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A D. Maria Luísa foi leiteira, em Abrantes, na sua juventude.

 

Por Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA

Logo ao nascer, é o leite, materno ou não, o nosso único alimento e é tão completo que nos dá os nutrientes suficientes para irmos crescendo, até que vão nascendo os primeiros dentes, que nos irão permitir mastigar outros alimentos já mais consistentes. Ele sozinho pode dar-nos a energia com que esboçamos os primeiros sorrisos, pronunciamos as primeiras palavras e damos os primeiros passos. Depois, outros sabores vão enriquecendo o nosso paladar, mas o leite continua a ser um alimento indispensável, pois é ele que muito contribui para repor o cálcio nos nossos ossos, que o tempo vai desgastando. Quando o fim da vida se aproxima, retoma outra vez o seu papel principal, pela facilidade com que é ingerido e digerido.

No nosso país, o leite de ovelhas e cabras é mais utilizado para o fabrico do queijo e é o de vaca que mais utilizamos para beber, simples ou não, ao pequeno-almoço, ou, quando nos apetece, a qualquer outra hora do dia. Encontramo-lo facilmente nos escaparates dos supermercados, devidamente pasteurizado e a preços relativamente acessíveis, com embalagens mais ou menos atrativas, enriquecido ou não com cálcio e vitaminas, mais ou menos desnatado, enfim para quase todos os gostos e necessidades. Hoje, para as gerações mais novas, ir comprar pacotes de leite ao supermercado, que se podem depois guardar em casa durante bastante tempo, porque o prazo de validade é alargado, é um gesto banal que faz parte do seu quotidiano. E o sabor do leite, há pouco tirado da vaquinha, é-lhes completamente estranho e, também, apenas uma reminiscência longínqua para os mais velhos. A este propósito, vi na televisão, há poucas semanas, uma reportagem que achei bastante interessante: no Porto, não me lembro que pessoa ou instituição, resolveu levar, para uma estação de Metro, uma vaca que era mesmo ali ordenhada, o leite fervido e distribuído às pessoas que passavam, simples ou acompanhado com café. Os entrevistados gostaram, acharam que o gosto e a consistência eram melhores e as crianças ficaram a saber de onde e como era retirado o leite que bebem todos os dias...

Mas o gesto simples de retirar os pacotes de leite dos escaparates do supermercado, não fazia parte da rotina dos jovens de outrora, daqueles que terão agora cinquenta, sessenta ou mais anos. Com efeito, até ao início da década de sessenta do século XX, as cidades e vilas do nosso país eram abastecidas por homens e mulheres que, de porta em porta, distribuíam o leite aos seus fregueses, na quantidade que cada um pretendia. Em Abrantes, este trabalho era feito quase exclusivamente por mulheres, mas noutros locais, como por exemplo em Lisboa, também os homens se encarregavam desta tarefa.

Nos anos cinquenta, havia várias leiteiras na nossa cidade, de que sobrevivem poucas, apenas algumas, que eram então bastante jovens e que ainda nos podem contar como era o seu nada fácil trabalho. A D. Maria Luísa é uma delas. Tem hoje oitenta e três anos e tem vivido sempre em Abrançalha de Baixo. Apesar da idade, tem uma memória fresca e recorda-se muito bem de como foi a sua vida enquanto leiteira. Não andou na escola (aprendeu a ler já adulta) pois a vida era muito difícil e era preciso começar a trabalhar cedo. Aos dez anos já andava no campo e aos treze começou a vir, com a mãe, vender leite para Abrantes, tendo andado nesta vida durante vinte anos.

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À esquerda, painel “Azulejos das Vacarias de Lisboa", da Pastelaria Anunciada, obra da Fábrica de Cerâmica Lusitânia. À direita, “0 leiteiro”, edição Mar Grape (col. Pregões de Lisboa)

Levantavam-se cedo, no Inverno ainda bem de noite, e, quer chovesse ou fizesse sol, saíam de casa às sete da manhã e, durante uma hora, com um cesto de vime à cabeça, onde levavam as bilhas com o leite, num total de quarenta a cinquenta litros, calcorreavam a pé os caminhos que as conduziam até Abrantes. Por volta das oito horas, chegavam ao mercado diário e, aí, o leite era pesado pelos fiscais da Câmara para ver se o peso era o correto ou se tinha sido adulterado com qualquer substância. Se alguém tivesse misturado água, o leite ficava mais leve e a fraude era fácil de detetar, mas, curiosamente, se misturassem urina, como esta tinha um peso aproximado ao do leite, já era mais difícil de detetar. Constava-se que havia pessoas, com tanta falta de escrúpulos, que o faziam, pese embora a repugnância que isso nos causa hoje. Verdade ou mentira, nunca o chegaremos a saber...

