POR TERESA APARÍCIO - Professora, membro do CEHLA
Já lá vai quem eu recordo
Minha rica lavadeira
Deixava a roupa de neve
Naquela fresca ribeira
Esta pedra da ribeira
Mandei-a eu assentar
Não é minha nem é tua
É de quem nela la var
(Quadras populares)
Foi nos fins do século XIX, princípios do século XX, que a água canalizada começou a chegar às zonas urbanas e apenas nos anos sessenta, década de muitas e variadas revoluções sociais, que as máquinas de lavar roupa principiaram a ser parte imprescindível dos nossos equipamentos domésticos.
E antes destes melhoramentos que tanto vieram facilitar as lides caseiras, como era resolvido, nas famílias, o problema nem sempre simples da lavagem da roupa? O tratamento desta era uma das tarefas das mulheres da casa e tentavam executá-la o melhor possível, de acordo com a sua condição social e com o poder económico daí decorrente.
Em Abrantes, até meados do século XX, as mulheres das classes mais desfavorecidas, iam todas as semanas, acompanhadas por alguma das filhas mais velhas, lavar a roupa a uma das fontes da periferia e isto mesmo depois de terem água canalizada em casa, pois sempre economizavam alguns tostões, sempre necessários na magra economia familiar. A Fonte do Aipo, que hoje já não existe e que se situava não muito longe de onde se encontra agora a cidade desportiva, era uma das mais procuradas. No Verão, a tarefa estava facilitada, pois a roupa era lavada e como enxugava rapidamente, trazia-se para casa já enxuta, bem dobradinha dentro de um alguidar. Levavam uma “bucha” que servia de almoço e na fonte passavam o dia, que era longo no Verão. No Inverno, as coisas complicavam-se bastante, porque os dias são pequenos e a roupa demora mais a enxugar. Era preciso trazê-la à cabeça, ainda molhada, agora muito mais pesada, para depois ser seca em casa.
Antes de haver água canalizada, algumas famílias mais abastadas, que tinham quintais com cisternas, optavam por lavar a roupa no domicílio, tarefa que era feita por alguma das várias criadas.
Mas havia ainda quem quisesse e pudesse optar por ter uma lavadeira. A maior parte delas vivia em aldeias dos arredores, atravessadas por ribeiras, onde a água corria em abundância.
Maria Virgínia Silva tem hoje setenta e três anos e foi uma das últimas lavadeiras que conheci. Reside em Abrançalha de Cima e na ribeira que atravessa esta povoação lavou, na sua juventude, até aos trinta e um anos de idade. Então, os anos sessenta estavam a terminar e o tempo das lavadeiras estava igualmente a chegar ao fim.
A mãe, a avó e uma tia materna também muita roupa lavaram nesta mesma ribeira e ela continuou e terminou esta linhagem de lavadeiras. Tinha apenas sete anos e já, quando saía da escola, ia ter com a mãe à ribeira. Punham-lhe um lençol molhado, mas já torcido, à cabeça, em cima de um grande prato de esmalte cinzento e ela transportava-o até a casa, na encosta em frente, para depois aí ser posto a enxugar. Chegou a transportar, assim, cinquenta lençóis, num só dia. O lema era: “O trabalho do menino é pouco, mas quem o perde é louco”.
Quando chegou aos doze, treze anos, passou a ir com a mãe lavar para a ribeira. Hoje, que basta carregar nos botões da máquina de lavar para, passado um bocado, nos aparecera roupa lavada e em certos casos já seca, não passa pela cabeça, sobretudo dos mais jovens, as voltas que a roupa dava até aparecer, nas gavetas, prontinha a usar.
A roupa era levada para a ribeira, onde começava por ser bem ensaboada, ficando depois algum tempo em repouso, para amaciar. De seguida, era trazida para casa para aí se fazer a barreia. Esta era feita do seguinte modo: a roupa era posta dentro de um caixote de madeira, alto e aberto e que tinha por baixo uma placa de madeira com um bico, a que se chamava francela. (No museu de Vila de Rei, vi o caixote ser substituído por um grande cortiço.) Depois da roupa bem empilhada, colocava-se por cima um pano branco e sobre tudo isto deitava-se um caldeiro de água muito quente, onde se fervera cinza e restos de sabão. Os resíduos sólidos da cinza ficavam retidos no pano e a água ia-se infiltrando lentamente na roupa, saindo pelo bico da francela para um alguidar, para depois ser deitada fora. Repetia-se várias vezes esta operação e no dia seguinte, logo de manhã cedo, tirava-se a roupa, que ainda estava morna e levava-se para a ribeira. Se já estava branquinha, passava-se por água corrente e torcia-se; se ainda mantinha alguns vestígios de nódoas era posta à cora, sobre arbustos escolhidos (alguns punham nódoa e era preciso evitá-los) e o sol encarregava-se de remover o resto da sujidade. Quando estava vento, complicavam-se as coisas, pois a roupa voava e então as lavadeiras tinham de correr atrás dela, para a apanhar.
