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Por Giulia Panfili - Trabalho desenvolvido no âmbito de um estágio profissional realizado na Palha de Abrantes, o qual serviu de base a uma tese de Mestrado em Antropologia Visual

            Falando da pesquisa sobre a tecelagem, em Abrantes, aconteceu as pessoas perguntarem- -me com curiosidade onde ia afinal encontrar- -me com as tecedeiras e como conseguiria abordá-las. Avançava uma explicação simples, até banal: iria perguntar nas aldeias, ao encontro das pessoas, tentar conseguir a confiança delas, um dia de cada vez. Ficavam com dúvidas: a minha resposta não encaixava na ideia comum e imperante de falta de confiança e disponibilidade das pessoas daqueles lugares profundos e escondidos. Quase com sentimento de compaixão, sublinhavam a inclinação das pessoas em estar fechadas, fora do contacto com os outros e com medo, constantemente alimentado pelas notícias de todos os dias. Foi também nesses primeiros contactos em Abrantes, que me caracterizaram a região. Falaram-me em identidade ou melhor da sua “falta de identidade”, recorrendo à história e geografia para me oferecerem uma explicação: pela sua localização - a cidade surge num outeiro ao pé do rio Tejo, no seu curso médio-interior de Portugal onde se encontram a lezíria ribatejana, a charneca alentejana e as serranias da Beira - desempenhou um lugar estratégico e de passagem, onde os transportes civis e militares eram facilitados e em ligação direta com Lisboa. Por estas características, segundo alguns, Abrantes não desenvolveu particulares formas de “tradição” ou, provavelmente, não foi capaz de valorizá-las. Assim falando, as pessoas avançavam conselhos e caminhos possíveis e interessantes a seguir na pesquisa etnográfica, oferecendo-me uma primeira perceção do território abrantino ou, melhor, das imagens, perspetivas e representações construídas acerca dele, bem como considerações acerca do que a antropologia possa estudar. Algumas pessoas identificaram antropologia e arqueologia, outras reconheceram no património material e tradicional o seu estrito campo de interesse, outras ainda interpretaram a antropologia como registo do que parece chegar ao fim.

“Não é conhecida por grandes tradições ou artesanato local”; “Há alguns restos da época romana descobertos”; “Deverias ir ao encontro dos Ranchos Folclóricos”; “Efetivamente muitas coisas estão a desaparecer”. Estas interpretações parecem assentar num contexto de urgência pelas transformações que se observam ou anteveem - parecido com aquele que se formou a partir de finais dos anos quarenta do século passado, com os grupos de investigadores que haviam de fundar mais tarde o Museu de Etnologia: Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Benjamin Pereira. Recolher, lembrar, registar, arquivar o saber e o acontecer torna-se quase uma ânsia, agudizada pelo sentimento do dever e da responsabilidade de cada um em não perder o que é percebido como estando em dúvida e em perigo de desaparecer, como se os eventos a acontecer no presente pertencessem já ao passado, no atual processo de aceleração da história. A própria vida torna-se cada vez mais lugar de memória e informação, vestida de um tom nostálgico de um passado já profundamente transformado ou que “quase chegou ao fim”. Mas o que pessoalmente procurava era antes afirmar a vida e não registar os seus vestígios - “hoje a tecelagem manual constitui apenas uma reminiscência do passado” - com base na convicção que as novas tecnologias se desenvolvem em torno das competências alcançadas e transmitidas. A tecelagem não está parada, congelada ou fixa, mas está com vida e na vida. É propriamente parte da vida das pessoas, das suas atividades quotidianas, e como tal está envolvida no tempo e no espaço, transforma-se e adapta-se, num movimento contínuo. Trata-se, pois, da vida humana como da vida na tecelagem, que para ser sentida e percebida deve ser vivida.

Aldeia por aldeia - a pé, mochila às costas, de boleia, de transportes públicos - encontrei as tecedeiras, perguntando às pessoas nos cafés se teciam, se tinham um tear em casa ou se conheciam alguém que tecesse ou tivesse um tear em casa. Tece-se em casa, no concelho de Abrantes não há uma organização ou um grupo de trabalho de tecedeiras - apenas no concelho de Sardoal, em Alcaravela, há a Cooperativa “Artelinho” - e na cidade ninguém trabalha ao tear. No centro histórico da cidade de Abrantes há uma loja de lã e fios, com cores vivas na montra a chamar a atenção e uma outra, mais cinzenta, onde se dão aulas de bordados e arraiolos todas as quartas e sábados, e é tudo.