Depois do leite pesado, era passado para as bilhas da Câmara, que eram feitas de alumínio e tinham uma capacidade de dez litros. Uma vez cheias, eram lacradas e o líquido só podia sair delas por uma torneira, que se encontrava perto da base. Quando chegavam à porta das freguesas, tiravam as medidas que estavam devidamente aferidas e eram guardadas dentro de um recipiente de lata fechado, para estarem sempre em boas condições de higiene e, com elas, mediam a quantidade de leite que cada uma pretendia. Todo o material tinha de estar bem limpo e desinfetado, pois qualquer resíduo faria azedar o leite que nele iria ser depositado. Mesmo assim, em casa, o leite antes de ser ingerido, tinha de ser bem fervido, para o calor matar qualquer bactéria que o estivesse ainda a contaminar.

Depois de cumpridas as formalidades legais, que eram supervisionadas por um veterinário, na altura o Dr. Ismael Chambel, e de vestida a bata branca, que devia estar sempre bem limpa, a então jovem Luísa pegava nas pesadas vasilhas, uma em cada mão, e com elas percorria a cidade, pois as freguesas estavam dispersas e, enquanto umas residiam perto do mercado, outras viviam em cima, perto do largo de Santo António. Quando a faina terminava, por volta do meio-dia, punha novamente o cesto à cabeça, com as suas bilhas agora despejadas, e era mais outra hora de caminho para regressar a casa. No Inverno, ainda o trabalho se tornava mais duro, pois andava toda a manhã ao frio a à chuva, numa altura em que não havia capas de plástico ou botas de borracha. Protegia-se apenas com casacos e xailes de lã, que não impediam que chegasse a casa toda encharcada.

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Leiteiras com bilhas (quartas) de distribuição do leite

Mas, da parte da tarde, ainda havia muito que fazer. Era preciso lavar bem as bilhas, para que na manhã seguinte estivessem prontas a ser novamente utilizadas, e também ajudar a tratar dos animais que forneciam o leite.

No nosso concelho, especialmente na zona norte do Tejo, onde predomina a pequena propriedade, não era, então, costume as vacas andarem em liberdade a pastar nos campos. Os pequenos proprietários, que possuíam apenas uma ou duas vacas, tinham-nas fechadas em palheiros, onde eram alimentadas e limpas diariamente. Era preciso ceifar bastante erva, especialmente erva-de-água, semeada em terrenos alagadiços para crescer mais depressa e esta era depois misturada com palha e pasto seco, para o leite ficar mais grosso e saboroso. Na cama das vacas punha- -se caruma dos pinheiros, que se ia buscar ao mato, e tinha de estar sempre bem limpa para que os animais não ficassem sujos, quando se deitavam. Os dejetos, misturados com a caruma, eram depois removidos com forquilhas, arrumados em montes e, passado algum tempo, depois de tudo apodrecido, eram utilizados como estrume, na agricultura. Tudo era bem aproveitado e reciclado! O trato dos animais estava mais a cargo dos homens, mas as mulheres também ajudavam, especialmente na ceifa da erva.

O trabalho da ordenha, na altura manual, era feito duas vezes ao dia: à noite e de manhã, ou melhor de madrugada, por volta das cinco horas, pois esse leite, por vezes ainda morto, era já levado para a venda.

De início, a família de Maria Luísa tinha algumas vacas, depois foram vendidas e o leite, que ela e a mãe Adelina levavam para a venda, era todo comprado a outros pequenos proprietários.

Apesar de a vida ser tão difícil, hoje ainda sorri, ao lembrar-se desse tempo já distante e recorda, com saudade, as suas colegas: a ti Zefa, a Maria do Café, a ti Cristina.... Esta última vinha da Pucariça, mais longe ainda que a Abrançalha. Saía de casa, acompanhada duma filha, todos os dias à seis da manhã, depois de duas horas de caminho, carregadas com os cestos do leite, chegavam a Abrantes e, à tarde, era outro tanto tempo para chegar a casa. Verdadeiras heroínas estas mulheres!

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Medidas utilizadas para medir o leite

Aos trinta e três anos, Maria Luísa deixou este trabalho. Os anos sessenta vinham aí e a vida ia-se, a pouco e pouco, modificando. Passou a haver postos fixos de venda de leite onde os consumidores o iam comprar, depois, o leite em pó começou a divulgar-se, a seguir veio o leite engarrafado e, por fim, no dealbar da década de oitenta, o leite empacotado apareceu e passou a ganhar cada vez mais terreno, sobretudo quando, nos anos noventa, os supermercados entraram, de vez, no quotidiano das nossas vidas.

IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e vivências em vias de extinção - As leiteiras. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 9. Nº 18 (2011), p. 41-43