerrada!”
Nos nossos dias, a tecelagem quase chegou ao fim, existe apenas uma ou duas pessoas que, por gosto, teimam em manter viva a profissão mais expressiva desempenhada pelas mulheres do Souto, em meados do século XX.
IN: TRAQUINA, Manuel Batista – As tecedeiras do Souto. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 6. Nº 12 (2008), p. 61-63