No fim do Verão, partindo de Fontes - onde me deixou o autocarro com saída de Abrantes - pelo caminho junto à albufeira do rio Zêzere, encontrei a Laurinda. Estamos perto do Souto, aldeia que dá o nome a uma freguesia, na extremidade norte do Concelho de Abrantes. Estamos na área mais declivosa e elevada do Concelho de Abrantes, com uma altitude de 200 metros, inclinada para o rio Zêzere. É uma área dominada por eucaliptos, só aqui e ali há pinheiros e oliveiras, no meio de vales sinuosos, escavados pelos cursos da água do rio que assume a forma duma lagoa por causa da construção da barragem do Castelo de Bode. É a mais chuvosa e fria da zona do concelho, onde o Inverno é mais rigoroso e longo. Ao fundo da aldeia, numa estrada que começa atrás da Igreja, passa pela capela de S. António e acaba numa vista panorâmica sobre o mato e o rio, encontra-se uma pequena cabana em madeira, ao lado duma casa, pequena também. Olhando pela pequena janela de frente para a rua, mãos enrugadas, bronzeadas e fortes não deixam de estar concentradas, apesar da penumbra. Surpreendidos no momento mais delicado, os dedos rápidos e um pouco torcidos da mão direita movem-se entre um fio e um outro, acompanhados pelo som sibilante da voz e pela mão esquerda, a sustentar e endereçar uma das agulhas. O dedo indicador separa rapidamente os fios, marcando como uma pausa entre as notas musicais, onde a agulha pode passar para levantar e fixar o fio. Cada fio é tão fundamental quanto cada espaço entre eles para compor o resultado final, sem dissonâncias. Duma extremidade até a outra, de direita à esquerda, de esquerda à direita, cruzam-se os fios, juntam-se as teias, forma-se o tecido e aparece o desenho. Cada movimento e gesto é pensado e dirigido para isto, num conjunto. Aí, na velha, pequena e escura dependência ao lado da casa, está a Laurinda ao tear e através da janela convida-me a entrar. A porta está aberta. No interior, a pouca, mas suficiente luz natural mostra as humildes condições da cabana, feita completamente com travessas de madeira, às quais está solidamente travado o tear, seguro e fixo ao bater do pente. Aquele pequeno espaço parece comportar consigo anos de vida, de trabalho, de histórias, aos quais se agarraram aranhas e pó. Imagens religiosas de velhos calendários, entre os quais um que ostenta “A Funerária”, estão penduradas nas travessas de madeira envelhecida, como se fossem fetiches supersticiosos. Ficando ao lado dela, algum tempo, quase sem falar para não a distrair, comecei a perceber como funciona um tear e quanta concentração este trabalho precisa.

De bastante complexidade é descrever de forma linear os vários passos que se sucedem e sobrepõem no ato de tecer, que envolve no seu movimento tanto o corpo do tear quanto o da pessoa. Tal como uma partitura é gerada por pautas musicais ou um texto por séries de letras, o tecido é criado por linhas, por fios entrelaçados segundo regras precisas. A tecedeira sentada ao tear de pedal ou de pente liso, tem à sua frente a chamada teia ou urdidura - duas séries, par e ímpar, de fios de algodão, todos enfiados em liços adequadamente ligados aos pedais por meio de cordas. A urdidura, assim como um pentagrama, constitui a base para a composição.

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Laurinda tecedeira do Souto

Ao pressionar um pedal com um pé, descem os fios de um liço, abrindo assim a urdidura, onde a tecedeira insere o fio de trama, de cordão, mais gordo - de maior diâmetro. Pressionando o outro pedal, invertem-se os liços que alternam de lugar, o que era acima vai abaixo e vice-versa, bloqueando a trama. O fio de cordão é abordado com o pente e em seguida fortemente esmagado, batido, até ser fixado completamente no enredo. Trum, trum. Isto é o que gera aquele som peculiar e intenso. Trum, trum. E para que nada se destrua no bater forte, dois paus de madeira montados no tecido, os tempereiros, travam o pente - quando batem - e funcionam como apoio para as mãos - quando tecem. Assim a tecedeira trabalha cuidadosamente o tecido, porção por porção, seguindo o desenho. Passa os fios dum lado e do outro, enrolados numa canela, inserida por sua vez na lançadeira - madeira côncava em forma de pequeno barco - para poder passar os fios através da teia, com mais facilidade. Põe em relevo o cordão, ponto por ponto, por meio das agulhas. Num recanto ao seu lado, tem o desenho, tirado da revista de renda, com aqueles tons brancos e azuis bem à vista, quando passa pela tabacaria da cidade. Ao transpor o desenho para o tear, a tecedeira estabelece uma unidade de medida: a cada ponto a cruz na revista correspondem dois ou três pontos de cordão na tecelagem. É a alternância de fios de cordão - mais gordo, e de algodão, linho, menos frequentemente lã - mais fino, a criar o desenho.

