POR TERESA APARÍCIO - Professora, membro do CEHLA
O senhor José Jorge é natural de Mouriscas e aqui tem residido durante toda a sua vida, até hoje, que já conta a bonita idade de noventa anos.
É pessoa bem conhecida na sua terra, pois, durante bastantes anos, foi a ele que muitos recorreram para fazer os chamados “aparelhos” para os seus animais (burros, machos, mulas, cavalos...) e que eram indispensáveis para estes poderem trabalhar no campo, puxar os carros ou carregar sobre o lombo cargas diversas, incluindo pessoas. Eles eram os grandes colaboradores e companheiros do homem nas labutas do quotidiano, mas tinham de estar devidamente “vestidos” para poderem desempenhar a sua função com eficiência e comodidade. Assim, o animal era aparelhado com o molim ou bornil e a coalheira (espécie de coleira) quando ia trabalhar a terra ou puxar os carros. A albarda era colocada sobre o lombo, quando o animal transportava sobre o mesmo uma pessoa ou qualquer outra carga. A cilha (correia larga que passa por baixo da barriga) e a retranca (correia que passa mais atrás junto à cauda) serviam para segurar a albarda, evitando assim que esta escorregasse do lombo e saísse do sítio onde devia estar colocada. Era, pois, para confecionar tudo isto que recorriam ao engenho e arte do senhor José Jorge.
Para se livrar do duro trabalho do campo, com dezoito anos foi aprender este ofício com um mestre, que residia em Alferrarede e, no ano seguinte, já estava a trabalhar por conta própria.
Houve tempo em que não faltava trabalho, mas a certa altura, como já havia sete albardeiros em Mouriscas, resolveu ir também vender os seus produtos nos muitos mercados e feiras da região e não só, pois chegou a ir até ao distrito de Braga.
Os materiais que utilizava eram variados: peles de animais depois de curtidas, fio, lãs, tecidos, etc. As peles mais grossas, provenientes do gado bovino, eram utilizadas para os arreios que exigem uma maior resistência, como aqueles que seguram os animais ao carro. As peles mais finas de ovelha ou cabra eram utilizadas para forrar as albardas que assim ficavam mais macias e confortáveis. Para estas ficarem bem almofadadas, introduzia-se, no seu interior, uma espécie de saco feito de tecido grosseiro e cheio com palha. Este tecido era muitas vezes comprado nos quartéis e provinha das enxergas onde os soldados dormiam e que, quando já não eram utilizadas, o seu interior era esvaziado e o pano exterior reunido em montes e vendido em leilão. Como sabiam que os albardeiros eram os seus melhores clientes, o militar responsável chamava os que conhecia e quem desse mais é que levava os montes de pano para casa.
Lãs coloridas serviam para enfeitar os bornis, que, bem ornamentados e colocados no pescoço dos animais, faziam o orgulho dos donos.
Os instrumentos de que se servia não eram muito complicados, mas tinham que ser convenientemente utilizados, para que o trabalho resultasse perfeito.
As tiras de sola eram cortadas com uma faca bem afiada. Depois eram cosidas umas às outras, mas, para a linha entrar com facilidade neste material bastante rijo, era necessário fazer primeiro uns furos, para o que se utilizava um instrumento chamado vazador que podia ser de mola ou de pancada. Depois dos furos feitos, já se podia introduzir neles, com facilidade, a agulha, munida de um fio grosso e resistente, que não se quebrasse com facilidade para que a peça fosse durável.
Se a pele era mais fina e os furos mais pequenos, utilizava-se um outro instrumento denominado sovela, que era constituído por um pequeno ponteiro de metal aguçado e encabado em madeira.
Outros instrumentos utilizados eram a turquês, o metro, a régua, etc.
Para um albardeiro com prática, uma albarda demorava cerca de meio-dia a fazer, mas era preciso trabalhar bem. No início da sua atividade profissional e dependendo da qualidade, o seu preço variava entre vinte a quarenta escudos. Para o final, já eram vendidas entre duzentos e cinquenta a quatrocentos escudos.
