profissoes condutor

Por Teresa Aparício - Professora, membro do CEHLA.

Vai-te carta, vai-te carta

Por cima deste jardim

Vai dizer ao meu amor

Que não se esqueça de mim

Ó meu amor lá de longe

Perde um dia e vem-me ver

Porque as cartas são papéis

Para mim que não sei ler

Ó meu amor escreve, escreve

Cartas a duas a duas

Mesmo que eu não saiba ler

Quero ter notícias tuas

(Quadras populares)

Desde que foi inventada a escrita, por volta do terceiro milénio antes de Cristo, que o Homem começou a deixar as suas mensagens em placas de argila ou pedras de monumentos, desafiando o tempo e lançando-se mais perto da eternidade, como era seu desejo. Mas os grandes deste mundo começaram também, deste cedo, a sentir necessidade de enviar as suas mensagens à distância, por razões de guerra ou de negócios, começando então a surgir suportes móveis, mais leves e adequados a esse fim, como finas plaquinhas de argila ou metal, e depois o papiro e o pergaminho. Governantes persas, egípcios e gregos, já tinham correios ao seu serviço, mas foram os romanos o povo da antiguidade que montou um serviço de correios mais organizado, apoiado por uma boa rede de estradas. Ao longo das principais vias, foram montados postos de muda de cavalos e por vezes também de homens, que seguiam a pé, a cavalo, ou até de carruagem, conforme as distâncias, de modo a tornar este serviço o mais rápido e eficiente possível, mas não estava aberto a particulares, apenas se destinava ao correio oficial do império.

Depois da queda do Império Romano, este serviço, bem organizado, acompanhou-o na derrocada e acabou por ser desmantelado. Na Idade Média, os reis continuaram a enviar os seus mensageiros por essa Europa fora, para negociarem tratados e casamentos. Depois, também algumas universidades sentiram necessidade de estabelecer serviços que pusessem em contacto os estudantes com os seus familiares, de quem dependiam economicamente. Mas estes serviços não eram muito organizados e, por isso, eram também demorados e pouco eficientes. A população em geral usava muito os almocreves, frades mendicantes e até pedintes para levarem as suas mensagens, muitas vezes apenas orais, a conhecidos ou familiares que se encontravam distantes.

No período dos Descobrimentos, com o desenvolvimento das relações comerciais, ressurgiu a necessidade de os países manterem entre si um serviço regular e seguro de correspondência, não podendo os estados ficar indiferentes a este facto, pois a troca de mensagens era necessária para uma circulação eficaz das riquezas, que também os iria favorecer. Assim, em França, em 1464, Luís XI, estabeleceu, de quatro em quatro léguas, ao longo das principais estradas de França, postos de mudas, um pouco à maneira dos romanos. Estes postos estavam sob a direção de um chefe, “o postilhão”, que tinha a seu cargo a substituição dos cavalos e o controlo da correspondência, mas só em 1622 estes serviços passaram aceitar também correspondência particular.

Só nos séculos XVIII e XIX, com o grande incremento do comércio, resultante do aumento da produção em virtude da Revolução Industrial e do desenvolvimento dos meios de transporte, começaram a aparecer serviços regulares de correios abertos a todos.

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As fotografias desta página e da seguinte pertencem ao acervo da Fundação Portuguesa de Comunicações, coleção temática "Transportes - Ambulâncias Postais Ferroviárias".

O primeiro serviço regular de mala-posta, isto é, de transporte regular de passageiros e malas de correio, em carruagens especialmente destinadas a esse fim e com um horário fixo de partida e de chegada, surgiu em Inglaterra, em 1784, entre Londres e Bath. Em breve este serviço se vulgarizou em toda a Inglaterra e no resto da Europa.

O primeiro serviço regular de correio, por caminho-de-ferro, nas chamadas ambulâncias postais foi estabelecido em 1830, também em Inglaterra, entre Manchester e Liverpool. Em 1838, os serviços postais ingleses foram autorizados, por lei, a utilizar este meio mais rápido de locomoção e a companhia de caminhos-de-ferro obrigada a fornecer uma carruagem para a receção, divisão e entrega de correspondência, mediante “uma remuneração razoável”.