Outro tipo de trabalho é aquele com trapos, um trabalho menos elaborado, mais económico e bastante mais rápido, sendo basicamente o entrelaçamento de tiras de panos. Foi na freguesia da Aldeia do Mato - a oeste da freguesia do Souto e mais abaixo seguindo o curso do rio - que vi trabalhar com trapos de vestuário. A senhora Hermínia, a tecedeira da Carreira do Mato, cuidadosamente corta e guarda numa cesta pedaços de vestidos inutilizados e trazidos pelas pessoas, para serem “reciclados” em tapetes e passadeiras.

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A Hermínia, com um sorriso doce e expressivo, preocupa-se muito ao fazer-me entrar e ao ser fotografada na sua casa minuciosamente arrumada e limpa. O tear da Hermínia está numa sala luminosa e branca quase fresca de pintura, naquela que devia ser a garagem e que agora é a sala para comer e ver televisão, ao lado da cozinha. Ao lado do tear, a urdideira, fixa à parede da sala, tudo numa ordem precisa. Indicando-me as botas que calça para trabalhar a terra, diz-me não ter muito tempo para trabalhar ao tear, porque de manhã cedo cuida da horta, juntamente com o marido.

Assim como noutros tempos, as tecedeiras dedicam-se fundamentalmente ao trabalho doméstico e à agricultura, sem deixar, porém, de sentar-se ao tear, trabalhando “aos bocados”. Os homens iam para Lisboa para trabalhar, sobretudo na construção e as mulheres ficavam na aldeia, todos os dias trabalhavam no campo. Só iam ao tear à noite. Antigamente era uma grande área florestal, de pinheiros e castanheiros - há seis anos ainda havia poucos eucaliptos. A madeira era levada à cabeça pelas raparigas até ao rio - uma autêntica estrada que a madeira percorria, flutuando sobre a água, antes da barragem do Castelo de Bode formar a grande albufeira. A jusante os madeireiros enviavam homens para a beira do rio para colocar umas correntes que retinham a madeira em lugares estratégicos. A etapa final da viagem levava-as para as serrações da Praia do Ribatejo e Constância.

Naquela altura havia muitas tecedeiras, os tecidos todos - as mantas para a cama, o enxoval, as ceroulas para os homens - eram feitos à mão. Havia muitos clientes também, embora não suficientes para ganhara vida com a tecelagem. Igualmente como agora, vendiam os trabalhos diretamente às pessoas particulares. As tecedeiras, portanto, trabalhavam por encomenda, isso também porque não podiam trabalhar o tempo todo ao tear. Iam a pé, passando pela charneca, até à estação de comboio em Abrantes, ou de barco para o outro lado do rio, para buscar o algodão, levar as encomendas e receber as novas. A senhora Aurélia, outra tecedeira do Souto, por exemplo, dedicou-se à tecelagem desde muito nova, teceu muito, os tecidos dela eram vendidos para fora, para além do rio, do lado de Tomar e dos seus arredores, onde ia todos os meses de barco. Costumava trabalhar ao tear à noite e de madrugada, com a luz acesa, enquanto durante o dia trabalhava no campo. Este ritmo mudou com o casamento e os filhos, com a agricultura a dar lugar ao mato, enfim com casas e terrenos cultivados a serem cobertos pela albufeira do rio Zêzere. Lembram-se que na aldeia do Souto havia aqui um homem que trabalhava para as tecedeiras, tingia a lá e o linho que vinham em bruto. Produzia-se muito linho, antes cultivado e macerado pela água do rio, depois era transformado em fio. Fiava-se a lã também, pois havia muitos rebanhos na região.