Miniaturas executadas pelo Sr. José Jorge.
Com habilidade para tarefas várias, o senhor José Jorge também sabia fazer aquilo a que se chamava, na altura, colchões basteados.
Hoje, já pouca gente se lembra de ter dormido sobre outros colchões, que não aqueles que hoje nos são tão familiares, com molas no interior e preenchidos com fibras sintéticas. Mas, até há uns quarenta anos atrás, quando estes últimos ainda não tinham invadido o mercado, os colchões eram cheios com lã ou palha de cereais.
Como o dinheiro não abundava e, nos meios rurais, vivia-se ainda numa economia de subsistência, as pessoas criavam os seus animais e cultivavam o cereal de que necessitavam par fazer o pão que a família consumia ao longo do ano. Quando em casa fazia falta mais um colchão, ou porque a família estava a aumentar, ou alguma filha ia casar, a lã retirada das ovelhas na Primavera, era lavada, seca e escarpelada (aberta, para ficar mais fofa) ou então a palha do centeio, ou as camisas de milho depois de finamente ripadas (rasgadas às tirinhas) eram levadas até ao colchoeiro mais próximo, para este o confecionar.
Ferramentas de albardeiro
A parte exterior era feita de um tecido grosso, talhado e cosido de acordo com o tamanho que se pretendia. Na costura do meio, deixava-se uma abertura que era cosida após a introdução da palha ou da lã no seu interior. Para que estes materiais não deslizassem lá dentro e a superfície exterior ficasse fofa e uniforme, era então necessário fazer aquilo a que se chamava “embastar” o colchão. O colchoeiro, com uma grande agulha enfiada com cordel fino, perfurava o colchão de um lado ao outro, sobre dois pequenos círculos de tecido. O fio, depois de bem puxado, era rematado com nós sobre esses pedacinhos de pano e depois cortado. Estas “bastas” eram colocadas a cerca de um palmo umas das outras.
Os colchões feitos de palha eram pouco duráveis e, passados poucos anos, tinham que ser substituídos. Os de lã duravam uma vida, mas de vez em quando esta tinha de ser lavada, o que dava quase tanto trabalho como fazer um novo. Escolhiam-se, então, os dias bem quentes de Verão, esvaziava-se o colchão e a lã era posta dentro de um recipiente e levada para junto de uma ribeira, onde as mulheres lhe davam as voltas necessárias até ficar bem limpa. Punha-se ao sol e, depois de seca, era aberta e posta dentro do colchão que tinha que ser novamente “embastado”. A vida não era fácil nestes tempos...
No entanto, a profissão a que o senhor José Jorge sempre se dedicou com mais afinco e gosto, foi a de confecionar os “aparelhos” para os animais.
Quando as forças começaram a enfraquecer e o trabalho a faltar, pois, nos campos, os animais foram sendo progressivamente substituídos por outros transportes e por alfaias agrícolas mecanizadas, o senhor José Jorge começou a fazer e a vender arreios em miniatura, que os compradores utilizavam na decoração de casas rústicas.
Para recordar o trabalho de toda uma vida e, de alguma forma, manter sempre a sua lembrança junto a si, confecionou um conjunto de miniaturas, com perfeição e fidelidade, dignas de figurarem em qualquer museu etnográfico. Nestas, os arreios foram colocados em animais feitos de madeira de freixo ou amieiro, onde o bicho não entra com facilidade, para poderem resistir durante muitos anos ao desgaste do tempo. São as miniaturas da saudade e estas não têm preço. São suas companheiras e uma maneira de se encontrar ligado ao que foi a sua vida durante longos anos e, sobretudo, a uma profissão que desempenhou com amor e que hoje ainda gosta de recordar.
Miniaturas de animais com as suas albardas, executadas pelo Sr. José Jorge.
IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e vivências em vias de extinção: albardeiro e miniaturista. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 6. Nº 12 (2008), p. 10-12