ceifa ceifeiros

POR TERESA APARÍCIO - Professora, membro do CEHLA

“Ceifeira que andas à calma

 No campo, ceifando o trigo

 Ceifa as penas da minha alma

 Ceifa-as e leva-as contigo”

                        (Quadra Popular)

Os “ratinhos” eram trabalhadores sazonais que da Beira se dirigiam, temporariamente, para o Alentejo, com o fim de realizarem determinados trabalhos agrícolas. Aquilino Ribeiro retratou-os muito bem numa das suas obras. Abrantes e os concelhos limítrofes, alguns já pertencentes à Beira Baixa, forneceram bastantes contingentes destes “ratinhos”, nomeadamente para a tarefa da ceifa.

A década de sessenta do século XX, época de todas as mudanças, marcou o fim destas migrações internas, por motivos vários de que se destacam a emigração para o estrangeiro e um maior incremento da mecanização dos trabalhos agrícolas.

Há ainda muitas pessoas vivas que mantêm a memória desses tempos. Recorremos a duas delas (Um homem e uma mulher), que nos contaram as suas recordações de então e nos ajudaram a compreender um tempo, ainda não muito distante em anos, mas completamente diferente em vivências e valores.

A senhora Leontina Vicente Lopes nasceu em Mouriscas há oitenta e um anos e ainda hoje ali reside. Apesar de baixa e magra, as suas pernas que já muito andaram, têm agora dificuldade em suportar o peso do corpo, mas o seu olhar ainda é vivo e brilhante e consegue, com facilidade, regressar no tempo até à idade de treze anos, altura em que pela primeira vez foi à ceifa.

Ainda era menina de brincar, quando, certa tarde, viu um homem seu conhecido, que andava a recrutar mulheres para irem para a ceifa, no Alentejo. Assaltou-a, na altura, certamente fruto dos seus verdes anos, uma súbita vontade de viver uns dias diferentes e ao mesmo tempo ganhar algum dinheiro. Então, no próprio momento, decidiu-se e foi falar com ele.

- Leve-me consigo que eu já sei ceifar, a minha mãe já me ensinou. Vai ver que não se arrepende, porque vou trabalhar como uma mulher.

O homem olhou desconfiado para o seu corpo franzino e começou por pôr algumas reticências:

- Tu tens uma irmã com dezasseis anos, não tens? Se ela quiser ir, eu também te levo, de contrário nada feito!

A irmã, já mais experiente da vida, não ficou muito entusiasmada com a ideia, mas lá acabaram por partir as duas, na companhia de outras raparigas, para os Foros do Arrão, perto de Montargil.

Eram quinze mulheres, todas de Mouriscas e já conhecidas (certamente para facilitar o convívio) que, dirigidas pelo homem que as contratara (o manajeiro), iam entregar-se, durante cerca de trinta e cinco dias, à dura tarefa da ceifa, num campo sem sombras e cuja extensão se perdia na distância. Começavam em fins de maio, quando os dias estão no seu auge e o calor escalda nas planícies alentejanas. Para ganharem cinco escudos por dia, trabalhavam desde antes do sol nascer, até ele, muitas horas mais tarde, desaparecer no horizonte. No início da tarde, quando fazia mais calor, descansavam duas horas e, quando não havia árvores nas proximidades, abrigavam-se encostadas aos molhos de trigo, sombra tão pequena que mal dava para as resguardar do sol.

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Leontina Lopes, que na sua juventude foi às ceifas seis anos consecutivos

Na cabeça, usavam um lenço colorido e por cima ainda um chapéu de palha. Nos dedos da mão esquerda, colocavam canudos de cana, para não se cortarem nas gavelas (feixes de cereal) que iam cortando com a mão direita.