Mais recentemente, nos anos sessenta, estabeleceu-se ali um tecelão, com uma pequena indústria artesanal de grandes teares todos manuais. O senhor, que vinha de Tomar e era do ramo da tecelagem, achou ter encontrado no Souto o abrigo necessário para a sua empresa de tecelagem, que contava com teares adaptados para tecidos de um pano só, inteiros - as peças que se faziam em casa eram de três ou quatro panos, sucessivamente ligados. Para as pessoas desempregadas foram feitas formações de tecelagem, mas aconteceu que muitas daquelas nunca chegaram a tecer, assim que terminou o projeto. A senhora lida ensinou a tecelagem no Carvalhal, em Abrantes e na sua casa, no Pego. Hoje em dia, nenhuma das alunas continua a trabalhar ao tear, apesar de terem aprendido. A lida diz ter sempre vivido do seu tear - apesar de agora não ser capaz de trabalhar nele por causa das dores na coluna. Descreveu-me a tecelagem como atividade em que “realmente é preciso trabalhar - o que já ninguém quer pois é um trabalho que requer muitas horas de concentração - não dá para ir às 10 horas beber a bica, sair às 4 para estar lá sentada no café uma hora ou duas. É um trabalho que dá dinheiro só se se trabalhar e bem, é diferente dos empregos de hoje em que se chega fim do mês e se têm o salário.”

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Assim como no Souto, em Alferrarede Velha que fica a poucos quilómetros de Abrantes, teve experiência de trabalho assalariado na tecelagem. A tecedeira Maria mostrou-me as fotografias da oficina das tecedeiras e contou- -me ter lá trabalhado, juntamente com o marido que “também era da arte”. Havia teares de oitenta centímetros de comprimento e até maiores, de dois metros, alguns dos quais compraram a um senhor de Bemposta que queria desfazer-se dos teares para se dedicar à fotografia. Aliás foi ele próprio a tirar as fotografias do álbum familiar. Naquela oficina, além do marido da Maria, eram mulheres a trabalhar, entre as quais a sua sogra também - que até ensinou a tecelagem aos professores de trabalhos manuais na Escola Industrial. Entretanto a oficina fechou, já nenhuma delas trabalha, algumas deixaram o ofício depois de casar. A senhora Maria trabalhou 40 anos na tecelagem e para ela a tecelagem é um trabalho que requer concentração e muito esforço, mas que não presta para quem quer um trabalho com uma caneta e uma secretária, ou para quem se quer estabelecer e enriquecer. Com entusiasmo junto a rancor - tem problemas nos joelhos e foi operada às mãos - lembra quando participou nas feiras anuais do artesanato local que decorriam no mês de junho em Abrantes. Convidados pelo Presidente da Câmara, todos os anos iam representar a tecelagem, junto com as outras pessoas que trabalhavam em vários ofícios. Ainda depois ser operada esteve a trabalhar no ATL da Câmara de Abrantes, ao pé do castelo, onde era a creche para as crianças dos funcionários da Câmara.

Outro caso foi em Bioucas - uma aldeia a pouco mais de dois quilómetros do Souto e vinte de Abrantes, emoldurada pelo verde da vegetação e pelas águas da albufeira4. Foi aí que encontrei abrigo. Arranjei uma casa para poder ficar de vez enquanto, podendo contar com o bom acolhimento que recebia das pessoas. O lugar da pesquisa foi-se oferecendo e definindo quase naturalmente, por escolha ou reconhecimento quase inconsciente das várias partes. Desde o primeiro encontro, a senhora Carmelinda fez-me entrar em casa sem hesitações. Uma vez explicado que a Paula do café me tinha indicado a sua casa - convidou-me a tomar o pequeno-almoço na cozinha, com pão caseiro, queijo e leite. Sentadas à ponta duma grande mesa retangular em madeira, que ocupava por inteiro a antiga cozinha com muitas cores e mobília em miniatura, Carmelinda explicou-me que só depois de ter cuidado das galinhas e da horta é que se ia pôr ao tear, para trabalhar até antes do almoço. O tear dela fica numa dependência ao lado, é muito antigo, tem mais de 120 anos, é de castanho com órgãos de pinho. Indicou-me as peças do tear - as mesas, as travessas, os pegões, o órgão, os compustores ou pauzinhos, o travador, os liços, os fradinhos, a roleta ou rodinha, os braços da queixa, a queixa, o pente, os tempereiros, o peso, os trambulhos, as apinhas que são três, só para tecidos que levam um bordado feito com os pés ao tear, não ficando totalmente liso. Explica-me que os teares se faziam de castanho, de cerejeira e de choupo, normalmente pelo carpinteiro. Montada no tear estava uma colcha, com o motivo de serradura na barra. Com a sua mãe é que aprendeu a tecer ao tear - costumava-se dizer que filha de mãe tecedeira, era quase certo ser tecedeira também. Contou-me da sua mãe, que todos conheciam por ser sorridente e de bom coração, da sua família, do seu filho, dos netos, das alegrias e dos sofrimentos. Quando vai acabar a colcha não sabe dizer, não é um trabalho onde se possa contabilizar o tempo ou ter pressa - “acabar é quando for, quando tiver pronta, já não posso correr a foguetes”. Uma colcha geralmente leva vinte ou mais novelos de algodão - puro algodão Águia 4 - que devem ser enrolados nas canelas, com o chamado caneleiro, assim como a Carmelinda estava a fazer. Confidenciou-me gostar de ouvir o que eu ia dizer sobre elas - “aquela é toda gente atrasada”, imaginava o que eu ia dizer - gostava de estar lá ou ser uma mosca.