Em 1840, surgiu, igualmente no Reino Unido, o primeiro selo adesivo, novidade que por ser prática, rapidamente se espalhou, passando o serviço dos correios a ser pago pelo emissor e não pelo recetor, como era habitual até então. Em Portugal, o selo fiscal foi introduzido por lei de 27/10/1852, portanto doze anos após ter surgido em Inglaterra.

Em 1869, os correios austríacos introduziram, pela primeira vez, um modelo de cartão com medidas normalizadas, onde se escrevia de um lado a direção e no verso as notícias. Era o postal dos correios, barato e prático, que rapidamente se vulgarizou, embora não oferecesse condições de sigilo, como acontecia com a correspondência fechada.

A partir de 1894, começaram a surgir os primeiros bilhetes-postais ilustrados que, além de contribuírem para as receitas do Estado, passaram também a constituir uma valiosa propaganda turística.

Em Portugal, o primeiro documento oficial acerca dos serviços dos correios data de 1520, no reinado de D. Manuel I, e refere-se à nomeação de Luís Homem, cavaleiro da sua casa, como primeiro correio-mor do reino. Esta ordem real foi emitida, conforme o sistema adotado por Francisco de Taxis, correio-mor dos Habsburgos, depreendendo- -se daqui que o nosso rei seguiu o exemplo de outros estados europeus.

O correio-mor residia em Lisboa e tinha como obrigações ajustar com os interessados o preço do porte da correspondência e estabeleceras estações de muda dos cavalos (as postas), nos locais que se julgassem adequados. Os homens que trabalhavam nos serviços dos correios tinham de prestar juramento de sigilo e fidelidade e não podiam transportar outra correspondência senão a indicada pelo correio-mor. Tinham também alguns privilégios, como o de poderem usar espada e as armas reais no vestuário e não podiam ser presos em viagem.

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Mas foi só nos fins do século XVIII, que os serviços dos correios começaram a estar abertos a todos. Em 1833, iniciou-se a primeira distribuição domiciliária e em 1852 foi estabelecida a primeira mala-posta entre Lisboa e Porto. O correio partia de Lisboa, de barco, até ao Carregado, de onde seguia em carruagem própria até ao Porto. Passava por vinte e três estações e o percurso durava 34 horas, incluindo-se neste horário o tempo necessário para as mudas de cavalos e refeições para os passageiros e pessoal de serviço. Chegava ao Porto por volta das 6 horas da manhã.

Foi no período político denominado “Regeneração” que os correios tiveram um maior incremento. Em 1852, o governo deu instruções para o regular serviço de correspondência entre Aldeia Galega e Badajoz, num total de 186 quilómetros. Em 1855, fundou-se a Companhia de Mala-postas, com o objetivo de estabelecer carruagens para muitos outros pontos do país e, dez anos passados, já eram inaugurados estes serviços entre várias pequenas localidades do Minho e do Douro.

Foi também neste período, que as relações entre os serviços de correios e os comboios tiveram um grande desenvolvimento. Foi sob a ação de Fontes Pereira de Melo que os primeiros caminhos-de-ferro começaram a estender-se pelo país, mediante o recurso a materiais e a companhias estrangeiras. Alargou-se também a rede de estradas e fez- -se a articulação destas com os comboios.

Com o desenvolvimento dos serviços dos correios, começaram a aparecer muitos pequenos funcionários, encarregados de ir buscar a correspondência às mala-postas e aos comboios e fazer depois a sua distribuição pelas pequenas povoações do interior do país, onde a maioria da população ainda era analfabeta.

Júlio Dinis, conhecido escritor que viveu no norte do país, por esta época, retrata a chegada do correio a uma aldeia, numa das suas obras mais conhecidas, “A Morgadinha dos Canaviais”, escrita precisamente na década de sessenta do século XIX, quando se deu, em Portugal, um grande incremento na implantação dos serviços dos correios. Relata de forma muito viva esses momentos e as emoções expressas nos rostos das pessoas, que, quando ainda não havia distribuição domiciliária, iam a um pequeno posto receber a correspondência. Transcrevo um pequeno extrato para quem não conheça o livro, ou dele já se esqueceu:

“A porta da casa estava muita gente parada: mulheres, velhos, moços, crianças, todos aparentemente aguardando alguma coisa ou alguém do lado de uma das ruas, que vinha terminar no largo e para o qual se dirigiam todos os olhares.