As peças de roupa maiores (lençóis e toalhas) para serem torcidas, eram necessárias duas mulheres, cada uma colocada numa das extremidades da peça, que depois iam torcendo, de modo a retirar a maior quantidade de água possível. A roupa já torcida, era levada para perto de casa, dentro de um tabuleiro ou alguidar para ser estendida a secar. Frequentemente, regressavam já ao fim da tarde, pelo que só era estendida na corda no dia seguinte, o que no Inverno não era fácil, pois a roupa ficava gelada e as mãos enregelavam também ao estendê-la. Quando o tempo estava bom, a roupa secava depressa, mas quando a chuva vinha e às vezes ficava durante semanas, a tarefa tornava-se demorada e os prazos para a entrega difíceis de cumprir. Se aparecia uma aberta de sol, corriam a estendê-la, mas não se podiam afastar muito, pois era preciso guardá-la, não viesse uma gravanada de chuva e lá ficava outra vez a roupa toda molhada.
Nas margens da ribeira, cada lavadeira tinha a sua pedra. Era grande, lisa, geralmente de granito e, às vezes, até já estava gasta pelo trabalho de gerações de lavadeiras. Em certas zonas do país, estas lavavam com os pés dentro de água, mas por aqui tal não era hábito. Ajoelhavam-se junto à sua pedra, sobre uma espécie de banco próprio para este trabalho e sobre o qual colocavam um pano macio dobrado, de modo a não se magoarem muito. Mas, mesmo assim, após vários anos de ribeira, ficavam com grandes calos nos joelhos.
No Verão, quando a ribeira da Abrançalha quase secava, a D. Maria Virgínia e a sua mãe iam lavar para o Pisão, que fica entre a Abrançalha e a Aldeinha. Demoravam para lá chegar quase uma hora a pé, mas ali havia sempre água em abundância. Apesar da distância, tinham que dar as mesmas voltas à roupa: trazê-la para casa para a barreia, levá-la depois à ribeira e trazê-la novamente para enxugar.
Domingo era o dia de elas virem à cidade, entregar a roupa às patroas. Vinham a pé, com um burrito carregado com os sacos da roupa, mas, mesmo assim, ainda era necessário trazer alguma à cabeça. Em casa da patroa, esta conferia tudo, peça por peça, para ver se estava de acordo com o rol (listagem feita no ato da entrega). Nos anos cinquenta, princípios dos anos sessenta, por volta das onze da manhã, eram certas no Colégio de Nossa Senhora de Fátima, onde por essa altura havia muitas alunas internas e, consequentemente, muita roupa para lavar.
Hoje tudo está mais facilitado e a roupa não dá tanto trabalho, mas a máquina não a deixa tão branquinha, nem fica a cheirar “à frescura da água” como então.
Esta conversa, com a D. Maria Virgínia, fez- -me recuar no tempo e recordar a minha infância. A minha avó Leopoldina era lavadeira e lavava na ribeira da Pucariça, onde a água corria fresca e cristalina durante todo o ano. Quando tinha quatro, cinco anos, gostava de ir com ela para a ribeira e, como no Verão era muito agradável chapinhar na água, ser lavadeira era, na minha ingenuidade, a profissão que eu aspirava ter no futuro. As minhas amigas queriam ser professoras ou médicas, mas eu não me interessava pela componente social da profissão e teimava que queria ser lavadeira. Não teria grande futuro, como depois se viu e teria ficado no desemprego antes de atingir a idade adulta.... Lembro-me ainda, embora mal, de todas as fases por que passava a roupa e que a D. Maria Virgínia me descreveu tão bem. Tal como ela, a minha avó vinha da Pucariça a pé, com o seu burrito carregado de roupa e também com alguma à cabeça, até ao Rossio ao Sul do Tejo, onde morava uma família abastada para quem ela lavava. Além da roupa, ainda tratava das hortas (o meu avô era doente e pouco a podia ajudar), onde semeava milho, feijão, plantava couves e muitos outros produtos necessários numa economia de subsistência, cuidava da casa e abastecia-a de água, lenha, etc. E tudo isto quando já tinha mais de setenta anos de idade!
Esta minha avó sempre foi para mim uma referência e uma das pessoas da família de que mais me orgulho, pela sua capacidade de trabalho, coragem e alegria com que enfrentava a vida. A ela se aplica muito do texto que José Saramago dedicou à sua própria avó:
“Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de redolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal (...) Trave da tua casa lume da tua lareira. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu não vi rir ninguém! (..)
Mas porquê avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas e dizes com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida:
- O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer”.
A ela presto a minha homenagem e também a outras mulheres que, como ela, foram verdadeiras heroínas humildes e desconhecidas e que a sociedade para quem elas tanto trabalharam sempre esqueceu e desvalorizou.
Na coluna da esquerda: Maria Virgínia Silva, uma das últimas lavandeiras da Abrançalha. Na coluna da direita: Leopoldina Maria, lavadeira na Pucariça, nos anos 40 e 50 do Séc. XX.
IN: APARÍCIO, Teresa – As Lavadeiras. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 8. Nº 16 (2010), p. 71-74