serradores

Mulheres colocando resma em barricas Fotografia de José Correia da Cunha, Aproveitamento Hidroelétrico da Bacia do Zêzere, 1999

Por Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA

            O senhor Adelino António Brunheta tem oitenta e um anos e nasceu onde reside ainda hoje, no Vale da Bairrada, pequena, mas airosa aldeia, que já foi da freguesia do Souto, mas que hoje pertence às Fontes.

Não foi à escola e aprendeu a ler já adulto, porque era preciso começar a trabalhar cedo, em tempos de vida difícil. Aos sete anos já guardava o gado da família, sucedendo a vários irmãos mais velhos, que, entretanto, foram crescendo e procurando outras profissões onde pudessem ganhar a vida. Foi também o que lhe aconteceu a ele, quando chegou aos quinze anos. Primeiro foi para o campo, trabalhando então no que era necessário e muito frequentemente em trabalhos sazonais como a apanha da azeitona e mais tarde, aos dezassete, quando já tinha força de homem, foi para os pinhais, iniciando-se assim na vida de serrador, profissão que o acompanhou até à reforma.

Andar todo o dia com uma serra manual nas mãos, desafiando as árvores, algumas de grande porte, era tarefa dura que “fazia suar em bica” e castigava os músculos dos braços. Mas serrar não era a única atividade na vida de um serrador. Primeiro era preciso abater as árvores que o dono indicara, tirar-lhes os ramos e a casca exterior, depois marcar a espessura que as tábuas iriam ter e só então os troncos estavam prontos a ser serrados. Para isso, o toro, já limpo, era apoiado num suporte chamado “burra”, que normalmente era feito com a ponta do pinheiro a serrar. Esta colocava-se em plano inclinado, com a parte mais delgada apoiada no chão e a outra, mais grossa, tinha uma concavidade denominada “queixo da burra”, onde era apoiada uma das extremidades do tronco a serrar que, para maior segurança, ainda era bem atado àquele engenho. A parte central do toro ficava apoiada a meio em duas resistentes varas cruzadas e apoiadas no solo, denominadas “pontais”, que se deslocavam à medida que o mesmo ia sendo serrado. Uma vez este bem fixo e colocado na horizontal, um dos serradores montava-se ou ajoelhava-se na ponta que ficava livre e pegava numa das extremidades da serra, enquanto um outro, ajoelhado por baixo, pegava na outra extremidade e os dois, sincronizando os seus movimentos, iam serrando a tábua ao longo do tronco.

serradores1

Adelino António Brunheta, autor dos depoimentos compilados neste artigo

A espessura da tábua dependia do destino que se lhe queria dar: se se destinava a forrar um teto, bastava ter um centímetro e meio, para o soalho já era preciso ter dois centímetros e meio e para fazer uma porta chegava aos três centímetros. O tronco já fora previamente marcado, de acordo com o fim a que se destinava, o que tinha sido feito com um fio de lã esticado e embebido numa tinta vermelha chamada almagra. Os pinheiros de que se obtinha madeira de melhor qualidade chamavam-se “pinheiros de tabuado”, já tinham uma idade superior a vinte anos e não eram resinados, isto é, não se lhes tinha tirado resina. Depois de feitas, as tábuas eram transportadas, à cabeça, por mulheres, até aos carros de bois e mais tarde às camionetas de carga que as esperavam nas estradas mais próximas.

Além de pinheiros, o senhor Adelino também serrou outras árvores como amieiros, choupos ou castanheiros. Havia troncos tão grossos que três tábuas davam para fazer um barco, dos pequenos, claro.

O trabalho era duro e ganhava-se pouco. Nos anos cinquenta, recebia em média vinte e cinco escudos por dia, mas quando chovia não se podia trabalhar e, portanto, não se ganhava nada. Quando o trabalho escasseava perto de casa, os serradores tinham de partir para longe e o senhor Adelino chegou a ir trabalhar para Chão de Codes, Sertã, Cabaços, etc. Os patrões cediam-lhes palheiros disponíveis nas proximidades para pernoitarem, onde dormiam sobre palha e, no tempo frio, cobriam-se com cobertores de lã. Faziam a comida em fogueiras que acendiam no meio do pinhal, mas, apesar disso, havia muito menos incêndios do que hoje.

serradores2

Na coluna da esquerda, imagem de serradores recolhida do livro de Manuel Batista Traquina, O Souto, uma cultura um povo, editado pela Palha de Abrantes em 2007. A imagem de um "zorro" na coluna da direita, e as restantes imagens desta página e da próxima foram extraídas de José Correia da Cunha, Aproveitamento Hidroelétrico da Bacia do Zêzere, 1999.