Quando o tempo estava seguro e nenhuma nuvem de trovoada ameaçava no horizonte, dormiam mesmo ali no campo, no restolho. Faziam a cama com a palha do trigo, colocavam um cobertor por baixo, cobriam-se com outro e assim descansavam o corpo cansado, em cima da terra dura. Dormiam vestidas e às vezes até calçadas, para, no dia seguinte não perderem tempo a arranjar-se e logo ao raiar da aurora, enquanto ainda estava fresco, iniciarem outro longo dia de trabalho. Quando a chuva ameaçava, iam dormir ao “monte”, o que era mais agradável, embora ainda tivessem de andar cerca de meia hora para o alcançar. Ficavam no celeiro, também em cima de molhos de palha e com os mesmos cobertores que tinham trazido de casa.

Lavavam-se pouco, pois a água não abundava e só quando chovia e nos pequenos regatos corria água mais abundante, é que se podiam consolar com uma lavagem mais completa, tanto do corpo como da roupa.

As refeições eram rápidas, para poderem aproveitar alguns minutos para o descanso. Ao levantar, comiam uma fatia de pão de milho (o pão de trigo, embora o ceifassem, não era para os seus dentes) com queijo. Às dez da manhã, almoçavam, quase sempre feijão preto ou arroz com torresmos, à hora da sesta jantavam e à noite ceavam couves com feijão e algumas poucas azeitonas.

A comida era confecionada no “monte” e depois trazida, à cabeça, por uma mulher, para o lugar da ceifa. Não havia pratos, comiam com uma colher e várias de dentro do mesmo alguidar.

O S. João e o Corpo de Deus eram dias santos de guarda e não se trabalhava. Cuidavam então da roupa com mais vagar e, como eram quase todas raparigas novas, aproveitavam para organizar um bailarico e, para o animar, contratavam um homem que tocava concertina. Apesar do cansaço dos dias anteriores, cantavam e dançavam com alegria e namoriscavam os moços da lavoura que acorriam a estes bailes.

A senhora Leontina foi à ceifa durante seis anos. Alguns foram melhores que este primeiro. Eram menos raparigas, já comiam pão de trigo e dormiam no celeiro em cima de um colchão, duas com a cabeça para cima e duas com a cabeça para baixo, para não ocuparem muito espaço, mas mesmo assim era um luxo! A partir dos dezanove anos, começou a namorar e a preparar as coisas para se casar. Deixou de ir a ceifa, mas não deixou de trabalhar e, tanto no campo como na fábrica do esparto, a vida continuou a ser dura.

A vida dos homens, na ceifa, não diferia muito da das mulheres, pelo que há alguns pormenores que se repetem, no entanto não os suprimi, para não quebrar a sequência dos relatos.

O senhor Américo Lopes Gaspar é natural de Macieira, concelho de Vila de Rei, mas quando casou foi viver para Água das Casas, já no concelho de Abrantes, onde ainda hoje reside.

Tinha onze anos quando foi pela primeira vez à ceifa, logo após ter feito, “quase com distinção”, o exame da quarta classe e a seguir foi trabalhar, porque, nessa altura, só os filhos dos ricos iam estudar.

Sobre a sua experiência na ceifa, relatou o seguinte:

O manajeiro, ou seja, o responsável pela contratação dos ceifeiros era então o senhor Manuel Alves, de Vale de Açor. Previamente, este deslocava-se à herdade que precisava de trabalhadores e aí, com o proprietário, acertava os pormenores do contrato: número de homens, dias de trabalho, salários (soldadas) a distribuir no final, etc. Depois regressava à terra e ia recrutar, nas proximidades, os homens necessários à execução da tarefa, normalmente entre sessenta a oitenta. Os mais novos tinham entre dez a onze anos.

Os grupos que o senhor Américo integrou, nos seis anos que foi à ceifa, tinham como destino “montes” situados na região de Eivas. Iam à boleia ou a pé, até à estação de caminho-de-ferro do Rossio ao Sul do Tejo, aí apanhavam o comboio até à estação mais próxima, onde se encontravam as carroças que os iriam transportar à herdade.

