cultivo arroz

Por Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA

O arroz é um cereal originário dos países tropicais e talvez introduzido pelos árabes na Península Ibérica, mas a sua cultura só começou a ter algum significado, no nosso país, a partir da segunda metade do século XIX. A sua área de cultivo foi, depois, aumentando até atingir o seu auge, na década de sessenta do século XX, altura em que chegou a ocupar 25 000 hectares, com uma produção média anual de 10 000 toneladas, mas que, mesmo assim, não chegava ainda para satisfazer as necessidades do país.

Nunca foi dos cereais mais cultivados em Portugal e o rendimento da sua produção foi sempre pequeno, três a quatro vezes inferior ao de Espanha. Entre os anos de 1923 e 1927, altura em que o seu cultivo começou a desenvolver-se, a área que ocupava, representava apenas 4% da que era ocupada pelo milho.

Cultiva-se em terras alagadas, pois o seu crescimento exige grande quantidade de água corrente e, sendo uma cultura de Verão, as águas de Inverno não lhe aproveitam, porque a preparação da terra faz-se no início da Primavera e em seco. A sementeira já é feita dentro de água e esta só é definitivamente retirada, pouco tempo antes da ceifa, que se processa no mês de setembro.

No nosso país, os terrenos mais adequados à cultura do arroz vão desde a bacia do rio Vouga até ao sudoeste algarvio, sendo, contudo, as zonas de maior produção as que se situam nas bacias hidrográficas do Mondego, Tejo e Sado.

Era, em tempos, uma cultura muito exigente em mão-de-obra e, sendo estas regiões pouco povoadas, havia migrações periódicas de outras zonas do país, de modo a superar a falta de trabalhadores locais. Os terrenos alagadiços eram propícios à proliferação de insetos, entre eles o que provocava o paludismo e essas pessoas, depois, levavam-no consigo, para as suas terras de origem. Para evitar a disseminação desta doença, até há poucas décadas de difícil tratamento e prevenção, a cultura do arroz esteve, durante algum tempo, sujeita à autorização do Estado.

No que respeita à bacia hidrográfica do Tejo, o cultivo deste cereal estendia-se, a montante, até às margens das ribeiras dos concelhos de Ponte de Sor e de Abrantes, sobretudo na zona sul deste último.

O senhor Francisco Espadinha tem 86 anos e é natural de Longomel, concelho de Ponte de Sor, mas já há muito que reside na freguesia de Bemposta e esteve ligado ao cultivo do arroz desde a infância. Já o pai trabalhava neste cereal, pois era rendeiro numa grande propriedade em Longomel, que chegava a produzir, anualmente, cem moios, isto é, perto de noventa toneladas de arroz. Como era necessária muita mão-de-obra, os filhos começaram a ajudá-lo desde crianças e, assim, quando regressava da escola, lá ia ele para os arrozais, ajudar o pai e os irmãos mais velhos. “Nasceram-lhe os dentes” nesta faina e foi dos últimos a abandoná-la na nossa região, contava então já setenta anos de idade.

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Produção de arroz em Portugal, em 1950. Cada ponto do mapa representa 200 toneladas.

Orlando Ribeiro, “Geografia de Portugal IV - A Vida Económica e Social”, edições Sá da Costa, Lisboa, 1987, p.1021.

Esta era uma cultura demorada e trabalhosa. Primeiro era necessário fazer os canteiros nos chamados lameiros e, durante o Inverno, deitava-se para lá a água das ribeiras e o lodo, que se depositava à sua superfície, era um ótimo adubo para as terras. Havia canteiros de diferentes tamanhos, chegando os maiores a ter cem metros de comprimento e eram separados uns dos outros por um cômoro de terra a que se chamava “maracha”. Às vezes, até se punha vime nestas divisórias para as tornar mais fortes, de modo a poderem resistir às chuvas e servirem ainda no ano seguinte, sem se desmancharem. As bocas dos canteiros, isto é, por onde entrava e saía a água, também tinham de ser reforçadas. Para isso, em Vale de Zebrinho, as mulheres iam buscar as chamadas “leives”. Iam aos brejos e apanhavam terra húmida, misturada com ervas, colocavam a carga com que podiam em cima de uma tábua, que traziam à cabeça, até aos canteiros e aí era depositada no local que lhe estava destinado. Depois, iam buscar mais “leives”, até todas as bocas estarem reforçadas. No fim do Inverno, retirava-se a água de dentro dos canteiros, porque todos estes trabalhos preparatórios tinham de ser feitos em seco, mas por pouco tempo, só até princípios de março, altura em que se fazia a sementeira e esta já era feita com os canteiros com cerca de um palmo de altura de água.