Coziam batatas, feijão-frade, hortaliças e assavam sardinhas e enchidos que compravam nas aldeias próximas. Quando andavam perto de casa, levavam comida, ou então as mulheres ou as filhas mais velhas iam lá levá-la.

No fim dos anos quarenta, o senhor Adelino foi para Cernache de Bonjardim serrar madeira que depois foi utilizada nas cofragens da Barragem do Castelo de Bode, então em construção. Ganhava quarenta escudos por dia, o que na altura já era muito bom.

Quando começaram a aparecer as serrações, munidas com serras mecânicas, a maior parte da madeira passou a ser direcionada para estas, para ser serrada. Antes da construção da Barragem do Castelo de Bode, os toros eram transportados pelas águas do Zêzere e, muitas vezes, chegavam até este através de alguns dos seus afluentes, como o Codes. Os serradores cortavam as árvores, tiravam-lhes todos os ramos e os troncos, depois de limpos e marcados com as iniciais dos proprietários, eram levados à cabeça, por mulheres, até aos “zorros”. Estes eram feitos nas margens íngremes do rio, onde era alisada uma faixa de terreno que se tornava assim numa rampa, por onde escorregavam os troncos até à água. Esta atividade era feita no início da Primavera, quando o degelo e as chuvas do Inverno tornavam o rio caudaloso, transformando-o assim num meio de transporte rápido e barato. Nas margens andavam homens com uma vara comprida, desencalhando a madeira que ficava presa na vegetação ribeirinha. Uma vez os troncos chegados a Constância, eram retirados da água e transportados geralmente por barco, mas também por carros de bois e depois por camionetas até ao destino. Próximo, na Praia do Ribatejo, havia uma grande serração para onde ia muita desta madeira.

serradores3

Transporte de madeira, na albufeira da Barragem de Castelo de Bode

 

O senhor Adelino andou no pinhal até à reforma, mas na fase final da sua vida ativa, ele e os companheiros, além de cortarem os troncos que depois iam para a serração, também serravam os pinheiros mais pequenos em pedaços miúdos, que eram destinados às fábricas de papel.

Além dos serradores, também os resineiros animavam e povoavam os pinhais. O senhor Adelino, antes de ser serrador foi resineiro, pois era um trabalho mais leve, onde não era necessário despender tanta energia.

serradores4

Os resineiros começavam por fazer um golpe nos pinheiros, raspando-lhes verticalmente um pedaço da casca. Por baixo colocavam uma bica, feita de folha de zinco, por onde escorria a seiva para dentro de um recipiente de barro, a que se dava o nome de “caneco ou tigela do pez”. As mulheres recolhiam estes canecos e despejavam-nos, limpando-os bem com uma espátula, para dentro de barricas que eram colocadas em lugar de fácil acesso, para depois serem transportadas para as fábricas onde a resina era utilizada no fabrico de tintas e vernizes. A madeira dos pinheiros “sangrados” não era de muito boa qualidade e era vendida mais barata, mas o preço do pez compensava.

As raparigas alegravam muito o pinhal, diz- -nos o senhor Adelino Andavam sempre a cantar à desgarrada, ou quadras que todas sabiam, o que lhes ajudava a passar o tempo e a amenizar o trabalho. Eram muitas as quadras, mas o senhor Adelino já só se lembra de poucas delas:

O pedreiro cheira a cal

O carpinteiro a madeira

Cada qual com seu ofício

Eu também sou lavadeira

Ó luar da meia-noite

Alumia cá para baixo

Eu perdi o meu amor

Às escuras não o acho

 

serradores5

Na imagem da esquerda, ferramentas do resineiro:1- Raspadeira; 2 - Turquez para tirar as bicas; 3 -Espátula; 4 – Pulverizador; 5 - “Bidron", para raspar o tronco “à francesa”; 6 - Cortante, para tirar a casca;

7 – Formão; 8 – Desencarrascador; 9 - Grampo, para fazer o golpe onde se mete a lata.

Na imagem da direita, transporte de resina.

Hoje, por aqui, já não há serradores nem resineiros nos pinhais e as cantigas das raparigas há muito que o vento as levou para sempre. Até quase todos os pinheiros desapareceram, reduzidos a cinza, pelos muitos incêndios dos últimos anos. Abandonados, mais tristes e sós do que antigamente, não tiveram quem os defendesse quando as chamas chegaram para os dizimar.

IN: APARÍCIO, Teresa – Serradores e Resineiros Quando nos Pinhais Se Cantava.... Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 8. Nº 15 (2010), p. 64-67