Iam por cerca de quarenta dias, mais ou menos, conforme o ritmo que conseguiam imprimir ao trabalho, mas, se o terminassem antes do prazo combinado, era-lhes paga a totalidade do estipulado no contrato.

A época da ceifa estendia-se de fins de maio a meados de Julho, variando conforme a maturação do cereal, nesse ano. Levavam uma foice nova e primeiro começavam por ceifar aveia, para lhe “abrir o corte” e só depois cortavam o trigo, que era mais rijo. Usavam três canudos de cana nos dedos da mão esquerda (do médio ao mindinho), para não se cortarem ao agarrar o cereal. Faziam-lhes um rasgo na cana, para os poderem enfiar na foice, quando eram retirados dos dedos e assim já não se perdiam. Punham uns plainitos nas pernas, com cerca de trinta centímetros de altura, para o restolho não lhes estragar as calças e uns safões (espécie de avental feito de couro) protegia-lhes a parte da frente do corpo e da roupa.

Começavam a trabalhar uma hora antes do nascer do sol e só terminavam quando a claridade do dia desaparecia por completo. Entre as nove e as dez da manhã paravam uma hora, para descansar e para o almoço, que era geralmente açorda. Ao meio-dia solar, perto das catorze horas atuais, paravam para jantar - grão com carne de porco, enchidos e pão de trigo que era muito saboroso. Comiam cinco de cada “barranhão” (recipiente) para onde migavam sopas de pão até enxugar todo o caldo. A seguir, como o calor atingia então o seu máximo, descansavam duas horas - era a sesta. À tarde, pelas dezoito horas, havia novamente uma hora para descanso e para comerem aquilo a que chamavam o “capacho” (gaspacho) - uma sopa fresca feita com água, tomate, pepino, alho e para onde também migavam pão. Todos os ceifeiros recebiam, por dia, um queijo de ovelha, que podiam comer com pão, quando quisessem, mas que, a maior parte das vezes, iam juntando para trazerem para casa, no final.

O fornecimento da alimentação era feito pelo manteeiro - homem que andava com uma carroça, transportando a comida e a água do “monte” até ao local do corte do cereal. Como se bebia muita água, dois ou três dos mais novos eram aguadeiros - iam às fontes mais próximas buscar água, em barris de madeira para se conservar mais fresca. Também de entre os mais jovens, eram escolhidos os que atavam os molhos de trigo ceifado e não se podiam atrasar porque se arriscavam a levar com um em cima, ficando cheios de palha. Os molhos eram depois “enroleirados” em montes e ficavam, assim, prontos para serem transportados em carroças até às eiras, pelos empregados da herdade.

Por vezes, havia disputas entre rapazes de terras diferentes para ver quem ceifava mais rápido. O que ganhava era considerado o campeão da ceifa e isso além da vitória pessoal era também uma honra para a sua aldeia. Nestas lutas, estragava-se algum trigo, mas depois vinham os porcos e vacas comê-lo e nada se estragava.

A ceifar, andavam intervalados homens e mulheres. Estas vinham das proximidades e só trabalhavam até ao meio-dia, indo depois para suas casas. Gostavam de cantar e as mais novas de namoriscar. Eram as pedras de sal que davam mais sabor à vida, no meio da dura labuta do dia a dia.

Quando a noite se fechava e terminava o dia de trabalho, o manajeiro dizia “rezando e andando para a copa” e então, rezando ou não, todos se dirigiam para o local onde pernoitavam. Dormiam no restolho, cobertos pela manta “lobeira” que tinham trazido de casa. Só quando estava mau tempo iam dormir ao “monte”. De madrugada, o manajeiro era o primeiro a levantar-se e com o grito “arriba ó família” acordava todo o pessoal. Levantavam-se todos, alguns com pouca vontade, pois as noites de Verão são curtas e o corpo ainda se ressentia do cansaço do dia anterior. Seguiam o chefe para o corte e este era o primeiro “a meter a foice ao pão”, depois, quando já todos estavam a ceifar, ele deixava este trabalho e ia orientar o serviço “para a direita ou para a esquerda” e nesse dia já não voltava a ceifar.