Quando o senhor Francisco era criança, nas décadas de vinte e trinta do século XX, fazia-se a chamada sementeira direta, isto é, o arroz era semeado dentro de água, nos mesmos canteiros onde ia depois crescer. Este processo tinha alguns inconvenientes, pois juntamente com o arroz nasciam ervas, sobretudo a milhã e o galracho, que se tornavam altas e fortes o que tornava a monda, que era feita por alturas do S. João, difícil e demorada. Este era um trabalho só feito por mulheres, de diferentes idades, desde rapariguitas que há pouco tinham saído da escola primária, até outras já de cinquenta e sessenta anos. Os trabalhos mais pesados eram deixados para os homens, que também ganhavam mais. Mas não se pense que o trabalho da monda era fácil. Elas iam em ranchos para os arrozais e andavam todo o dia descalças, dentro de água, curvadas sobre as ervas, que iam escolhendo e arrancando. Por vezes, não saíam da água nem para comer, pois esta estava mais quente que o ar exterior e assim não chegavam a arrefecer.

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Cremilde Santos, trabalhadora dos arrozais. Na coluna da direita, Francisco Espadinha, produtor de arroz, empunhando uma moeira.

A D. Cremilde Santos, de 63 anos, natural e residente em Vale de Zebrinho, andou vários anos na monda e contou-nos como se protegiam num tempo em que não havia ainda botas de borracha, ou luvas para trabalhar: para proteger as pernas, cortavam umas meias grossas e já velhas e faziam-lhes duas bainhas nas extremidades, onde enfiavam elásticos ou um atilho, de modo a poderem ajustar-se. Calçavam-nas depois, ficando com as pernas, dos tornozelos até aos joelhos, mais quentes e protegidas das agressões do meio ambiente. Quanto às mãos, enfiavam-lhes também uma espécie de luvas, feitas de restos de roupas velhas, de modo a ficarem com a mão protegida, mas com os dedos de fora, pois estes tinham de ficar libertos e ágeis para a monda. Como o fundo dos canteiros estava alagado, não se viam as pedras que por ali se encontravam e que, embora normalmente pequenas, magoavam tanto os dedos dos pés como os das mãos, que ficavam doridos e por vezes até em sangue.

Era a luta pela vida, com um trabalho difícil e mal pago, mas mesmo assim, passavam o dia a cantar. De algumas quadras que costumava ouvir às mulheres, ainda se lembra o senhor Francisco:

Uma vez fui a uma feira

Eu não sei como isto foi

Comprei uma vaca leiteira

Cheguei a casa era um boi

Comadre, rica comadre

Gosto muito da sua pequena

É bonita, apresenta-se bem

Parece que tem a face morena

No cemitério de Ponte de Sor, quando se procedia à trasladação dos cadáveres, os coveiros até já conheciam os que tinham sido, em vida, homens e mulheres do arroz, os chamados “rozaleiros”, porque os ossos das pernas eram mais amarelos, por terem estado, tanto tempo, dentro de água.

Logo após a monda, era feita a primeira adubação. Para adubar, tirava-se a água corrente dos canteiros, para o adubo não ser arrastado por ela. Quando começava a espigar, por meados de julho, fazia-se mais uma pequena adubação. A partir desta altura, começava a fazer-se a rega, punha-se a água nos canteiros ou tirava-se conforme era conveniente. O adubo mais utilizado era o sulfato de amónio, não se podendo utilizar, no arroz, estrume animal, pois a planta ficava brava e não dava grão.

Como o processo de sementeira direta se tornava pouco rentável e a monda, como já se disse, era demorada (uma mulher precisava de um dia inteiro para mondar um canteiro de dez metros quadrados), a partir dos anos quarenta, era o senhor Francisco adolescente, adotou-se um outro método de sementeira, tendo vindo homens da Comporta, região rica em arroz, para o ensinar aqui, aos residentes. A sementeira era feita em canteiros, com terra pouco alagada, para não crescerem tantas ervas. Passados 45 a 60 dias, arrancavam-se as plantinhas do arroz e eram transplantadas para outros canteiros, onde iam ficar definitivamente. Aqui a monda era fácil e rápida, porque o arroz já estava mais crescido que as ervas e estas arrancavam-se mais facilmente. Com este novo método, a produção triplicou e o arroz ficou de melhor qualidade.