Henrique aproximou-se desta casa, com alguma curiosidade que logo satisfez, vendo uma tabuleta suspensa no alto da janela com a seguinte e pomposa inscrição “Repartição dos Correios” e como a confirmar o dístico, via-se um corte feito na porta para a receção das cartas (...)

Consistia esta repartição numa loja, apenas mobilada com um banco de pinho e dividido por um mostrador, atrás do qual se alojava todo o pessoal de serviço, isto é, um homem por junto e este era o sr. Bento Pertunhas.

(...) Chegou enfim o homem das cartas e a custo conseguiu romper até ao mostrador, onde pousou a mala. O “diretor” depois de tossir, de as soar-se, de suspirar e de limpar os óculos com umas delongas que formavam com a ansiedade do povo um contraste desesperador, abriu fleumaticamente o saco e extraiu um não muito volumoso maço de cartas, que despejou num cesto de vime.

Era digno do pincel de um artista aquele grupo de fisionomias que seguiam ávidas todos os movimentos de mestre Bento. Há de facto poucas cenas tão animadas como a da chegada do correio a uma terra pequena. Durante a leitura do sobrescrito, feita em voz alta pelo empregado, um observador que estudasse atento as impressões que essa leitura operava nos semblantes que avidamente escutavam, como que viam levantar-se uma ponta da cortina corrida a ocultar-nos as cenas da tragédia e da comedia da vida de cada um. (...) A cada nome proferido, erguia-se quase sempre uma voz, às vezes um grito e, mesmo que senão se visse, alvoroçava-se um coração. Outros, os não nomeados ainda, olhavam com ansiedade para o maço que diminuía e cada vez mais se lhes assombrava o semblante.”

Os sentimentos são tão bem observados que, certamente, a descrição se baseia numa cena da vida real, observada pelo escritor, numa altura em que os correios eram ainda uma novidade para o povo das aldeias.

Em Abrantes, antes da construção do novo edifício, no início da década de cinquenta, os correios funcionaram num edifício, já demolido há muito e que se situava à entrada da Rua das Caídas da Rainha, do lado direito, quando se desce. Por esse motivo, a rua ainda é conhecida, entre a população mais idosa, por Rua do Correio Velho.

Já são poucas as pessoas, ainda vivas, que fizeram o trabalho de ir buscar o correio aos comboios e depois levá-lo até ao pequeno posto, donde era depois distribuído pelos diversos lugares. Encontrei uma dessas pessoas em S. Facundo, donde é natural e ainda reside e já conta, hoje, a bonita idade de 91 anos. Chama- -se António Manuel Bispo e foi um homem que fez do correio não só uma profissão, mas toda uma vida. “Nasceram-lhe os dentes” como se costuma dizer, já a contactar com cartas e encomendas, pois o seu pai era funcionário no posto de S. Facundo e era neste que residia com a família. Era condutor de malas, como se dizia na altura, pois era ele que ia ao comboio, a Bemposta, levar e trazer a correspondência para o posto, onde era dividida, para depois ser distribuída pelos diversos lugares. Este trabalho que era contratado por arrematação aos correios centrais, por um período de dois ou três anos, podendo depois ser renovado. Como era um trabalho difícil, não havia concorrência a disputar-lhe o lugar. 0 filho, ainda criança de onze, doze anos já ajudava o pai no trabalho do correio. Saía de casa por volta das nove da manhã e ia a pé, sozinho, à Esteveira, Vale de Zebrinho, Barrada, enfim aos vários lugares da freguesia, levar e buscar a correspondência, centralizada em pequenos comércios de fácil acesso e onde também se encontrava a caixa do correio. 0 pai, no posto, fazia o trabalho que se seguia: distribuía a correspondência por pequenos sacos de lona, consoante o destino e ia levá-la ao comboio, a Bemposta. Os dois ganhavam então vinte e nove tostões pelo trabalho de um dia e de uma noite, isto aí pela década de trinta do século XX.

Quando o pai, devido à idade, deixou de poder fazer este trabalho, foi ele, então já adulto, que o substituiu e eram já outras pessoas que, dos vários lugares, vinham trazer a correspondência ao posto. Todos os dias, a princípio a pé (só mais tarde começou a utilizar, primeiro uma bicicleta a pedais e depois uma motorizada) percorria a distância que separa S. Facundo de Bemposta, carregado com os sacos da correspondência e com as encomendas. Era cerca de uma hora a pé, muitas vezes de noite e por estradas que no Inverno estavam cheias de água e de lama e, como havia poucas pontes, tinha de atravessar os cursos de água a vau, ficando todo molhado e cheio de frio. Vidas difíceis, as destes tempos!