Apenas se descansava no dia de São João, que era considerado dia santo de guarda. Lavavam-se no ribeiro mais próximo, bem como à única camisa que levavam para trabalhar e que já estava “tesa” do suor de muitas horas de labuta. Nesse dia, também a comida era melhorada, havia ovelha guisada, aquilo a que hoje chamamos ensopado de borrego.

Quando terminava a ceifa, o manajeiro é que recebia o dinheiro e o distribuía pelos participantes no trabalho. Era em campo aberto, entre o Rossio e Alferrarede, num local denominado Espinhaço de Cão, que os mais velhos discutiam o que os mais novos iam receber e quais os que ainda não eram merecedores de soldada. Cada um defendia os seus familiares e, por vezes, não era fácil chegar a um consenso. Os mais novos ficavam à parte e não participavam nestas discussões. Às vezes, o que estes recebiam mal dava para pagar o que se tinha comprado antes de partirem - a foice, as calças, a camisa, etc.

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Américo Lopes Gaspar, natural de Macieira (Vila de Rei), que integrou vários grupos que participaram nas ceifas, no Alentejo.

O senhor Américo, com onze anos, no primeiro ano que foi para a ceifa (1950), já ganhou duzentos e cinquenta escudos. Começou a ganhar como um homem em 1953 (seiscentos e oitenta escudos) e em 1954 e 1955 ganhou mil escudos, quantia que ficava acima da média paga a cada elemento.

Era aos catorze anos que se começava a ganhar a soldada normal e também era nessa altura que se era autorizado a começar a fumar. Antes de partir, cada fumador comprava uma onça de tabaco, e enquanto se fazia o cigarro, sempre se descansava um pouco e se endireitavam as costas.

O senhor Américo foi à ceifa até aos dezassete anos, seguiu-se o Estoril, onde trabalhou na construção civil e depois, para melhorar a vida, entrou noutra aventura - emigrou para a Alemanha, onde esteve durante alguns anos.

Como era diferente a vida destes jovens de outrora! O pão era literalmente “ganho com o suor do rosto” como é dito na Bíblia. A aprendizagem não se fazia na escola (que era frequentada, quando era, apenas durante três ou quatro anos), mas na vida, dura a maior parte das vezes. O trabalho era um valor importante na formação dos jovens, sobretudo dos mais desfavorecidos. Era a ele que teriam de recorrer sempre, para subsistirem e para irem melhorando as suas condições de vida e muitos conseguiram-no, aproveitando as novas oportunidades que, entretanto, surgiram. Tiveram uma preparação para a vida difícil, mas que, para muitos, a longo prazo, se revelou eficaz.

A vida dos jovens de hoje, para o melhor e para o pior, é muito diferente. Em três gerações, o mundo mudou tão completamente que, em muitos casos, os netos, ao ouvi-los (quando ouvem!) acham que os seus relatos se assemelham a histórias de ficção e alguns nem acreditam sequer no que estão a ouvir. Houve um corte radical na transmissão de conhecimentos e vivências que, durante séculos, se foram transmitindo fielmente de geração em geração. E, contudo, ao ouvir estas pessoas, que foram jovens num passado não muito distante e heroicos em tantos aspetos, constatamos que sobreviveram a todas as dificuldades sem grandes traumas e ainda são capazes de falar desses tempos com saudade, talvez porque lhes recordem a juventude perdida.

E o mais espantoso é que, no meio de tanto trabalho e dificuldades ainda tinham força e alegria para cantar e dançar! E dizem-nos admirados “nós dantes éramos mais alegres, os jovens de hoje têm tudo e apesar disso andam quase sempre aborrecidos, revoltados e nem se sabem divertir...”. Porque será?!

IN: APARÍCIO; Teresa – Profissões e vivências em vias de extinção: Ceifa e Ceifeiros. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 6. Nº 11 (2008), p. 56-59