Nos anos setenta, outra alteração relevante se processou: foi introduzida a monda química, que substituiu o trabalho das mulheres, mão- -de-obra que, com a emigração dos anos sessenta, também já começava a escassear. Voltou-se à sementeira direta e, quando as plantas do arroz começavam a crescer, mas ainda se encontravam submersas, deitava-se para dentro da água dos canteiros o adubo e um outro produto químico, que apenas fazia secar as ervas daninhas. Este processo tornou o cultivo do arroz ainda mais fácil e barato.

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Antiga fábrica de descasque de arroz, no Rossio ao Sul do Tejo.

As ceifas eram feitas no fim do Verão e, uns dias antes, a água era definitivamente retirada dos arrozais. Eram também feitas por mulheres e, tal como nas mondas, por ser uma mão-de-obra mais barata. Há cerca de cinquenta e cinco anos atrás, as mulheres ganhavam doze e os homens dezasseis escudos, por dia. Elas, à medida que iam ceifando, iam fazendo paveias (mãos cheias de plantas ceifadas) que depositavam em cima do restolho e aí ficavam em “resteva”, isto é, a secar, durante dois ou três dias. Depois de secas, eram juntas, atadas em molhos e transportadas para as eiras, onde eram malhadas com as moeiras para lhes retirar a palha. Quando o arroz era muito e os donos tinham animais (bois, burros, cavalos...) eram estes que o iam calcar. Iam aos pares e os lavradores mais abastados, chegavam a levar trinta juntas para as eiras. Andavam à roda, dando várias voltas em cima do cereal e eram tocados com uma vara, pelo lado de dentro da roda, para não pararem. Às vezes, chegavam a fazer as suas necessidades em cima do arroz, mas como este depois, ainda era descascado, as pessoas não davam grande importância a isso.

Como o arroz, depois de malhado ou pisado, ficava misturado com a palha e até com outras sujidades, com uma forquilha eram retirados os fragmentos maiores, seguidamente, com um ancinho (uma espécie de pente grande, com um cabo, feito de madeira), era “aconhado”, isto é, ia-se retirando a palha mais grossa, sendo a mais miúda varrida com uma vassoura de salgueiro. Mas, depois de todas estas operações, ainda ficava muito pó misturado com o arroz e este tinha de ser ainda “desmoinhado”: em dias de vento, era padejado, isto é, atirado ao ar com uma pá de madeira, em sentido contrário ao do vento. O grão, como era mais pesado, caía na direção para onde era atirado e, o pó, como era mais leve, era levado pelo vento em sentido contrário. Mais tarde, começou a usar-se, para fazer esta limpeza, um engenho manual chamado “tarara”. Eram necessárias três pessoas, para executar esta operação: uma para deitar o arroz para dentro da máquina, outra para dar à manivela e ainda outra para retirar os grãos, que caíam no outro lado.

Nos princípios dos anos 60, apareceram as máquinas de debulhar arroz e as primeiras utilizadas, aqui na região, eram fabricadas na Metalúrgica Duarte Ferreira, no Tramagal. Estas tinham rodas de ferro e, como não eram motorizadas, tinham de ser ligadas a um motor de rega. Para se deslocarem, eram puxadas por um carro de bois, que também levava o motor e outros apetrechos da máquina. Mais tarde, começaram a ter rodas de borracha e passaram a ser puxadas por um trator, o que facilitava muito a deslocação, sendo também o motor deste que acionava a máquina, quando esta era posta a trabalhar. Com esta inovação, o trabalho ficou mais fácil e barato. Para malhar com a moeira, eram necessários vários homens, com estas máquinas eram apenas precisas quatro pessoas, que debulhavam cerca de dez toneladas por dia e o arroz vinha já limpinho e com a palha separada. Foi realmente um grande progresso, pois limpar o arroz dava muito trabalho e demorava tempo. Não se pense, contudo, que o trabalho, com a máquina era fácil. A separação da palha fazia muito pó e este com o calor de setembro, tornava o ar quase irrespirável para as pessoas que lidavam ali por perto.

A D. Cremilde, que também trabalhou na debulha do arroz, já com a máquina, descreveu- -nos como se processava este trabalho. O cereal vinha em molhos do campo e era empilhado numa espécie de cones, bastante altos, chamados “rolheiros”, com as espigas metidas para dentro para não se molharem, se acaso chovesse, nem o grão ser comido pelos pássaros. Quando chegava o dia da debulha, a máquina era colocada muito perto do “rolheiro” e, então, para tudo correr bem, era necessário um trabalho bem coordenado de quatro pessoas: um homem, o “aumentador” (e o seu pai desempenhou, durante muitos anos, esta tarefa), metia o arroz ainda com a palha para dentro da máquina, enquanto outro homem aparava o cereal já debulhado. Iam-se revezando, durante o dia, pois esta última tarefa era bem mais fácil que a primeira, que exigia bastante esforço e perícia. Enquanto isto, uma mulher (e ela fez este trabalho bastantes vezes) ia para cima do “rolheiro”, cortava os fios que atavam os feixes e atirava o cereal para baixo, para ser metido na máquina. Quando o “rolheiro” já estava mais pequeno e a superfície da base aumentava, era necessária mais uma pessoa, que, com uma forquilha, dava os molhos, já desatados, ao “aumentador”, que os metia na máquina. A palha era junta por dois homens que, com uns paus, a iam empilhando em montes, para depois ser transportada para os palheiros. Com ela se alimentavam os animais e os restos serviam para lhes fazer a cama. Como se vê, nada se estragava.