O sr. António ia levar e buscar correspondência ao comboio das onze da noite que vinha de Elvas e se dirigia para Lisboa, mas não ia logo para casa, pois tinha de esperar pelo das três da manhã que fazia o trajeto contrário, de Lisboa a Elvas. Neste intervalo, comia qualquer coisa e bebia um copito numa tasca próxima e depois dormia um pouco numa cama que havia num departamento da estação. Regressava em plena noite e era mais uma hora de caminho até a casa. Levava a correspondência às costas e, o que era mais difícil, as encomendas postais, que às vezes eram pesadas. Quando o peso era muito, a mulher ia com ele e chegaram a transportar, os dois, mais de cem quilos. Quando não podiam mesmo, tinham de alugar um táxi, que na altura era caro, e pagá-lo do seu bolso. A época mais difícil foi na altura da Guerra do Ultramar, sobretudo antes do Natal, quando havia muitas encomendas, que os familiares enviavam aos rapazes que combatiam em África.

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António Bispo e a esposa a transportar o correio.

Na foto da direita, documento respeitante a reinstalação do Correio de S Facundo, em 1961

Por vezes também trazia dinheiro, enviado por via postal e que era destinado a fazer pagamentos numa firma inglesa, que ali perto se dedicava ao comércio da cortiça. Pelo caminho havia malteses que dormiam em barracões e às vezes ouvia-os a rir, a falar e a fazerem as suas patuscadas, mas nunca foi assaltado. O que o assustava mais eram os lobos que, sobretudo no Inverno, ouvia ao longe a uivar.

Quando o sr. António era jovem e ainda não havia telégrafo em S. Facundo, a entrega dos telegramas era outra tarefa que não era fácil. Só no correio de Abrantes havia telégrafo, pelo que daqui ia uma mulher, a pé, até S. Facundo levá-los ao posto dos correios. Às vezes, sobretudo no Inverno, quando os dias eram pequenos, tinha medo de regressar sozinha e então dormia lá mesmo no posto. Era o sr. António, então ainda menino, ou a mãe, quando ele não podia, que iam levar os telegramas ao seu destino, que muitas vezes não era perto. Iam entregá-los a pé, fosse lá a que horas fosse, a lugares que ficavam distantes, às vezes oito e nove quilómetros como era o caso de Vale de Água.

A correspondência deixou de ser transportada nos comboios no fim dos anos sessenta, depois disso passou a vir em carrinhas que a entregava diretamente nos postos do correio e, foi também por essa altura, que os carteiros começaram a distribuí-la ao domicílio, pelos diferentes lugares da freguesia.

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À esquerda, António Manuel Bispo, em 2012, e edifício do primeiro posto de Correios de S Facundo. Ao lado, edifício do segundo posto de Correios de S Facundo.

O velho posto, onde o senhor António viveu na sua infância, ainda lá está de pé, mas foi desativado em 1961, altura em que foi inaugurado o novo edifício dos correios. Este maior e mais moderno, tinha dois pisos, o do rés-do-chão destinado aos equipamentos do correio e o primeiro andar destinado a habitação do chefe. Foi custeado pelo senhor Manuel Pires Grosso, a quem os correios passaram a pagar uma renda. Hoje também já está descativado, pois agora, a exemplo do que acontece em muitas outros lugares, já não há posto de correio em S. Facundo e as suas funções foram integradas nas das Junta de Freguesia.

BIBLIOGRAFIA

“Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira”, Volume VII, Edição Enciclopédia Lda. Lisboa e Rio de Janeiro.

AGRADECIMENTO

Agradeço a colaboração de Armindo Silveira, residente em S. Facundo, que me forneceu muitas informações sobre os correios em S. Facundo e me deu a conhecer o senhor António Manuel Bispo.

IN: APARÍCIO, Teresa – Profissões e vivências em vias de extinção - uma pequena história dos correios e o último condutor de malas de S. Facundo. Zahara. Abrantes: Centro de Estudos de História Local. ISSN 1645-6149. Ano 10. Nº 19 (2012), p. 27-32