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Idalina, tecedeira do Bioucas

Uma vez acabada a colcha, talvez para o Natal, precisa tirar a urdidura e voltar a urdir para um novo trabalho. Urdir é “uma operação extremamente complexa e demorada”, um trabalho de muita paciência e atenção. Com a tabuleta na mão enfia-se em cada buraco um dos fios, que em conjunto vão ser postos na urdideira, segundo a disposição necessária para a tecelagem que se quer realizar no tear. Aos pés da tecedeira, no chão, está a tarqueira, uma caixa de madeira com doze aberturas, um para cada novelo de fio. A moldura desta imagem toda é a urdideira: barrotes de madeira com vários tornos cravados, onde se definem as dimensões da teia que se quer urdir. O barrote horizontal possui na sua extremidade três tornos cravados, onde se marca a cruz do tear: com os dedos dividem-se os fios em par e ímpar, para depois serem alternados, enrolando-os ao redor do primeiro torno e cruzando-os nos dois sucessivos. A cruz dos cadilhos serve para estabelecer a largura requerida da teia, marca-se em três dos tornos situados na parte inferior do barrote vertical.

“Jesus ajuda-me aqui que eu preciso que tu me ajudes. Estes são trabalhos com muita responsabilidade, é fundamental tomar conta de todos os fios. Virgem pura tua ternura. Quando alguns fios se põem para o lado torto, não vai bem, tem que se parar, arranjar e voltar a começar. Nossa Senhora mãe de Jesus, olha bem por nós. Estou a ver tão mal, tão mal, que nem vejo o que estou a fazer, se ficou bem ou se ficou mal.”

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Sempre em Bioucas, há a Idalina a tecer em casa. Na sua casa, mostrou-me os tecidos e as fotografias da família, dos dois irmãos militares que estiveram em Moçambique e Angola. Com mais pressa mostrou-me os dois teares - um devia ser utilizado por uma senhora que queria aprender, o outro protegido das moscas por um pano, é um tear mais antigo, de centenas de anos, pertencente já a outras mulheres. Nas travessas deste último tear notam-se, apesar de serem pequenas, cruzes em vermelho, pintadas há mais de cinquenta ou sessenta anos por um homem, “para não embruxar”. Indicou-me os utensílios - a dobadoura para dobar o algodão, a roca para fiar o linho, o sarilho, o fuso, os pentes antigos e o restelo para pôr a teia no tear8. Para montar a urdidura ou teia no tear, é preciso chamar pelo menos outras duas pessoas competentes: uma sentada no chão por baixo dos fios a puxar, uma outra a enrolar o pau do órgão do tear, enquanto a tecedeira esta a concertar para que tudo fique bem enrolado.

- “Jesus. Espera aí. No nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ámen. Que o Senhor me ajude e me abençoe o meu trabalho e me guie os meus passos e me ilumine.” -

+ “O sol esta a faltar, agora que te ilumina.” +

 = “Tem a eletricidade acesa.” =

+ “Olha que a gente tem que dizer alguma coisa, mulher. Que se a gente não diz nada, já é mau.” +

- “Se a gente não diz nada, noutro dia já cheiramos mal.” -

= “Cada vez é pior agora.” =

Montada a teia no tear, uma outra operação está para vir. Cruzando os fios forma-se o tecido e aparece o desenho. Segundo um processo similar, este texto quer oferecer imagens várias e interligadas da tecelagem no concelho de Abrantes. Quase como mosaico, cada peça singular tenta vivenciar perceções para que, juntas, possam formar uma imagem mais ampla que reviva os acontecimentos quase silenciosos que se foram desenrolando ao longo da minha estadia abrantina. Ainda por cima, porém, este texto quer oferecer-se como uma teia para que as pessoas possam fruir dela para criar outros tecidos e desenhos.

IN: PANFILI, Giulia – O vaivém do tear. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 10. Nº 20 (2012), p. 25-31