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Máquina de debulhar arroz

Mas o ciclo do arroz não terminava com a debulha, a seguir era preciso descascar o grão. Primitivamente, esse trabalho era feito nos moinhos e azenhas, mas era necessário preparar as mós de forma especial: eram forradas com cortiça para ficarem mais macias, pois se assim não se fizesse, o grão, em vez de ser só descascado, era reduzido a farinha, como acontecia com os outros cereais e não era isso o que se pretendia.

Quando começaram a aparecer as primeiras fábricas de descasque, o arroz não ia diretamente para lá. Depois de limpo e ensacado, era levado ao Grémio de Indústria do Arroz e era este que o enviava à fábrica mais próxima, que, aqui na zona, se situava no Rossio ao Sul do Tejo. Era obrigatório levar o arroz todo para o Grémio e já com o manifesto feito, isto é, a lista dos quilos produzidos pelo agricultor. Era então pago ao produtor, mas o preço dependia muito da qualidade do produto. O mais bem pago, era o que tinha o bago mais grosso, estava bem limpo e sem humidade nem impurezas. Durante algum tempo, na altura em que recebiam o dinheiro, era-lhes imediatamente descontada uma certa quantia, para tratamento do paludismo, aqui chamado sezões e que se estava a disseminar bastante na região. O senhor Francisco lembra-se de vir, periodicamente, uma carrinha, a Ponte de Sor, com uma equipa médica, à qual se dirigiam as pessoas que sentiam sintomas da doença. Aí, era-lhes prescrito um tratamento totalmente gratuito, mas bastante eficaz. Anteriormente, tratavam-se com quinino, preparado nas farmácias, mas quase sempre as febres voltavam de novo.

Durante a Segunda Grande Guerra, aos produtores era dada uma senha, que lhes permitia ir à fábrica buscar arroz para o seu consumo e a quantidade, a que tinham direito, consistia numa percentagem sobre a sua produção. Embora fosse pago, ficava, mesmo assim, mais barato. Para fugirem a este controlo e poderem vender mais alguns quilos clandestinamente (na chamada candonga), muitos dos agricultores voltaram a descascar arroz nas azenhas, o que na altura era proibido. Se fossem apanhados pela G.N.R., tanto o dono do cereal como o moleiro eram multados e podiam mesmo ir a tribunal, além do arroz lhes ser apreendido. Se, em qualquer altura, desconfiassem que os guardas se estavam a aproximar, atiravam os sacos de arroz pela água da ribeira abaixo, para eles não encontrarem sinais da infração. Como os guardas, então, não podiam entrar nas habitações particulares durante a noite, era esta a altura mais escolhida para os moleiros descascarem o arroz. Era o Estado Novo, com a sua mão de ferro, a controlar tudo e todos.

Conta-se que, nessa altura da Guerra, Salazar dizia:

Da Guerra livro-vos eu

Da fome é que não

Cultivem arroz, mesmo à beira da fonte E batata nas vinhas

Assim encherão a adega e a cozinha”.

A partir da década de noventa, a cultura do arroz desapareceu por completo da nossa região, porque apesar de o seu cultivo estar já mais facilitado, como se viu atrás, mesmo assim não conseguia competir em preço com o arroz que aparecia, em quantidade, nos supermercados, que na altura começaram a invadir o nosso país, com todo o tipo de produtos, vindos dos quatro cantos do mundo.

BIBLIOGRAFIA

Ribeiro, Orlando, “Geografia de Portugal IV - A Vida Económica e Social”, edições Sá da Costa, Lisboa, 1987.

Agradecimento:

Agradeço a colaboração de Francisco Espadinha e de Cremilde Santos, que me relataram, com bastante minúcia, os muitos trâmites do cultivo do arroz.

IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e Vivências em Vias de Extinção: o cultivo do arroz no concelho de Abrantes. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 9. Nº 17 (2011), p. 17-22